OS IRMÃOS CARA-DE-PAU
John Landis, Blues Brothers, EUA, 1980

Rota Suicida

Não é apenas pela estruturação similar (embora os timbres de cada uma sejam levemente diferentes) de suas cenas finais - danças histéricas de carros, batidas, ruas, mobilização tática e expressão bélica francamente surrealistas - que este quarto filme de John Landis se assemelha a um filme de Clint Eastwood. Um filme (cabe dizer, dos mais subestimados de sua carreira) que é mais ou menos da mesma época, Rota Suicida.

Primeiro convém tocar na problemática do filme de Landis. Ou, simplesmente, em sua (apenas aparente) não-problemática. Os Irmãos Cara-de-Pau, um dos filmes mais radicalmente hedonistas já realizados (o Landis anterior, Clube dos Cafajestes, é outro), pode ser visto mais ou menos como cinema de pretexto. A começar pelo enredo.

Há esses dois irmãos, Elwood (Dan Aykroyd) e Jake (John Belushi). Jake sai da cadeia e na porta do edifício é recebido por Elwood. Os dois entram no carro e seguem para um orfanato: recebem uma "intimação" da irmã que administra a instituição. Trata-se de juntar milhares de dólares em pouquíssimos dias, senão o prédio será desativado. Logo descobrem a saída: remontar sua velha banda de soul & rhythm'n blues e sair por aí fazendo alguns shows, ato que é resumido por Elwood, volta e meia, como "missão divina". O que o enredo nos dá é essa "missão divina", divina porque, supomos, cabe aos dois irmãos peregrinar, convocar (no caso, apóstolos, ou seja, músicos) e empreender (no caso, missas, ou seja, shows) em nome da quantia necessária para se garantir a manutenção de um orfanato vinculado a um samaritanismo religioso. Há, além disso, um laço afetivo, pois os dois irmãos foram criados lá, pela freira e por um velho cantor negro. Outras crianças estão sendo formadas lá. Mas o que o filme vai nos colocar através de seus fluxos é um pouco diferente: missão divina não é salvar o orfanato, é antes, e simplesmente, se divertir. Aloprar. Fazer som. Gozar.

Salvar o orfanato é um pretexto para imergir num movimento quase rumo à morte; num ciclo meio catatônico e anestesiado de prazeres e de violações da ordem social e urbanística; na delícia de estar por aí, fugir a 100 quilômetros por hora num carro híbrido e envenenado, desativado da frota policial e de algum de seus depósitos de sucata, retirado. Depois, estacioná-lo em compartimentos secretos pela cidade (?). E tocar os grandes ou pequenos clássicos, estar com "os caras" - pela simples satisfação de se sentir junto com os velhos amigos (componentes da banda) e com eles rodar por aí -, invadir restaurantes chiques, comer e beber demais; e correr mais, testar o limite de rampas, fazer música, devastar com o automóvel uma pequena catedral do consumo e da sistematização no âmbito americano (um shopping center) e, literalmente, dilapidar a cidade.

Se o aparelho urbano serve aos personagens como área de lazer, cenário de um passeio divertido e vândalo, serve a Landis para um passeio, muito parecido, pelo cinema. Ou para uma de seu passeio. Que é por esse cinema motorizado, de perseguições no asfalto e batidas, esse circo "barato" automobilístico quase paródico em relação à sua brutalidade. Um circo tradicionalmente feito de carros meio baixos, modelo dodge, descartáveis, com traseiras mais acentuadas, calotas chapadas (tampas de panela); veículos "retrô" (hoje) que derrapam, soltando poeira, se desfiguram, se chocam meio pateticamente entre eles e nas estruturas de concreto que embalam a cidade. Um tipo de espetáculo que remete fortemente ao acervo da imagem americana setentista, sobretudo a do cinema de ação em asfalto metropolitano e a televisiva (no caso, séries com apelo mais rural e bandolim na trilha sonora), mas que parece sofrer um tipo de reprocessamento anabolizado por Landis: o diretor eleva essa família de imagens de carros velhos que deslizam, relincham e se amontoam, a um sentido diferente. Um sentido que transita entre a demência e uma lógica musical de repetições e variações orquestradas, solos nervosos, improvisações.

Se os dois irmãos têm como pretexto a nobre causa da salvação do orfanato para na verdade poderem se lançar vertiginosamente a um trajeto quase fundamentalista de farra e lazer, Landis tem como pretexto dirigir essa "comédia mutante"(?) para alta circulação no mercado, conduzir a "história"; mas importa mais que isso o sentimento de estar "tocando na banda com os amigos", no caso, ao que parece, não da música, mas da associação entre ele e os atores; Landis tem como pretexto filmar os fluxos esperados dessa história, desse, "musical mutante"(?) feito, nada barato, sob a meta de explodir na bilheteria, para na verdade visitar, como num tour por um parque de diversões, brinquedos cinematográficos. Visitar esses brinquedos, mas também experimentar limites de alguns universos e procedimentos cênicos. De imaginários, acima de tudo, que serão ora explorados, ora "reimaginados".

Assim, se a cidade destruída faz parte da rota de prazeres dos irmãos (não deixa de ser um parque de diversões), serve ao parque de diversões de Landis como instrumento de anarquização surrealista, às vezes dadaísta, da imagem urbana. E Landis passeará por outros brinquedos no parque. Brincará, por exemplo, mexendo com o musical, em números coreografados com um rigor cênico muitas vezes caro ao programa tradicional desse gênero. Porém, ainda assim, inseminando uma coloração diferente a esse programa, sobretudo quando investe em um certo apelo "roots", de homenagem ao bairro e às suas pequenas entidades e costumes, nos espaços e nos números negros. Não é só a coloração, a pulsação desse (re)artesanato parecer ser inusitada.

E aqui vamos chegar ao início do texto, que é exatamente o parentesco do filme: Rota Suicida, também um parque de diversões que prevê visita, ou, melhor, passeio por, quase todos os gêneros de "formação" americanos. Como o de Landis, o filme de Eastwood instrumenta esses gêneros, bem como de suas perspectivas de radicalização e repavimentação, como dispositivos (basta notar os experimentos com seus elementos e ícones - exemplo maior é a moto Harley que Eastwood roubou trafegando no deserto "western" em uma aérea suntuosa, antes de um confronto com "malfeitores" modernos em um trem). Mas é, sobretudo, um filme sobre o ato de fugir. Melhor, sobre "fugir juntos". É, a grosso modo, também tema de Os Irmãos Cara-de-Pau. Personagens fazem isso entre si, mas sempre abraçados por disposições de cinema, por parte dos diretores, que viabilizam essa lógica.

Se em Rota Suicida o pretexto é escoltar uma moça e logo depois, na esfera dramática, desmascarar suicidamente um esquema podre na polícia, o motivo daquele filme existir parece ser simplesmente o de colocar esses dois párias, homem (policial decadente e honesto) e mulher (porra louca), atravessando a paisagem "rústica" e árida americana. Uma travessia idílica, num dos filmes mais românticos de Eastwood, em que a mola por dentro de seu funcionamento se reduz à equação romantizada do "fugir com alguém e lutar contra o mundo". Há sutis disparidades e consonâncias desse conteúdo entre aspas, nos filmes de Landis e de Eastwood, mas o fato é que há grande prazer instalado nessas aspas, em ambos.

Assim, depois de uma carreira ingrata e fatigada na polícia, Eastwood vê nesse idilismo de fuga nada mais do que uma perspectiva de prazer e experimentação ilimitados, tal idéia sendo transplantada para sua atitude em relação à linguagem, no filme. Mais ou menos como Landis faz, o que está estampado, aliás, não só na lógica de "brinquedos de cinema", mas na alegria/ destreza com que o diretor desenha os planos e mexe em sua "voltagem" (através de decupagem e montagem).

Esse movimento lírico-aventureiro no deserto, passear pelo nada, de carro, de moto, com essa garota - como em Irmãos, rumo à morte - é ludibriar o "plano" que os estatutos sociais e suas trações impuseram para ele e, assim, assumir uma existência da satisfação dissociada da regência de tais estatutos; é a elegia do prazer de estar com uma mulher (no caso, sua própria esposa na época, fora do filme), passeando dentro do próprio cinema americano, em paisagens seminais, correndo, quebrando tudo e cuidando dela. Em ambos os filmes, a função do "passeio extremo" é assumida pelos personagens, mas reiterada, ou refletida, pelos diretores, que encarnam no motor de seus trabalhos essa idéia.

Nos dois filmes surgirão anticorpos oficiais, mecanismos militarizados da ordem estatal, treinados, que vão engendrar uma caçada e, bem posicionados, tentar neutralizar investidas do prazer total ou de divórcio com essa mesma ordem. São dois filmes que olham para o Estado de uma forma similar, embora haja uma diferença sensível de textura ideológica. Eastwood avança no filme para virar o jogo. Realiza um movimento suicida, indignado e defensivo (parece ser ofensivo, mas não é) de retorno para, de certa forma, concertar o Estado, se ele acredita no princípio de sua arquitetura e se vê aparatado e justo o suficiente para livrá-lo. Descolá-lo de uma agenda corrupta. É uma questão delicada, pois o que é esse "lugar", o Estado, é a crença de Eastwood ou aqueles que estão gerenciando-o? Eastwood acredita que pode haver regulagens, e mais, que ele mesmo pode regular esse organismo. O movimento de Landis é tão mais kamikaze quanto descrente nesse lugar e em sua trama organizacional, seja ela qual for.

Como em Josey Wales - O Fora da Lei, filme realizado em dias próximos aos de Rota Suicida, Eastwood precisa detectar e provar o perecimento ou a falência das engrenagens oficiais para legitimar seu caminho e sua insurreição. Landis não parte desse ponto, mas observa, em metodologia de cinema similar, uma programação do Estado e de seus braços agindo sobre os que desafiam, ou desviam-se de, seu projeto, amparados por uma razão anticoletiva do prazer total.

De qualquer forma, prazer, nos dois trabalhos, existe como sensação que rege o movimento final da existência, uma manobra de transcendência. Há, ainda que em chaves ideológicas conflitantes, ações de sabotagem do projeto "coletivo" que cerca os personagens ou que os amparava, profissionalmente inclusive, anteriormente. Um projeto que, em contrapartida, identifica nessas figuras a possibilidade de "intoxicação" de seus tratados, ou também a ameaça à integridade de suas edificações (no sentido literal, nos dois filmes, em que a mise en scène conclui sempre na idéia da demolição), à sua planta.

Outro ponto é: eles desafiam esse esqueleto (bem) montado, mas também não são aptos a participar dele, da maneira como ele se configura; não estão (mais) aptos a ser anexados aos seus processos de aperfeiçoamento e perpetuação (nesse caso, importante lembrar do emprego que Elwood tinha antes de partir para a "missão divina" e chuta, em uma fábrica medíocre de "cola" - o que aliás rende uma gag ultraLandis no final, das melhores do filme).

Saindo do "Estado" propriamente dito, mas continuando na esfera da reação ao prazer individualista, cabe ressaltar que os irmãos são perseguidos pela polícia, pelo exército (ou seja, por ferramentas ativas de proteção do Estado, instâncias do papel de "civilizar"); mas são obstruídos também, meio fantasiosamente, pela plástica e pela disposição setorial e bem planejada de um shopping (que conseguem basicamente estuprar de carro)... Por "nazistas" (Landis é essencialmente um James Brown na composição de suas idéias de enredo, ainda que seja também uma espécie de Stevie Wonder na concepção da dinâmica e da geometria de seus planos), pelos músicos dixie reacionários que viajam os EUA num trailer temático e bem decorado - que cumprem com seu figurino e dever de músicos "de gênero"; pela mulher terrorista, ortodoxa no casamento como doutrina e ideário sagrado. Ou seja, os porcos irmãos representam a desarrumação dos códigos (idéia ilustrada já na forma como a banda funciona, em sua dinâmica interna), históricos inclusive; representam o exercício do improviso, de um certo ecumenismo lúdico e libertário: uma afronta também a estatutos de organização, padronização e/ ou disciplina e "limpeza" que esses agentes "alternativos" da obstrução representam ou almejam. Aspecto que reflete, de forma relativa, porém substancial, a postura e a ressonância do cinema de Landis em relação ao mercado e ao cenário "oficial" de cinema de sua época.


Claudio Szynkier