Rota
Suicida
Não é apenas pela estruturação
similar (embora os timbres de cada uma sejam levemente
diferentes) de suas cenas finais - danças histéricas
de carros, batidas, ruas, mobilização
tática e expressão bélica francamente
surrealistas - que este quarto filme de John Landis
se assemelha a um filme de Clint Eastwood. Um filme
(cabe dizer, dos mais subestimados de sua carreira)
que é mais ou menos da mesma época, Rota
Suicida.
Primeiro convém tocar na problemática
do filme de Landis. Ou, simplesmente, em sua (apenas
aparente) não-problemática. Os Irmãos
Cara-de-Pau, um dos filmes mais radicalmente hedonistas
já realizados (o Landis anterior, Clube dos
Cafajestes, é outro), pode ser visto mais
ou menos como cinema de pretexto. A começar pelo
enredo.
Há esses dois irmãos, Elwood (Dan Aykroyd)
e Jake (John Belushi). Jake sai da cadeia e na porta
do edifício é recebido por Elwood. Os
dois entram no carro e seguem para um orfanato: recebem
uma "intimação" da irmã que administra
a instituição. Trata-se de juntar milhares
de dólares em pouquíssimos dias, senão
o prédio será desativado. Logo descobrem
a saída: remontar sua velha banda de soul &
rhythm'n blues e sair por aí fazendo alguns shows,
ato que é resumido por Elwood, volta e meia,
como "missão divina". O que o enredo nos dá
é essa "missão divina", divina porque,
supomos, cabe aos dois irmãos peregrinar, convocar
(no caso, apóstolos, ou seja, músicos)
e empreender (no caso, missas, ou seja, shows) em nome
da quantia necessária para se garantir a manutenção
de um orfanato vinculado a um samaritanismo religioso.
Há, além disso, um laço afetivo,
pois os dois irmãos foram criados lá,
pela freira e por um velho cantor negro. Outras crianças
estão sendo formadas lá. Mas o que o filme
vai nos colocar através de seus fluxos é
um pouco diferente: missão divina não
é salvar o orfanato, é antes, e simplesmente,
se divertir. Aloprar. Fazer som. Gozar.
Salvar o orfanato é um pretexto para imergir
num movimento quase rumo à morte; num ciclo meio
catatônico e anestesiado de prazeres e de violações
da ordem social e urbanística; na delícia
de estar por aí, fugir a 100 quilômetros
por hora num carro híbrido e envenenado, desativado
da frota policial e de algum de seus depósitos
de sucata, retirado. Depois, estacioná-lo em
compartimentos secretos pela cidade (?). E tocar os
grandes ou pequenos clássicos, estar com "os
caras" - pela simples satisfação de se
sentir junto com os velhos amigos (componentes da banda)
e com eles rodar por aí -, invadir restaurantes
chiques, comer e beber demais; e correr mais, testar
o limite de rampas, fazer música, devastar com
o automóvel uma pequena catedral do consumo e
da sistematização no âmbito americano
(um shopping center) e, literalmente, dilapidar a cidade.
Se o aparelho urbano serve aos personagens como área
de lazer, cenário de um passeio divertido e vândalo,
serve a Landis para um passeio, muito parecido, pelo
cinema. Ou para uma de seu passeio. Que é por
esse cinema motorizado, de perseguições
no asfalto e batidas, esse circo "barato" automobilístico
quase paródico em relação à
sua brutalidade. Um circo tradicionalmente feito de
carros meio baixos, modelo dodge, descartáveis,
com traseiras mais acentuadas, calotas chapadas (tampas
de panela); veículos "retrô" (hoje) que
derrapam, soltando poeira, se desfiguram, se chocam
meio pateticamente entre eles e nas estruturas de concreto
que embalam a cidade. Um tipo de espetáculo que
remete fortemente ao acervo da imagem americana setentista,
sobretudo a do cinema de ação em asfalto
metropolitano e a televisiva (no caso, séries
com apelo mais rural e bandolim na trilha sonora), mas
que parece sofrer um tipo de reprocessamento anabolizado
por Landis: o diretor eleva essa família de imagens
de carros velhos que deslizam, relincham e se amontoam,
a um sentido diferente. Um sentido que transita entre
a demência e uma lógica musical de repetições
e variações orquestradas, solos nervosos,
improvisações.
Se os dois irmãos têm como pretexto a nobre
causa da salvação do orfanato para na
verdade poderem se lançar vertiginosamente a
um trajeto quase fundamentalista de farra e lazer, Landis
tem como pretexto dirigir essa "comédia mutante"(?)
para alta circulação no mercado, conduzir
a "história"; mas importa mais que isso o sentimento
de estar "tocando na banda com os amigos", no caso,
ao que parece, não da música, mas da associação
entre ele e os atores; Landis tem como pretexto filmar
os fluxos esperados dessa história, desse, "musical
mutante"(?) feito, nada barato, sob a meta de explodir
na bilheteria, para na verdade visitar, como num tour
por um parque de diversões, brinquedos cinematográficos.
Visitar esses brinquedos, mas também experimentar
limites de alguns universos e procedimentos cênicos.
De imaginários, acima de tudo, que serão
ora explorados, ora "reimaginados".
Assim, se a cidade destruída faz parte da rota
de prazeres dos irmãos (não deixa de ser
um parque de diversões), serve ao parque de diversões
de Landis como instrumento de anarquização
surrealista, às vezes dadaísta, da imagem
urbana. E Landis passeará por outros brinquedos
no parque. Brincará, por exemplo, mexendo com
o musical, em números coreografados com um rigor
cênico muitas vezes caro ao programa tradicional
desse gênero. Porém, ainda assim, inseminando
uma coloração diferente a esse programa,
sobretudo quando investe em um certo apelo "roots",
de homenagem ao bairro e às suas pequenas entidades
e costumes, nos espaços e nos números
negros. Não é só a coloração,
a pulsação desse (re)artesanato parecer
ser inusitada.
E aqui vamos chegar ao início do texto, que é
exatamente o parentesco do filme: Rota Suicida,
também um parque de diversões que prevê
visita, ou, melhor, passeio por, quase todos os gêneros
de "formação" americanos. Como o de Landis,
o filme de Eastwood instrumenta esses gêneros,
bem como de suas perspectivas de radicalização
e repavimentação, como dispositivos (basta
notar os experimentos com seus elementos e ícones
- exemplo maior é a moto Harley que Eastwood
roubou trafegando no deserto "western" em uma aérea
suntuosa, antes de um confronto com "malfeitores" modernos
em um trem). Mas é, sobretudo, um filme sobre
o ato de fugir. Melhor, sobre "fugir juntos". É,
a grosso modo, também tema de Os Irmãos
Cara-de-Pau. Personagens fazem isso entre si, mas
sempre abraçados por disposições
de cinema, por parte dos diretores, que viabilizam essa
lógica.
Se em Rota Suicida o pretexto é escoltar
uma moça e logo depois, na esfera dramática,
desmascarar suicidamente um esquema podre na polícia,
o motivo daquele filme existir parece ser simplesmente
o de colocar esses dois párias, homem (policial
decadente e honesto) e mulher (porra louca), atravessando
a paisagem "rústica" e árida americana.
Uma travessia idílica, num dos filmes mais românticos
de Eastwood, em que a mola por dentro de seu funcionamento
se reduz à equação romantizada
do "fugir com alguém e lutar contra o mundo".
Há sutis disparidades e consonâncias desse
conteúdo entre aspas, nos filmes de Landis e
de Eastwood, mas o fato é que há grande
prazer instalado nessas aspas, em ambos.
Assim, depois de uma carreira ingrata e fatigada na
polícia, Eastwood vê nesse idilismo de
fuga nada mais do que uma perspectiva de prazer e experimentação
ilimitados, tal idéia sendo transplantada para
sua atitude em relação à linguagem,
no filme. Mais ou menos como Landis faz, o que está
estampado, aliás, não só na lógica
de "brinquedos de cinema", mas na alegria/
destreza com que o diretor desenha os planos e mexe
em sua "voltagem" (através de decupagem
e montagem).
Esse movimento lírico-aventureiro no deserto,
passear pelo nada, de carro, de moto, com essa garota
- como em Irmãos, rumo à morte
- é ludibriar o "plano" que os estatutos
sociais e suas trações impuseram para
ele e, assim, assumir uma existência da satisfação
dissociada da regência de tais estatutos; é
a elegia do prazer de estar com uma mulher (no caso,
sua própria esposa na época, fora do filme),
passeando dentro do próprio cinema americano,
em paisagens seminais, correndo, quebrando tudo e cuidando
dela. Em ambos os filmes, a função do
"passeio extremo" é assumida pelos
personagens, mas reiterada, ou refletida, pelos diretores,
que encarnam no motor de seus trabalhos essa idéia.
Nos dois filmes surgirão anticorpos oficiais,
mecanismos militarizados da ordem estatal, treinados,
que vão engendrar uma caçada e, bem posicionados,
tentar neutralizar investidas do prazer total ou de
divórcio com essa mesma ordem. São dois
filmes que olham para o Estado de uma forma similar,
embora haja uma diferença sensível de
textura ideológica. Eastwood avança no
filme para virar o jogo. Realiza um movimento suicida,
indignado e defensivo (parece ser ofensivo, mas não
é) de retorno para, de certa forma, concertar
o Estado, se ele acredita no princípio de sua
arquitetura e se vê aparatado e justo o suficiente
para livrá-lo. Descolá-lo de uma agenda
corrupta. É uma questão delicada, pois
o que é esse "lugar", o Estado, é
a crença de Eastwood ou aqueles que estão
gerenciando-o? Eastwood acredita que pode haver regulagens,
e mais, que ele mesmo pode regular esse organismo. O
movimento de Landis é tão mais kamikaze
quanto descrente nesse lugar e em sua trama organizacional,
seja ela qual for.
Como em Josey Wales - O Fora da Lei, filme realizado
em dias próximos aos de Rota Suicida,
Eastwood precisa detectar e provar o perecimento ou
a falência das engrenagens oficiais para legitimar
seu caminho e sua insurreição. Landis
não parte desse ponto, mas observa, em metodologia
de cinema similar, uma programação do
Estado e de seus braços agindo sobre os que desafiam,
ou desviam-se de, seu projeto, amparados por uma razão
anticoletiva do prazer total.
De qualquer forma, prazer, nos dois trabalhos, existe
como sensação que rege o movimento final
da existência, uma manobra de transcendência.
Há, ainda que em chaves ideológicas conflitantes,
ações de sabotagem do projeto "coletivo"
que cerca os personagens ou que os amparava, profissionalmente
inclusive, anteriormente. Um projeto que, em contrapartida,
identifica nessas figuras a possibilidade de "intoxicação"
de seus tratados, ou também a ameaça à
integridade de suas edificações (no sentido
literal, nos dois filmes, em que a mise en scène
conclui sempre na idéia da demolição),
à sua planta.
Outro ponto é: eles desafiam esse esqueleto (bem)
montado, mas também não são aptos
a participar dele, da maneira como ele se configura;
não estão (mais) aptos a ser anexados
aos seus processos de aperfeiçoamento e perpetuação
(nesse caso, importante lembrar do emprego que Elwood
tinha antes de partir para a "missão divina"
e chuta, em uma fábrica medíocre de "cola"
- o que aliás rende uma gag ultraLandis no final,
das melhores do filme).
Saindo do "Estado" propriamente dito, mas continuando
na esfera da reação ao prazer individualista,
cabe ressaltar que os irmãos são perseguidos
pela polícia, pelo exército (ou seja,
por ferramentas ativas de proteção do
Estado, instâncias do papel de "civilizar");
mas são obstruídos também, meio
fantasiosamente, pela plástica e pela disposição
setorial e bem planejada de um shopping (que conseguem
basicamente estuprar de carro)... Por "nazistas" (Landis
é essencialmente um James Brown na composição
de suas idéias de enredo, ainda que seja também
uma espécie de Stevie Wonder na concepção
da dinâmica e da geometria de seus planos), pelos
músicos dixie reacionários que viajam
os EUA num trailer temático e bem decorado -
que cumprem com seu figurino e dever de músicos
"de gênero"; pela mulher terrorista, ortodoxa
no casamento como doutrina e ideário sagrado.
Ou seja, os porcos irmãos representam a desarrumação
dos códigos (idéia ilustrada já
na forma como a banda funciona, em sua dinâmica
interna), históricos inclusive; representam o
exercício do improviso, de um certo ecumenismo
lúdico e libertário: uma afronta também
a estatutos de organização, padronização
e/ ou disciplina e "limpeza" que esses agentes "alternativos"
da obstrução representam ou almejam. Aspecto
que reflete, de forma relativa, porém substancial,
a postura e a ressonância do cinema de Landis
em relação ao mercado e ao cenário
"oficial" de cinema de sua época.
Claudio Szynkier
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