CONTRA-REGRA
Coluna semanal de televisão
 

Algumas impressões sobre Senhora do Destino

Durante todos os meses que esteve no ar, Senhora do Destino defendia, a todo custo, algumas teorias sociais: o politicamente correto acima de tudo, padrões morais e éticos extremamente reacionários, a família como órgão supremo e salvador e mau e bom como características absolutas inerentes a cada ser humano.

Pra começar, tínhamos a família de Maria do Carmo – uma família unida, que se mantinha coesa nas horas felizes e nas horas tristes, assim conseguindo passar por cima de todos os obstáculos; sendo regida por essa matriarca, numa lógica que beirava o fascismo. A família é o núcleo mantenedor de tudo e todas as pessoas só existem dentro daquela engrenagem: os quatro filhos, suas esposas e as empregadas da casa não possuíam vida alguma fora daquele núcleo familiar, tudo só funcionava para aquela engrenagem – ou família, como Aguinaldo Silva preferiu chamar – estar sempre a todo vapor. E a única pessoa que se afastava desse núcleo, que sempre estava longe da casa da matriarca, que queria abandonar um casamento perfeito com dois belos filhos, foi feita de ovelha negra e idealizada como um grande bandido – algo que soa como "Saia do núcleo, desobedeça a ordem. Você virará bandido e pagará por isso".

Mau de nascença

O bons e maus, mocinhos e bandidos, eram inquestionáveis. A novela nunca deu o mínimo espaço para se por em questão personagens como Maria do Carmo ou Dirceu e tampouco deu tempo para que alguém viesse a ver Nazaré, Naldo ou Josivaldo como seres humanos. Em certo momento da novela, quando Isabel estava indo morar com Do Carmo, Nazaré começa a chorar e implorar para que a "filha" não a abandone; diz que a ama, que pode ter errado de todas as formas, mas que o amor é verdadeiro. Por um segundo parece que Nazaré é também um ser que pode amar, que merece um pouco de atenção, mas logo o autor já deixa bem claro que não, que ela é execrável a todo momento; Nazaré solta algo assim: "Isabel, eu sei porque você está indo morar com ela. È pelo dinheiro, pela herança; se você quiser dar uma apressada na morte dela, é só falar comigo". Ou seja, ele pode chorar, falar que ama, mas é tudo jogo, mentira, ela não é um ser humano.

Em outro momento, nos capítulos finais, vemos Vivian chorando a morte de Naldo. Ela é, sem dúvida, a pessoa que mais sofre por ele e vai ficando claro que ela o amava de verdade; além de mostrar esse amor da forma mais abjeta possível, para não deixar dúvida de que o telespectador tem que odiá-la, logo depois de se jogar em cima da caixão do marido, chorando copiosamente, ela levanta, avista o carro do Senador (Lima Duarte), entra e dá um sorrisinho pra ele.

Trauma como redenção

Os personagens que cometeram erros (ou seja, segundo a lógica da trama, algo que descumpra os preceitos familiares), mas não eram maus, passaram por experiências terríveis para sofrerem redenção e "tomar jeito na vida". Lady Daiane que, apesar da mãe maravilhosa que tinha, a decepcionou engravidando duas vezes, foi levada para ser torturada ao ver crianças se drogando. Numa cena onde o diretor Wolf Maya foi simplesmente asqueroso; mãe e padrasto levaram a menina para uma espécie de "túnel do terror", passando por vários pontos venda de drogas e terminando num lugar onde agentes sociais vinham pegar as crianças para ajudá-las; assustasdas, elas tentavam fugir. Um menino foi de encontro à janela de Daiane num ato desesperado, mas logo continuou sua fuga e se perdeu na rua escura em meio às luzes; uma metáfora grosseira da juventude perdida. Uma cena que apela aos recursos mais simplificantes do melodrama e que defende a terapia de choque e a tortura mental.

O personagem Shaolin era um garotão que ia levando a vida meio de qualquer jeito. Descumpria a boa conduta namorando meninas menores de idade e não casando com uma a quem ele engravidou. Só queria mesmo saber de lutar kung-fu e andar desleixado por aí. Mas aí vieram incindentes graves e com isso, toda a vida anterior passou por sua cabeça, fazendo com que ele repesnsasse seus erros e tomasse jeito. Ficou junto à mãe de seu filho, começou a dar valor à família e, pasmem, a lógica é tão simplória que ao virar um bom homem ele começou a andar de terno e gravata.

Família ditadura

Um exemplo de família sendo motivo para qualquer ato: esposa do personagem de Nelson Xavier queima uma carta onde Josefa (antigo amor de Xavier) se declara para ele; um ato no mínimo questionável, já que ele está queimando um fato do passado dele; mas a novela legitima isso mostrando logo antes uma cena de Xavier provando pra esposa que já tinha esquecido Josefa. Então, ela queima dizendo: "ele pode ter te amado, mas foi comigo que ele constiuiu família".

Morte reacionária

As sequências da morte de Naldo foram especialmente repugnantes. Primeiro Do Carmo e seu irmão, como bastiões da moral, vão alertar o povo sobre a verdade a respeito do prefeito de Vila São Miguel. Ao saber das falcatruas do filho, Do Carmo age de maneira reacionária: diz que ele é uma ovelha negra, que lembra de quando ele roubou um biscoito (no primeiro capítulo), que ali ela viu que ele tinha passado pro lado do mau, que ele tinha nascido mau caráter.

Logo após, o povo passa a perseguir o prefeito jogando coisas e o xingando e atrás vemos Dirceu e Giovanne sorrindo. Até a hora em que uma pedrara mata Naldo – sua morte é mostrada ao som de uma ópera dramática e com utilização de montagem paralela alternando cenas que o retratam levando uma pedrada ainda nos tempos de ditadura; as idéias se misturam na cabeça dele, que morre vendo as imagens de quando era criança. Uma tentativa de mostrar que aquele era um ato revolucionário, como quando o povo foi às ruas derrubar anos de ditadura; mas é exatamente o contrário, o ato ali era reacionário; um homem sendo morto por ser possuido de um mau caráter absoluto, que nasceu com ele. Do Carmo, como mãe que era, se desespera e chora; Dirceu, homem bom e que a ama, solta como frase de consolação: "foi um acidente, Do Carmo, mas foi feita justiça". Pena de morte como solução? Há, realmente, algo de muito estranho no conceito de justiça que Aguinaldo Silva defende.

Já passados dois meses do acontecido, Giovanne pergunta a Do Carmo sobre o casamento deles. Ela diz que seu coração continua triste pela perda do filho e que não consegue pensar nisso. Instantes depois, é revelado a ela que Naldo havia matado duas pessoas; em um segundo ela sorri, conclui que ele tinha que ter morrido mesmo e abre o assunto do casamento. Naldo ter matado alguém é um ato repugnante, mas ele ter sido morto é um ato justo. Qual a diferença? Existiriam, então, motivos que tornam justa a morte de alguém?

Direção?

Durante toda a novela, Wolf Maya demonstrou algumas manias insuportáveis. Pelo menos 3 vezes por capítulo um diálogo começava numa cena e terminava noutra. Um personagem perguntava em casa "cadê o Dirceu?" e outro respondia noutro lugar "o Dirceu deve estar chegando". Repetia o recurso exaustivamente, sempre tentando ser "espertinho" e só conseguindo ser muito chato. Montagens rápidas e mal feitas eram usadas em momentos de tensão. Como já disse, na morte de Naldo (morte/ditadura) ou no casamento de Isabel com Nazaré se mantendo à espreita. onde cortes frenéticos iam passeando pelas caras de todos; sem o menor sentido, só apelando pra uma maneira simples de criar clima. E a mais chata de todos: os closes. Bastava a cena sugerir um clímax de suspense que entrava uma música e a câmera se aproximava muito rapidamente da cara de alguém de modo extremamente grosseiro, sem o menos apreço pelo personagem ou pela tentativa de criar uma atmosfera.

Cada tópico acima funciona como exemplo (sintoma) das várias questões que ditaram a novela, que sempre escolheu o pior e mais simplório caminho para tratar de assuntos variados. Sendo vendida como algo otimista, que ama o Brasil e seu povo; o que ela fazia era exatamente o contrário, limando qualquer possibilidade de respeito ao indivíduo e o tratando apenas como parte de uma engrenagem acima dele.


Francisco Guarnieri


Textos das semanas anteriores:
Dennis Carvalho em estado de graça
(sobre Como uma Onda)
(por Francisco Guarnieri)
FAC (por Felipe Bragança)
Notas sobre A Escrava Isaura (por Francisco Guarnieri)
Retomando (Rede Globo, Ancinav...) (por Felipe Bragança)
"À luz do dia, e no Leblon. O que falta mais?" (por Felipe Bragança)
Horário Político, decapitações, paraolimpíadas (por Felipe Bragança)
Clodovil em sua casa (por Francisco Guarnieri)
Uma rapidinha (sobre Ancinav) (por Felipe Bragança)
Divagações da qualidade (por Felipe Bragança)
Anotações da madrugada, parte 2: CNN (por Felipe Bragança)
Anotações da madrugada, parte 1: Rede Globo (por Felipe Bragança)
Gomes vs. Coen (por Francisco Guarnieri)
Viagens Fantásticas (parte 2) (por Felipe Bragança)
Terapeuta JK (por Francisco Guarnieri)
Viagens Fantásticas (parte 1) (por Felipe Bragança)
Coito de Cachorro, Otávio Mesquita, Sônia Abrão e outras sumidades televisivas (por Francisco Guarnieri)
Pânico! (por Felipe Bragança)
Notas, notas, notas (por Francisco Guarnieri)
Da TV e dos corpos humanos, parte 2 (por Felipe Bragança)
Da TV e dos corpos humanos, parte 1 (por Felipe Bragança)
Violência da edição, edições da violência (por Felipe Bragança)
Fauna in concert: Tribos, Ayrton Senna, Monique Evans, João Kléber (por Francisco Guarnieri)
Repórter Cidadão: pouca cidadania, reportagem duvidosa (por Francisco Guarnieri)
Semana de carnaval (por Francisco Guarnieri)
A dona da verdade (por Felipe Bragança)
Mormaço (por Felipe Bragança)
Retrospectiva 2003 – Parte 2 (por Felipe Bragança)
Retrospectiva 2003 (por Felipe Bragança)
A Grata futilidade de Gilberto Braga (por Felipe Bragança)
Aos treze (por Roberto Cersósimo)
Algum começo... (por Felipe Bragança)
Uma novela de... (por Roberto Cersósimo)
O canal das mulheres, a cidade dos homens (por Felipe Bragança)
O fetiche do pânico (por Roberto Cersósimo)
Televisão cidadã, cidadãos televisivos (por Felipe Bragança)