1. Uma bem-vinda novidade no panorama do cinema
de terror é a velocidade com que Hollywood vem
exportando os cineastas cults do gênero. Assim,
o exotismo de ver filmes em locações a
que não estamos acostumados dissolve-se logo
de nossas mentes e essas tão badaladas sensações
dos entusiastas se revelam tal qual o rei do conto de
Andersen, sem roupas. O primeiro a aparecer como tal
foi Takashi Shimizu, responsável pela série
Ju-on que culminou no americano O Grito,
e agora Hideo Nakata, tornado célebre pelos dois
primeiros volumes de Ring, e que em território
americano teve a chance de rodar a segunda parte de
O Chamado, versão hollywoodiana de seu
sucesso. O que surpreende nesses primeiros exercícios
americanos desses diretores é a ausência
de qualquer traço estilístico que os possa
separar da grande maioria dos "outros" que
militam na seara genérica do cinema americano
de horror: apreciação mais de tiete que
via nos trabalhos orientais desses cineastas algo além
de um manejo decente da eficiência narrativa.
2. Em O Chamado 2, volta Naomi Watts como a alourada
frígida que tenta tirar seu filho das garras
de Samara, a criança-espírito que no episódio
anterior havia sido liberada de seu poço e, entre
um filme e outro, ficou vagando pelo mundo tentando
achar sua libertadora. Daí que o segundo volume
da série tem mais gosto de O Exorcista
do que do filme anterior. Não há telefonemas
sinistros, e o único momento em que uma fita
de videocassete é inserida num aparelho é
na primeira seqüência que, lembrada após
o final do filme, não exerce função
nenhuma a não ser estabelecer o mínimo
de relação entre um filme e outro. O que
não serve nem como elogio nem como crítica,
uma vez que o primeiro não é exatamente
um modelo de cinema a ser estudado como exemplo. Mas
essa mudança permite ao menos uma aposta: a interseção
do mundo natural com o sobrenatural, do físico
com o espiritual, e todo um universo de possíveis
apropriações mágicas do espaço.
Tudo isso a princípio: o máximo que Hideo
Nakata consegue fazer com isso é uma ridícula
perseguição entre o carro da mocinha e
uma dúzia de renas criadas em computação
gráfica, ou galhos de árvore se "tatuando"
no teto da água-furtada em que habita Aidan,
o filho-hospedeiro.
3. O que nos traz à questão, pouquíssimo
comentada mas possivelmente crucial, da influência
dos cortes rápidos, das montagens à MTV
e da freqüente "desespacialização"
nos filmes de terror. Ora, a construção
rigorosa do medo e do suspense precisa da contigüidade
e da fragilidade dos corpos, e ambos só existem
quando existe espaço. Em Vozes do Além
e O Chamado 2, os personagens se deslocam apenas
por capricho, porque o mal não respeita espaços
e pode atingir os heróis no momento que quiser.
Os demônios de um ou a alma de outro são
espécies de vilões na era da internet:
como um email, se deslocam por todos os espaços
até chegarem ao lugar objetivo. Assim, é
apenas por capricho de cenógrafo e para
quebrar o tédio dos espectadores com a pobreza
que estão assistindo, certamente que Michael
Keaton precisa terminar seu périplo num prédio
pingante, ou que Rachel corre com seu filho para a casa
do colega de trabalho. Uma nova espreita, um novo método
de perseguir e de chegar até suas vítimas
precisava de uma nova e distintiva maneira de se filmar.
Não é o caso: Hideo Nakata e Geoffrey
Sax utilizam-se apenas de técnicas da moda
CGI e alterações de velocidade no caso
do primeiro, colagens rápidas e trilha barulhenta
no caso do segundo para compor seus respectivos
filmes.
4. Vozes do Além até inicialmente
se tenta um relato entre o drama e o fantástico,
conseguindo alguns momentos interessantes de perda e
de esperança de recuperação (a
partir do fenômeno das gravações
de espíritos em fita magnética). Mas logo
o ridículo assume, quando descobrimos que os
mortos não se comunicam só por fitas
o que seria possivelmente de "pouca sensação"
para os sábios que trabalham na feitura de um
filme , mas passam por curiosos upgrades
e passam a aparecer em fitas de vídeo gravadas
em canais inexistentes. Naturalmente, surge a santa
a ex-mulher de Keaton e os três
demônios sob a forma de três assustadoras
sombras, e aquilo que vinha se desenvolvendo com alguma
sistemática como um filme sobre resignação
com a morte se transforma numa vagabunda trama moralista
que nos intimida a travar contato com o além
(búúú). O Chamado 2, por
sua vez, em momentos ganha ares de assumir uma subtrama
que permita tornar a trama mais interessante, a saber
a preocupação em ser uma boa mãe:
Sissy Spasek despenteada como a mãe louca da
criança-espírito do mal a quem Rachel
tenta recorrer, a psiquiatra que suspeita de maus tratos
com o menino, a depressão pós-parto de
que Rachel curiosamente "se lembra" no meio
do filme. Tudo isso para terminar num "I'm not
your fucking mummy" pronto para despertar risos
na platéia e buracos na constituição
psicológica da personagem principal.
5. Ao espaço que curto-circuita distâncias
não corresponde uma mise-en-scène característica,
mas um arremedo de desespacialização.
Se a ameaça é onipresente, não
há suspense. Mas, pior, se não há
espaço, não há corpo. Assim, Rachel
pode se desmaterializar através da televisão
porque ela já não tem nenhum corpo desde
o começo. Aliás, o "mundo" da
televisão é mais corporificado: nele pode
haver uma perseguição verdadeira, por
mais que os membros da menina-ameaça se locomovam
como tentáculos de lula. Às liberdades
da computação gráfica, o cinema
não responde com um acréscimo de criatividade
na utilização do espaço, mas na
sua destruição sistemática (Matrix,
Senhor dos Anéis) e transformação
em alguma outra coisa. Outra coisa que até
agora não se sabe exatamente o que é,
mas sabe-se que o único a ter saído vitorioso
num confronto com ela é McG. Essa relação
de um espaço (tornado em um não-espaço
pelo diretor) com um não-espaço sobrenatural
ou mítico (em Matrix, em Vozes do Além,
em O Chamado 2) reflete no campo do conteúdo
(tema, narrativa) a trama de uma forma de fazer cinema
que hoje mais cria um visual do que cria sobre um visual
já-dado (o espaço). Nasce um problema:
quando se cria um visual, ele não se torna um
espaço sozinho, e a partir daí é
preciso se for necessário ao filme
criar um espaço, para nele fazer corpos existirem.
6. Não à toa, os personagens de O Chamado
2, de Vozes do Além (como já
antes os de Matrix) são dessexualizados:
não há para eles corpo desejante, nem
propriamente a construção de um corpo.
Um vai de par com o outro, e o único "desejo"
de cada protagonista é se imiscuir no corpo de
um outro que não está lá: a esposa
morta, o filho ausente. Fábulas um tanto reacionárias
da integridade familiar como célula da sociedade,
como única possibilidade de uma vida digna.
7. Sobre toda a questão de um novo espaço,
O Amigo Oculto não tem nada a acrescentar
ou a responder. Seu terreno é o do espaço
concebido "como antigamente", como um mundo
a ser percorrido pela câmera. O oposto desse espaço
não é o não-espaço, mas
o espaço interior (do personagem, da família)
que ao final do filme é elevado ao nível
de arquétipo e dramatizado como tal, numa caverna-útero
que está muito mais para o metafórico
absoluto (todo conotação) do que para
o naturalismo (conotação naturalizada
fingindo de denotação). O espaço
de O Amigo Oculto é esculpido com cuidado
um uso discreto e elegante do formato panorâmico
do 2,35:1 , ritmado de forma clássica (o
filme recente que mais se parece com ele é curiosamente
Os Outros de Amenábar), navegando num
mar pouco caudaloso mas mesmo assim construindo um trajeto
minuciosamente delineado. Dentro de um mundo que existe,
que existe porque criou-se um espaço, pode haver
corpos. E quando há corpos, pode haver atores.
E atuações. E Dakota Fanning. John Polson,
anteriormente diretor afetado na Austrália (o
soporífero Siam Sunset), se mostra aqui
bastante hábil na forma de conduzir uma história
entre o conteúdo manifesto e a subtrama latente.
8. Mas é no quesito família que O Amigo
Oculto pode iluminar e servir de resposta
aos joguetes familiares dos outros filmes aqui discutidos.
Cenário típico da construção
ou da reconstrução (no caso de uma família
depois que a mãe morre), o subúrbio americano
vai ser o local não de uma nova integridade,
mas da dissolução completa. De Niro que
se mostra paranóico com a chegada de um estranho
seu vizinho, na verdade próximo
de sua filha, com o policial, com a ex-aluna. Charlie,
um personagem muito mais interessante e perigoso que
Tyler Durden, é essa sede de destruição
que não existe sem auto-destruição,
esse buraco negro que nasce como ressentimento mas que
não é nenhum herói, e tampouco
anti-herói (e eis como O Amigo Oculto mostra
a insuficiência de O Clube da Luta ao glamurizar
a segunda personalidade), mas reflexo nojento da própria
tensão familiar incapacidade de lidar
com rejeição, traição, e
no limite um novo complexo de Édipo que se cria,
dessa vez psicótico começando pelo
"membro nobre" (homem, adulto, pai, professor,
tudo que é o sujeito-suposto-saber), e não
mais pelas margens do sistema. Nada a se defender até
a morte; ainda assim O Amigo Oculto é
o filme de terror-fantástico mais interessante
a estrear nessas searas em um bom tempo. Um artesão
que entrega em dia é algo a se louvar numa época
em que todos acionam cedo demais seus holofotes de inventor
naturalmente, sem sê-lo.
Ruy Gardnier
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