PARALELAS E TRANSVERSAIS
O Amigo Oculto, de John Polson
O Chamado 2, de Hideo Nakata
Vozes do Além, de Geoffrey Sax

Hide and Seek, EUA, 2005
The Ring Two, EUA, 2005
White Noise, EUA, 2005


1. Uma bem-vinda novidade no panorama do cinema de terror é a velocidade com que Hollywood vem exportando os cineastas cults do gênero. Assim, o exotismo de ver filmes em locações a que não estamos acostumados dissolve-se logo de nossas mentes e essas tão badaladas sensações dos entusiastas se revelam tal qual o rei do conto de Andersen, sem roupas. O primeiro a aparecer como tal foi Takashi Shimizu, responsável pela série Ju-on que culminou no americano O Grito, e agora Hideo Nakata, tornado célebre pelos dois primeiros volumes de Ring, e que em território americano teve a chance de rodar a segunda parte de O Chamado, versão hollywoodiana de seu sucesso.
O que surpreende nesses primeiros exercícios americanos desses diretores é a ausência de qualquer traço estilístico que os possa separar da grande maioria dos "outros" que militam na seara genérica do cinema americano de horror: apreciação mais de tiete que via nos trabalhos orientais desses cineastas algo além de um manejo decente da eficiência narrativa.

2. Em O Chamado 2, volta Naomi Watts como a alourada frígida que tenta tirar seu filho das garras de Samara, a criança-espírito que no episódio anterior havia sido liberada de seu poço e, entre um filme e outro, ficou vagando pelo mundo tentando achar sua libertadora. Daí que o segundo volume da série tem mais gosto de O Exorcista do que do filme anterior. Não há telefonemas sinistros, e o único momento em que uma fita de videocassete é inserida num aparelho é na primeira seqüência que, lembrada após o final do filme, não exerce função nenhuma a não ser estabelecer o mínimo de relação entre um filme e outro. O que não serve nem como elogio nem como crítica, uma vez que o primeiro não é exatamente um modelo de cinema a ser estudado como exemplo. Mas essa mudança permite ao menos uma aposta: a interseção do mundo natural com o sobrenatural, do físico com o espiritual, e todo um universo de possíveis apropriações mágicas do espaço. Tudo isso a princípio: o máximo que Hideo Nakata consegue fazer com isso é uma ridícula perseguição entre o carro da mocinha e uma dúzia de renas criadas em computação gráfica, ou galhos de árvore se "tatuando" no teto da água-furtada em que habita Aidan, o filho-hospedeiro.

3. O que nos traz à questão, pouquíssimo comentada mas possivelmente crucial, da influência dos cortes rápidos, das montagens à MTV e da freqüente "desespacialização" nos filmes de terror. Ora, a construção rigorosa do medo e do suspense precisa da contigüidade e da fragilidade dos corpos, e ambos só existem quando existe espaço. Em Vozes do Além e O Chamado 2, os personagens se deslocam apenas por capricho, porque o mal não respeita espaços e pode atingir os heróis no momento que quiser. Os demônios de um ou a alma de outro são espécies de vilões na era da internet: como um email, se deslocam por todos os espaços até chegarem ao lugar objetivo. Assim, é apenas por capricho de cenógrafo – e para quebrar o tédio dos espectadores com a pobreza que estão assistindo, certamente – que Michael Keaton precisa terminar seu périplo num prédio pingante, ou que Rachel corre com seu filho para a casa do colega de trabalho. Uma nova espreita, um novo método de perseguir e de chegar até suas vítimas precisava de uma nova e distintiva maneira de se filmar. Não é o caso: Hideo Nakata e Geoffrey Sax utilizam-se apenas de técnicas da moda – CGI e alterações de velocidade no caso do primeiro, colagens rápidas e trilha barulhenta no caso do segundo – para compor seus respectivos filmes.

4. Vozes do Além até inicialmente se tenta um relato entre o drama e o fantástico, conseguindo alguns momentos interessantes de perda e de esperança de recuperação (a partir do fenômeno das gravações de espíritos em fita magnética). Mas logo o ridículo assume, quando descobrimos que os mortos não se comunicam só por fitas – o que seria possivelmente de "pouca sensação" para os sábios que trabalham na feitura de um filme –, mas passam por curiosos upgrades e passam a aparecer em fitas de vídeo gravadas em canais inexistentes. Naturalmente, surge a santa – a ex-mulher de Keaton – e os três demônios – sob a forma de três assustadoras sombras, e aquilo que vinha se desenvolvendo com alguma sistemática como um filme sobre resignação com a morte se transforma numa vagabunda trama moralista que nos intimida a travar contato com o além (búúú). O Chamado 2, por sua vez, em momentos ganha ares de assumir uma subtrama que permita tornar a trama mais interessante, a saber a preocupação em ser uma boa mãe: Sissy Spasek despenteada como a mãe louca da criança-espírito do mal a quem Rachel tenta recorrer, a psiquiatra que suspeita de maus tratos com o menino, a depressão pós-parto de que Rachel curiosamente "se lembra" no meio do filme. Tudo isso para terminar num "I'm not your fucking mummy" pronto para despertar risos na platéia e buracos na constituição psicológica da personagem principal.

5. Ao espaço que curto-circuita distâncias não corresponde uma mise-en-scène característica, mas um arremedo de desespacialização. Se a ameaça é onipresente, não há suspense. Mas, pior, se não há espaço, não há corpo. Assim, Rachel pode se desmaterializar através da televisão porque ela já não tem nenhum corpo desde o começo. Aliás, o "mundo" da televisão é mais corporificado: nele pode haver uma perseguição verdadeira, por mais que os membros da menina-ameaça se locomovam como tentáculos de lula. Às liberdades da computação gráfica, o cinema não responde com um acréscimo de criatividade na utilização do espaço, mas na sua destruição sistemática (Matrix, Senhor dos Anéis) e transformação em alguma outra coisa. Outra coisa que até agora não se sabe exatamente o que é, mas sabe-se que o único a ter saído vitorioso num confronto com ela é McG. Essa relação de um espaço (tornado em um não-espaço pelo diretor) com um não-espaço sobrenatural ou mítico (em Matrix, em Vozes do Além, em O Chamado 2) reflete no campo do conteúdo (tema, narrativa) a trama de uma forma de fazer cinema que hoje mais cria um visual do que cria sobre um visual já-dado (o espaço). Nasce um problema: quando se cria um visual, ele não se torna um espaço sozinho, e a partir daí é preciso – se for necessário ao filme – criar um espaço, para nele fazer corpos existirem.

6. Não à toa, os personagens de O Chamado 2, de Vozes do Além (como já antes os de Matrix) são dessexualizados: não há para eles corpo desejante, nem propriamente a construção de um corpo. Um vai de par com o outro, e o único "desejo" de cada protagonista é se imiscuir no corpo de um outro que não está lá: a esposa morta, o filho ausente. Fábulas um tanto reacionárias da integridade familiar como célula da sociedade, como única possibilidade de uma vida digna.

7. Sobre toda a questão de um novo espaço, O Amigo Oculto não tem nada a acrescentar ou a responder. Seu terreno é o do espaço concebido "como antigamente", como um mundo a ser percorrido pela câmera. O oposto desse espaço não é o não-espaço, mas o espaço interior (do personagem, da família) que ao final do filme é elevado ao nível de arquétipo e dramatizado como tal, numa caverna-útero que está muito mais para o metafórico absoluto (todo conotação) do que para o naturalismo (conotação naturalizada fingindo de denotação). O espaço de O Amigo Oculto é esculpido com cuidado – um uso discreto e elegante do formato panorâmico do 2,35:1 –, ritmado de forma clássica (o filme recente que mais se parece com ele é curiosamente Os Outros de Amenábar), navegando num mar pouco caudaloso mas mesmo assim construindo um trajeto minuciosamente delineado. Dentro de um mundo que existe, que existe porque criou-se um espaço, pode haver corpos. E quando há corpos, pode haver atores. E atuações. E Dakota Fanning. John Polson, anteriormente diretor afetado na Austrália (o soporífero Siam Sunset), se mostra aqui bastante hábil na forma de conduzir uma história entre o conteúdo manifesto e a subtrama latente.

8. Mas é no quesito família que O Amigo Oculto pode iluminar e servir de resposta aos joguetes familiares dos outros filmes aqui discutidos. Cenário típico da construção ou da reconstrução (no caso de uma família depois que a mãe morre), o subúrbio americano vai ser o local não de uma nova integridade, mas da dissolução completa. De Niro que se mostra paranóico com a chegada de um estranho – seu vizinho, na verdade – próximo de sua filha, com o policial, com a ex-aluna. Charlie, um personagem muito mais interessante e perigoso que Tyler Durden, é essa sede de destruição que não existe sem auto-destruição, esse buraco negro que nasce como ressentimento mas que não é nenhum herói, e tampouco anti-herói (e eis como O Amigo Oculto mostra a insuficiência de O Clube da Luta ao glamurizar a segunda personalidade), mas reflexo nojento da própria tensão familiar – incapacidade de lidar com rejeição, traição, e no limite um novo complexo de Édipo que se cria, dessa vez psicótico – começando pelo "membro nobre" (homem, adulto, pai, professor, tudo que é o sujeito-suposto-saber), e não mais pelas margens do sistema. Nada a se defender até a morte; ainda assim O Amigo Oculto é o filme de terror-fantástico mais interessante a estrear nessas searas em um bom tempo. Um artesão que entrega em dia é algo a se louvar numa época em que todos acionam cedo demais seus holofotes de inventor – naturalmente, sem sê-lo.

Ruy Gardnier