OS FILMES WUXIA DE CHANG CHEH

Em meados dos anos 60, o cinema de Hong Kong vive um surto de recuperação do gênero wuxia pian (ou wuxia pien), tradicional gênero narrativo da cultura chinesa e existente no cinema chinês desde deu começo na década de 10. Geralmente centrado na figura feminina e narrando peripécias que misturam poderes mágicos, habilidade e alguma intriga romanesca. Na sua versão dos anos 60, formalizada por Come Drink with Me (de King Hu) e pelos filmes de Chang Cheh, o wuxia pian ganha novos moldes: a ficção aos poucos vai tendendo para os personagens masculinos, e a mágica assume ares mundanos, com saltos e vôos que brotam da técnica arrojada dos espadachins e não mais de uma origem sobrenatural. É comum tentar ver no wuxia dos anos 60 alguma coisa culturalmente autóctone, mas essas mudanças se dão em grande parte pela influência do cinema japonês de samurai (com os quais entretanto os heróis do cinema wuxia guardam poucas semelhanças em seu código de lealdade) e do cinema americano de ação. O fenômeno do wuxia pian dos 60 (e também o renascimento do wuxia pian nos 80 com Tsui Hark) é um caso bastante complexo e saudável de influência estrangeira vindo servir de adubo para um solo que só precisava de uma pequena ajuda para fertilizar.

Se excluirmos o atualmente invisível Tiger Boy e o um tanto híbrido The Magnificent Trio (1966), a série de wuxia pian que torna célebre a figura de Chang Cheh é The Trail of the Broken Blade (1967), One-Armed Swordsman (1967), Golden Swallow (1968), Return of the One-Armed Swordsman (1968) e Have Sword Will Travel (1969). Como a saga One-Armed... tem característica e vulto bastante próprios (renderam uma personagem inúmeras vezes retomadas, inclusive pelo próprio Chang Cheh em modelo pouco apropriado ao cinema wuxia, é uma produção que merece um estudo à parte. Ficamos, então, com três filmes que apresentam características muito semelhantes, e que, tanto em termos de produção quanto em elaboração visual e coreográfica, estabelecem um padrão para o cinema de Hong Kong que vem a seguir. Os três filmes lidam com intrigas de triângulo amoroso e amor não-correspondido, e equilbram a trama com batalhas de espada de forma bem diferente filme a filme, algumas vezes alcançando formas virtuosas de passagem.

A esse respeito, o começo de Have Sword Will Travel é rocambolescamente delicioso. Yun Piao-piao (Li Ching) pede ao noivo e colega de artes marciais Siang (Ti Lung) que se deite na relva, e, quando ele o faz, ela coloca um véu em seu rosto e dirige-se para o outro lado da estrada. Pelo caminho que se perde no horizonte, chega um grupo de arruaceiros (que depois descobriremos pertencer ao grupo de vilões que quer roubar um carregamento que em dias irá fazer seu percurso) e instantaneamente ataca Siang, que dilacera (posteriormente com a ajuda da amada) todos aqueles que tentam duelar com ele (a ficção obriga, todos aqueles que não são espadachins treinados sucumbem imediatamente à espada daqueles que tiveram treinamento, por mais numerosos que sejam). Nesses três filmes, a habilidade de lutador está intimamente ligada à fascinação feminina, e freqüentemente o amor da mulher se transfere para aquele que apresenta mais preparo na luta.

Mas em todos esses filmes, e isso pode se estender à obra de Chang Cheh como um todo, existe pouca demonstração positivada de vigor viril para impressionar as mulheres. Se há muito comportamento bárbaro nos personagens de Chang (por exemplo o começo de Heroic Ones, protagonizado por um clã de bárbaros da Mongólia), ele nunca significa uma ontologia do universo macho que se fecha em torno de si, como muito se costuma dizer. Geralmente, o sentimento evocado pelos filmes é mais o de fraternidade ou rivalidade leal dos protagonistas. Em The Trail of the Broken Blade, certamente o mais ligado à tradição antiga do wuxia, Kiu Chong e Wang Yu desenvolvem o mais forte laço afetivo do filme inteiro, num filme de trama inteiramente atrelada à questão do amor feminino.

Mas qual é o centro do encantamento que provoca Chang Cheh em seus wuxia pian, talvez ainda cedo em sua carreira o ponto alto de sua filmografia? Diríamos, esboçando uma resposta, que é a grande harmonia entre a trivialidade dos combates – apenas uma maneira de fazer a história evoluir, com elegância e apuro de decupagem dificilmente igualados – e o ritmo folhetinesco da trama. Com muito pouco ou quase nada em jogo do ponto de vista da densidade dramática, o caminho está livre para criar um universo de sonhos, nesse sentido respaldado e amplificado pela grande força visual das cores, pelos movimentos dos personagens, pelos rostos expressivos dos protagonistas masculinos e femininos, pelos cenários de estúdio que colam sobremaneira à mágica das situações, pela música um pouco desajeitada mas sempre encantatória que faz dos interlúdios amorosos algo maior-que-a-vida (bigger than life) e das cenas de ação thrillers banhados de sangue.

Muito se fala das grandes cenas de luta e batalha proporcionadas por Chang Cheh – que saibamos, jamais foi feita uma reavaliação crítica rigorosa do ponto de vista crítico, a grande parte de textos sobre ele cabendo a aficcionados em gênero, e voltado principalmente à fruição um tanto onanista das cenas de ação –, mas é preciso notar que há diversos tempos mortos soberbamente construídos e encenados em que a câmera parece se descolar de sua mera função narrativa para tecer intrigas visuais que falam por sí próprias. Em Have Sword Will Travel, a tensão para a cena principal do filme, a emboscada da torre, é construída com um único e longo plano, em carrinho lateral, do exército inimigo escondido atrás das folhagens.

Outra fonte infinita de força é a tensão entre o material e o imaterial. Como já se frisou mais de uma vez – como se frisa sempre, aliás, uma vez que o cinema de Chang só parece interessante para alguns na medida em que ele aumenta a contagem de corpos e o dilaceramento de corpos a um novo patamar na história do cinema –, há muito sangue derramado nas lutas, e isso não vale somente para os vilões, mas também para os heróis que, ensangüentados e por vezes transformados em cadáveres (Have Sword Will Travel, Golden Swallow). O sangue, a se ver pelo final de Have Sword Will Travel em que os três protagonistas vivem um diálogo final todos banhados em vermelho (deles próprios), é a prova final, a prova dos nove para mostrar que alguém tem um corpo que está vivo. Em contrapartida, as relações de amor entre homem e mulher ou de lealdade e/ou fraternidade entre amigos jamais é concretizada através de algo físico ou visível. Resta ao inefável dos olhares e à aparição da música não-diegética captar aquilo que o físico não mostra (o beijo, o toque) ou conjura. O material, instância em que o filme se movimenta, é o lugar dos choques e da morte. Mas é no imaterial que o jogo é jogado, é no imaterial que os movimentos se atenuam, e cristais de tempo passam a dominar: na visão que David Chiang tem quando descobre que sua amada vai se casar com Wang Yu em Have Sword Will Travel (ele prefigura em sua imaginação uma morte física para expressar a morte de suas esperanças quanto à amada) ou na dedicação de fidelidade à lápide do homem amado-e-morto em Golden Swallow.

Três filmes trágicos, espécie de constatação de que é só no imaterial mundo dos mortos que os amantes finalmente poderão se tocar, The Trail of the Broken Blade, Golden Swallow e Have Sword Will Travel são testemunhas de uma força incomum em engajar a imagem como elemento ativo e de fazê-la força motriz de pensamento (sobre a imagem, sobre o mundo). Belo começo para um homem de mercado, e que geralmente é visto como nada além de um encenador de assassinatos.


Ruy Gardnier

 

 




The Magnificent Trio (1966) e...

...Have Sword Will Travel (1969): o trabalho do imaterial