Há
uma tendência mais ou menos comum, expressa no
texto veiculado na própria cópia da Versátil,
de se tratar Obsessão como um marco zero
o da fundação do neo-realismo. A estréia
na direção cinematográfica de Luchino
Visconti, porém, é menos um marco e mais
uma marca tanto do início de um estilo pessoal
como de continuidade de um processo histórico,
o do cinema italiano dos anos 30-40 produzido sob o
fascismo, com mais ou com menos adesão ideológica
e estética. Obsessão é um
filme da guerra (não sobre a guerra, não
a II Guerra), da fase final do fascismo, da pré-disseminação
da resistência. Ainda é um capítulo
de um processo em andamento, não um marco de
uma ruptura ou inauguração.
Mesmo nos filmes de maior adesão ao fascismo,
o cinema italiano já manifestava características
neo-realistas, embora não ideologicamente, pois
esses filmes mantinham-se na imparcialidade política
ou legitimavam o regime. O cinema italiano havia iniciado
um projeto de renascimento ou retomada nos anos 30,
depois de uma crise avassaladora parcialmente causada
pela expansão de Hollywood. Para retomar seu
lugar nas telas, ajudando na construção
de um imaginário italiano audiovisual (projetado
e aprovado pelo fascismo, que desde 1926 mantinha o
regime de partido único), Mussolini adotou como
modelo, ironicamente, a própria avassaladora
Hollywood.
No entanto, na prática, havia diversidade mínima,
não modelo único. Os filmes podiam integrar
o segmento "telefone branco", com histórias
passadas em lugar algum, personagens bem vestidos e
cenários decorados com signos de riqueza, mas
também podiam ser do gênero "propaganda
patriótica", em geral composto por épicos
belicistas baseados em campanhas militares reais. Nos
dois casos, a câmera ia para o estúdio
e, no estúdio, recriava-se o mundo. Porém,
havia os filmes em que a câmera ia para a rua
e vilas, os dialetos eram empregados nos diálogos
e o elenco era de atores amadores.
O estilo pessoal de Visconti foi gestado, nos anos 30,
por sua convivência com Jean Renoir do qual
foi assistente em Toni (1934), Lês Bas-Fonds
(1936) e Une Partie de Campagne (1936). Renoir
foi uma referência mais cara ao neorealismo italiano,
ao lado de Marcel Carné, que o realismo soviético
ou os pré-realistas da própria Itália
(Martoglio nos anos 10, Soldati, Mattoli, e Blaseti
nos 30, no realismo-fascista). Soma-se a esse contato
direto de Visconti com uma das matrizes, Renoir, a afinidade
com os críticos da revista Cinema, entre os quais
os futuros cineastas De Sicca, Rossellini, De Santis
e Antonioni, que compunham um nicho de esquerda intelectual,
mas sob a direção de Vittorio Mussolini,
filho do Duce, cujo objetivo era usar a revista para
arejar o peso dos filmes fascistas. Para isso, queriam
realismo. Visconti ingressou nesse programa estético
e assinou alguns artigos na revista às vezes
escritos por outros.
A experiência com Renoir, o sobrenome respeitado
pelo regime, a cultura cinematográfica adquirida
em idas a Paris (onde respirou Eisenstein, Pudovkin
e Carné) e o fato de ser mais velho, já
passados os 30 anos, levou Cinema a adotá-lo.
Sua tarefa como integrante do núcleo seria filmar
uma adaptação de um livro de Verga (Amante
di Gramigna ou I Malavoglia), o escritor
escolhido para ser bússola desse realismo oficial,
que tinha então como fonte literária principal
D΄Anunzzio. Outras adaptações eram planejadas
pelo grupo, de Thomas Mann, Maupassant, Shaw e Melville,
mas a de Verga por Visconti era a protagonista do projeto
estético reformista. Verga era definido pelos
críticos de Cinema como o poeta do homem
siciliano, "sempre a viver de sofrimento e espera",
nas palavras empregadas pelo artigo de Mario Alicata
e Giuseppe de Santis em 1941, Verga e Poesia: Verga
e il Cinema Italiano. A cultura popular era ofertada
no lugar da oficial, com musicalidade e rebuscamento
formal. O regime não aprovou o filme.
Visconti ingressou nessa fase no Partido Comunista Italiano,
embora, por conta de sua origem aristocrática,
sempre tenha sido mantido como coadjuvante em ações
e discussões. Obsessão surgiu logo
após a adesão partidária, depois
de Visconti receber, de Jean Renoir, uma cópia
datilografada em francês do romance The Postman
Always Rings Twice, de James M. Cain, material literário
já visitado antes pelo cinema, por Tay Garnet
e Pierre Chanal, e razoavelmente próximo dos
conflitos de Toni, de Renoir. Os membros de Cinema,
como Alicata, De Santis e Puccini, colaboraram com a
adaptação, assim como Moravia (não
creditado). A filmagem foi realizada no Vale do Pó,
onde, nos mesmos dias, Antonioni rodava seu documentário
sobre a região (Gente do Pó). Na
montagem, Mario Serandrei, segundo Visconti, teria definido:
"esse é um filme neo-realista".
Obsessão elevou de imediato o nome de
Visconti à turma dos iniciantes malditos do cinema.
Embora haja fontes que garantam a aprovação
do Duce, outras garantem exatamente o contrário.
Após ver o filme, ele teria gritado: "Isso
não é a Itália". Mussolini
desmentiu depois, dizendo-se admirador de Visconti.
De qualquer forma, Obsessão foi retaliado
e retalhado. Cenas de um personagem, de forte conotação
sexual e política, foram jogadas fora. E a Igreja
conseguiu sua retirada de cartaz após alguns
dias de exibição. A visão do esfacelamento
conjugal e de uma sexualidade demolidora não
foi aplaudida pelos vigilantes da ordem.
Com a queda de Mussolini em julho de 1943 e a divisão
da Itália entre resistentes, o poder oficial
de Badoglio e as forças nazi-fascistas, Visconti
ingressou na ação política. Escondeu
fugitivos e, quando pegou em armas, foi preso (por três
meses). Solto, filma a execução de Pitero
Koch, chefe da Gestapo em Roma, para o projeto de Giorni
di Gloria (inconcluso). A administração
americana em Roma, em 1944, quer enterrar o cinema.
Cinecittá vira campo de refugiados. O grupo Cinema
ressurge, o neo-realismo nasce enquanto conceito e consolida-se
como prática com Roma Cidade Aberta (1945),
mas Visconti estava ausente dos sets.
Sem conseguir viabilizar filme algum, refugia-se no
teatro e por lá faz novas experiências.
Imprime seu perfeccionismo técnico nas montagens
e promove a internacionalização do repertório
um crime para os críticos nacionalistas e ainda
tão contaminados pelo fascismo. Dirige textos
de Cocteau, Hemingway, Sartre. Os espetáculos
são geradores de escândalos e alguns nem
conseguem aprovação para irem a algumas
cidades às vezes pelo vocabulário duro,
às vezes pela acidez de visão tendo
as forças conservadoras como vítimas.
As características das encenações
em palco, sobretudo a formulação de cenas
para sintetizar em um espaço condensado a relação
dos personagens com as forças contrárias
em seus ambientes, seriam evidentes em sua filmografia
afora.
Em 1948, retomando o interesse por Verga, filma A
Terra Treme. Era para ser a primeira parte de uma
trilogia sobre a Sicília, que seria completada
por um filme sobre camponeses e outro sobre mineiros.
As eleições estavam chegando e, com a
intenção de incrementar a campanha, os
comunistas patrocinaram A Terra Treme. Queriam
usar um documentário sobre pescadores como parte
da propaganda do PCI. Filmagem encrencada. A falta de
dinheiro levou a equipe a interromper mais de uma vez
o trabalho, Visconti injetou seu próprio dinheiro
na produção, a máfia siciliana
abriu a carteira por meio do Banco da Sicília,
seu braço legal.
A missão política, as dificuldades materiais
e o poder local, co-patrocinador do projeto, não
inibiram Visconti. A narração não
deixa dúvidas de que se trata de uma visão
de esquerda, marxista, maniqueísta em sua representação
das forças opostas (pescadores e comerciantes,
explorados e exploradores), mas o artista manifesta-se
nas escolhas de ângulos, na inserção
dos corpos em seu ambiente e na perseguição
de momentos de beleza, nos quais sua admiração
de juventude por Leni Riefenstahl vem à tela.
O projeto político funde-se com o projeto artístico.
Protagonizado pelos próprios pescadores e falado
no dialeto siciliano (de Aci-Trezza), A Terra Treme
sofreu cortes e foi dublado em italiano. No Festival
de Veneza, foi muito discutido. Sofreu ataques por fazer
imagem negativa da Itália no imediato pós-guerra.
Para alguns historiadores, é a consagração
do neo-realismo, enquanto para outros, é seu
fim. Talvez seja mais um capítulo de uma história
em andamento constante, a de Visconti e do cinema italiano
(nos anos 30-40), não o capítulo final
ou inicial do neo-realismo, cujas características
e datas mudam conforme o pesquisador e crítico.
Essa marca estilística em construção
nesses dois filmes iniciais, e desenvolvida nos posteriores,
privilegia o papel descritivo da câmera, que penetra
em ruas, salas, quartos e salões para ver esses
lugares integrados aos personagens (como suas roupas,
suas vozes, seus gestos, suas palavras), assim como
para integrar esses personagens em um sempre bem determinado
momento histórico e em uma sempre bem situada
classe social, de modo a não se desvincular a
individualidade do contexto gerador de parte de seus
conflitos. Cada personagem é sim um símbolo,
mas é também um humano. Visconti sempre
pôs os "eus" em perspectiva a dos
valores do mundo onde se formaram e onde vivem , prática
depois herdada por Martin Scorsese em vários
de seus filmes e por Olivier Assayas em Destinos
Sentimentais.
Essa operação contextualizadora deriva
tanto de suas ferramentas intelectuais, com as quais
propõe um entendimento das relações
sociais (não sem acender velas para o marxismo),
como de sua estratégia de arte politizada-politizante,
explicada por sua aparentemente paradoxal biografia.
Nascido em uma família milanesa com títulos
de nobreza (próxima à família real),
Visconti foi protagonista de hábitos de grã-fino
europeu em sua juventude, com um prolongado e constante
banho em manifestações artísticas
diversas e com uma não menos intensa e habitual
paixão por cavalos. Com as aproximações
com Renoir e com a esquerda francesa nos anos 30, substituiu
o anti-fascismo brando pelo anti-fascismo claro.
O cinema passava a ser visto a partir de sua conversão
à esquerda como uma forma de expressar uma visão
sobre os males da realidade ameaçados de se naturalizarem
como "males necessários", mas também
era e foi a possibilidade de se construir um mundo com
formas visuais dispostas com rigor no espaço
e iluminadas com a luz apropriada para se obter determinado
efeito ou significação, mesmo sendo este
mundo inventado pelo cineasta diretamente conectado
à Itália dos anos 40 (durante a Segunda
Guerra, em Obsessão, e pouco após
o fim dela, em A Terra Treme).
A arte e a militância em um primeiro momento,
e a arte e a interpretação histórica
(e de classe) em momento posterior, não entravam
em atrito a não ser em trechos específicos.
Nenhuma mensagem ou revelação de verdade
(social sempre), em Visconti, é privilegiada
em detrimento da busca artística. Nenhum conceito
ou conclusão sobre um segmento da sociedade,
ou sobre a sociedade toda, coloca em segundo plano o
artesanato da criação. Essa convivência
entre o singular e o sintomático, presente de
Obsessão e A Terra Treme a O
Leopardo e Violência e Paixão,
colocam em evidência a grande questão viscontiana:
as reações do homem a seu meio, a seu
momento histórico e aos conflitos de uns e outros.
Nenhuma subjetividade paira sobre o mundo em Visconti.
São produzidas por ele e também o produzem.
Cléber Eduardo
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