Em
1971, por ocasião da exibição de
Morte em Veneza no Festival de Cannes, Luchino
Visconti concedeu entrevista a Michel Ciment e Jean-Paul
Torok. A conversa permaneceu inédita até
a publicação em Luchino Visconti, Cineaste,
em 1984, organizado por Alain Sanzio e Paul-Louis Thirard.
Seguem alguns trechos:
Thomas Mann
"Saiu em Itália um artigo de Aristarco sobre
Morte em Veneza, mas ele é lukacsiano
declarado, ao passo que eu não o sou completamente.
É evidente que conheço tudo o que foi
feito, dito e escrito sobre Thomas Mann. É um
autor que sempre me acompanhou ao longo da minha vida
e das minhas criações. Ele, Proust e alguns
outros influenciaram-me muito. Digamos que m todos os
meus trabalhos há qualquer coisa ou de Proust,
ou de Mann ou de Dostoievski". Mann é um
homem fora de sua época e ao mesmo tempo um intérprete
profundo de sua época. Não há outro
escritor que tenha dado testemunho de uma sociedade
burguesa como Mann. Ele foi quem melhor testemunhou
as crises dessa sociedade"
Fellini e Rossi
"Rossi e Fellini são menos influenciados
do que eu pela literatura: é um problema de formação,
de cultura. Não posso dizer que sejam homens
incultos, mas penso que estão menos preparados.
Fellini é um fenômeno curioso, um monstro
do cinema, mas não tem grande formação
cultural do ponto de vista literário. Rossi é
mais jovem, mais desculpável. Mas com a idade
dele eu já era influenciado pela literatura,
por isso nossos caminhos são tão diferentes".
Narrativa
"É preciso voltar um pouco a uma espécie
de estilo narrativo balzaquiano. Até com Proust:
é preciso remetê-lo para essa dimensão.
E então pode-se fazer um filme. Mas, se você
correr atrás das especulações intelectuais
e sensitivas de Proust, nunca conseguirá fazer
um filme. Fará um magnífico documentário
sobre a obra de Proust, mas é outra coisa".
Marxismo
"Não sou assim tão marxista em certos
aspectos, o que por vezes me coloca em oposição
ao crítico Guido Aristarco. Ele escreveu que
a minha posição sobre o marxismo tem se
modificado desde há algum tempo, a partir de
Rocco, a partir de A Terra Treme, de filmes
assim. Diria ao senhor Aristarco que não sou
eu que mudo, mas as condições, são
as situações históricas que mexem
e evoluem. Que um homem que vive dentro da cultura,
do trabalho vivo da cultura, não pode deixar
de mexer e de mudar de posição".
Zoom
"Você acha que tem muito zoom em Morte
em Veneza? Se dispomos de meios que nos ajudam a
exprimir-nos, então penso que devemos utilizá-los
sem medida. Não julgo ter exagerado. Não
se dá muito por minha técnica, procuro
sempre que só se repare nela depois de se reparar
na história. Há muitos filmes que me dão
a impressão de serem só trabalho técnico.
Para mim, quero que a técnica venha em segundo
lugar, de forma quase a não se notar. Então,
talvez em uma história de olhares como Morte
em Veneza o zoom me ajudasse a dar a impressão
de que o olhar aproxima de um ser, de uma pessoa".
Bogarde e Mastroianni
"Mastroianni é um rapaz muito sério,
mas em Bogarde há um lado profissional inglês
que é muito mais profundo, uma espécie
de disciplina geral muito mais desenvolvida. Porque
Bogarde nunca abandonou a sua personagem durante Morte
em Veneza. Quando voltava para casa continua ainda
a ser Aschenbach. Foi Aschenbach dois meses e meio.
Mastroianni é um rapaz quem se vê spaghetti,
esquece completamente que e está a fazer Mersault
(Nota do Redator: personagem de O Estrangeiro,
de Albert Camus, adaptado, sem liberdade criativa, por
Luchino Visconti, que preferia Alain Dellon na pele
do personagem). Come, depois recomeça. É
italiano, um pouco ligeiro".
Comentários sobre os filmes:
Obsessão
(trechos de entrevista publicada em Il Contemporâneo,
24/4/1965)
"...comecei a pensar em fazer a transposição
para um meio itaiano, através de uma narrativa
sobre um certo tipo de sociedade italiano que permaneceu
intocável, o subproletariado do Vale do Pó".
"...queríamos mostrar uma espécie
de quadro da Itália, e penso que até certo
ponto o conseguimos".
"A palavra neo-realismo nasceu com Obsessão,
quando enviei os primeiros fragmentos de filme para
meu montador, Mario Serandrei. Passados uns dias, escreveu
dizendo que aprovava asquelas cenas. E acrescentou que
não sabia como definir aquele cinema, talvez
pudesse ser chamado de neo-realista".
"Narrativamente, Obsessão ainda estava ligado
a certas influências que eu recebera do cinema
francês, de Renoir, Duvivier, Carné. Nasce-se
sempre de alguma coisa. Mas aqueles seis anos de contatos,
de experiências e de relações diferentes
decerto produziram também uma ruptura na minha
maneira de me exprimir".
A Terra Treme
(trechos extraídos de artigo publicado em Vie
Nuove em 22 de outubro de 1960)
"...houve a guerra; com a guerra, a resistência
e, com a resistência, para um intelectual de minha
formação, a descoberta de todos os problemas
italianos simultaneamente como problemas de estrutura
e de orientação cultural, moral e espiritual".
"Gramsci fez me compreender, com a acuidade de
sua análise histórica e política,
que os problemas do Mezzogiorno eram os de uma sociedade
em decomposição e de um mercado de tipo
colonial explorado pela classe dirigente do Norte".
"A pedra angular dos estados de espírito,
da psicologia e dos conflitos é social, embora
as conclusões a que chego sejam apenas humanas
e digam respeito a indivíduos considerados como
tal".
"Meu pessimismo é da inteligência,
nunca o da vontade. Quanto mais a inteligência
se serve do pessimismo para procurar a verdade da vida,
mais, em meu entender, a vontade se arma de uma carga
otimista e revolucionária".
"Nunca trabalho a própria imagem. Nunca
pensei a imagem em si. Cada enquadramento não
é senão a conseqüência de um
anterior, a conseqüência natural. A Terra
Treme foi rodada com grande modéstia. Houve
sempre a preocupação contrário
ao formalismo, a de uma absoluta nudez".
Belíssima
(trechos de conversa com Michele Gandin, em 1/12/1951,
citada em catálogo de uma mostra sobre Visconti
em Modena em 1977)
"O argumento serve de base, é o esqueleto
do filme. Mas não se pode pré-estabelecer
nem a ação nem os diálogos definitivos.
Nos filmes realistas, os personagens spo podem dizer
as coisas de uma certa maneira e têm de encontrá-la".
"Rodo sempre sem fimagem direta. De Sica, é
verdade, faz dublar seus atores. Mas então, acabou-se.
Tudo perde o sentido. O problema é que não
sabem descobrir os atores. Selecionam-se seios e pernas,
mas não temperamentos".
"Se pertenço à corrente neo-realista
italiana? Seria preferível falar de realismo,
simplesmente. O grande erro de Germi, e também
o de De Sica, é não partirem de uma realidade
efetiva. Os vagabundos existem, tal como existem os
migrantes clandestinos. Mas finais como os de Milagre
em Milão e O Caminho da Esperança é
algo que não existe na realidade social. Trata-se
de uma perigosa mistura de realidade e romantismo. Não
podemos, não devemos evadir-nos da realidade.
No final de meus filmes, há mais esperança
que em voar numa vassoura".
Sedução da Carne
(trechos de entrevista para Jacques Doniol-Valcroze
e Jean Domarchi, nos Cahiers du Cinéma nš 93,
março de 1959)
"A Minha era traçar um quadro de conjunto
da história italiana, onde se destacaria a aventura
pessoal da condessa Serpieri, mas esta, no fundo, não
passava de representante de uma certa classe. O que
me interessava era contar a história de uma guerra
mal feita, feita por uma classe só e que foi
um desastre".
"O final previsto de início era diferente
daquele que se vê agora. Não terminava
com a morte de Franz. Víamos Lívia passar
entre os grupos de soldados bêbados, e todo o
final mostrava um pequeno soldado austríaco,
muito jovem, de cerce de 16 anos, completamente bêbado,
apoiado a um muro e a cantar uma canção
de vitória, como aquelas que se ouvem na cidade.
Depois parava, chorava, chorava e gritava: Viva a Áustria.
Fui obrigado a cortar. Queimaram o negativo. Gastaram
mais dinheiro para fazer a morte de Franz. Tentei fazer
o menos mal possível, mas para mim não
era o final de Senso".
"Senso é um melodrama: essa a razão
por que o iniciei com a seqüência no teatro.
Poderia ter encontrado mil outras maneiras de começar.
De fato, o argumento inicial começava de maneira
diferente, com a chegada das tropas italianas a Verona.
Num hospital era encontrada uma espécie de louca
que já não sabia quem era nem donde vinha.
Era a condessa Serpieri. Mas quando comecei a filmagem
compreendi que ao longo de todo o filme devia manter-se
esse clima de melodrama italiano, o do Trovador. Esse
filme foi influenciado por minhas experiências
no teatro"
Noites Brancas
(trechos de entrevista a Jean Domarchi e Jacques
Doniol-Valcroze nos Cahiersa du Cinéma nš 93,
março de 1959)
"As Noites Brancas é teatro na medida em
que é uma história a dois integralmente
rodada num cenário de estúdio. Adquire
assim ressonância teatral. Mas o filme poderias
igualmente ser rodado em cenários naturais, num
bairro de Livorno. Era impossível porque estávamos
no inverno, só poderíamos rodar algumas
horas, de noite apenas e tínhamos contratado
Maria Schell por período limitado. É evidente
que isso influenciou o estilo do filme"
"O nascimento de Noites Brancas tem mil
causas. Era uma das épocas mais difíceis
da produção italiana. Queríamos
fazer um filme que pudesse contar uma história
em um curto espaço de tempo, um filme que, sendo
realista como eu queria, desse ao mesmo tempo a possibilidade
de errar um pouco pelo sonho".
Rocco e Seus Irmãos
"Rocco segue mais determinadas regras,
ao passo que A Terra Treme não as segue,
elas não existem. Rocco já está
mais perto de uma maneira de contar, de escrever, ao
alcance de todos. Utilizei certos meios de que não
tive necessidade em A Terra Treme".
O Leopardo
(trechos de entrevista a Antonello Romadori, edições
Cappeli, Julliard)
"O pessimismo do príncipe Salina leva-o
a lamentar a queda de uma ordem que, por muito imóvel
que fosse, era apesar de tudo uma ordem, ao passo que
o meu pessimismo tende, não à nostalgia
da ordem feudal e bourbiana, mas à vontade de
estabelecer uma ordem nova".
"Meu filme não é nem pode ser uma
transição do romance para a imagem. Não
sou daqueles que se agarram fixamente à idéia
da especificidade do cinema, cavalo de batalha de uma
vanguarda já envelhecida e ultrapassada, e que
crê a tal ponto nas virtudes mágicas da
câmera que julgam fazer verdadeiro cinema quando
se limitam à transferência pura e simples
de qualquer elemento de um livro para um filme. Um filme
deve possuir sua própria originalidade de expressão
e não falo apenas do elemento visual".
"Em O Leopardo julgo ter feito algum progresso.
Os elementos histórico-políticos não
prevalecem sobre os demais: correm nas veias das personagens
comu uma parte essencial da sua seiva vital: em algumas,
afloram e se manifestam claramente, em outras encontram-se
apenas no estado de sedimentos opacos, ou limitam-se
a aparecer e desaparecer rapidamente. É inútil
procurar no meu filme essa posição cética
entre sentimentos individuais e paixões coletivas,
entre impulsos irracionais do coração
e movimentos reais da história. Tentaram situar
essa obra, apesar de nitidamente inserida na linha do
neo-realismo, no que se convencionou chamar de literatura
da angústia"
"O tema central de O Leopardo não
me interessou apenas como crítico implacável
do progresso, como recusa absoluta de todas as transformações
que, à maneira de uma capa de chumbo, pesam sobre
nosso país e impediram até hoje qualquer
mudança verdadeira, mas também, de um
ponto de vista universal e atual, com tendência
a vergar às regras da ordem antiga o impulso
do mundo para uma nova ordem e, logo, a submeter essa
ordem de algum modo à ordem antiga".
Morte em Veneza
"O tema desta narrativa, ainda que transformado
em morte da arte ou preponderância da política
sobre a estética, continua presente. Sempre me
atraiu a possível divergência entre as
aspirações estéticas e a vida de
um artista, entre a sua existência, que aparentemente
ultrapassa a história, e a sua participação
nas condições históricas burguesas".
Luchino Visconti
(seleção e tradução do francês:
Cléber Eduardo)
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