Após
os esforços para a realização de
Ludwig – um filme monumental em todos os sentidos
– e com a saúde seriamente debilitada após
um AVC que lhe confinou a uma cadeira de rodas, Luchino
Visconti vislumbra o aproximar-se do fim da vida e procura
fazer de seu filme seguinte, se não um acerto
de contas, ao menos uma reflexão sobre aspectos
do seu tempo. Então, como vinha se tornando cada
vez mais raro em sua obra, Visconti trabalha com um
roteiro original – escrito com os parceiros habituais
Suso Cecchi D’Amico e Enrico Medioli – e de ação
contemporânea. Retoma também a colaboração
com Burt Lancaster para realizar Violência
e Paixão, um filme de cunho mais intimista
(ao menos para os padrões Visconti).
Lancaster incorpora um intelectual aposentado – a quem
o filme se refere apenas como O Professor – que vive
isolado em seu apartamento, cuidando de sua coleção
de pinturas. Vale ressaltar que o título em inglês
(Conversation Piece) se refere aos quadros de
interesse do Professor, pinturas do século XVIII
que retratam cenas da intimidade de famílias
nobres e burguesas. Visconti se concentra, portanto,
no retrato da intimidade do Professor quando este se
vê praticamente forçado a alugar um apartamento
vazio também de sua propriedade, localizado no
andar superior à sua residência. Seus inquilinos
são uma família de posses e origem nobre,
mas, aos olhos do Professor, de hábitos vulgares
e decadentes. O contato com essa família irá
transtornar de maneira extrema a existência pacata
e reclusa do protagonista. Visconti deixa esse choque
bem claro ao iniciar o filme com o som de um estrondo.
Se não podemos considerar sob todos os aspectos
o Professor como um alter-ego de Visconti, uma
vez que este declaradamente afirmou não compartilhar
de seu caráter excessivamente reservado e quase
misantropo, é certo que o cineasta se utiliza
dele para fazer uma reflexão sobre o papel, não
somente do intelectual, mas também do cidadão,
perante a sociedade e o mundo que o cercam. Em diversos
aspectos, o Professor se aproxima do Príncipe
Salina, também vivido por Burt Lancaster em O
Leopardo, mas se o Príncipe tenta, mesmo
com muito sacrifício, compreender e se adaptar
às transformações de seu tempo,
o Professor a princípio isola-se e se omite.
Mas Visconti certamente partilha com o Professor o estranhamento
de um homem idoso e erudito perante um mundo que sofrera
intensa transformação – estamos no início
da década de 1970 – e com o qual seus valores
certamente não mais se identificam. O que Visconti
discorda, com relação ao Professor, é
o fato dele utilizar essa não-identificação
como um motivo para isolamento e omissão em relação
ao mundo contemporâneo, já que o Professor
tenta justificar seu desencanto. "Os intelectuais
da minha geração tentam achar um equilíbrio
entre política e moral; e essa é uma procura
pelo impossível", ele diz. Visconti, ao
menos, não parece ter desistido dessa procura
mesmo no fim da vida.
Se não chega a ser o tema principal do filme,
não podemos deixar de considerar em Violência
e Paixão a questão da solidão.
Mesmo incomodado pelo comportamento do grupo, o Professor
não deixa de projetar na Marquesa (Silvana Mangano),
sua filha Lietta (Claudia Marsani), seu cunhado (Stefano
Patrizi) e principalmente seu jovem amante Konrad (Helmut
Berger) uma afeição e vislumbrá-los
como o núcleo familiar que falhara em construir
ao longo da vida. Na ligação entre o Professor
e Konrad, misto de afeto paternal e desejo platônico,
ficam patentes traços da relação
entre Visconti e o ator Helmut Berger, seu companheiro
desde fins dos anos 60. E durante o jantar e a subseqüente
conversa ao café, Visconti concretiza em seu
filme, de forma ao mesmo tempo carinhosa e cruel, o
retrato de um grupo familiar sugerido pelo título
original. A este grupo familiar integra-se perfeitamente
a cenografia, nunca gratuita, como é característica
do diretor, aqui restrita ao apartamento do Professor,
pródigo em livros e obras de arte, e ao imóvel
alugado – sempre em transformação – finalmente
apresentado como um exemplo de vulgaridade.
Passa também por Violência e Paixão
a crítica – recorrente na obra de Visconti –
à corrupção e à decadência
das classes dominantes, principalmente na figura da
Marquesa e seu marido, um rico industrial que, segundo
ela, "jamais leu um livro na vida, mas tem mania
de manter salas cheias de livros". É a partir
desse marido, que não aparece em cena, mas tem
papel preponderante na conclusão da trama, que
Visconti aproveita para se situar – e a seu filme –
politicamente perante a sociedade italiana da época,
denunciando a ascensão de uma política
radical de direita, que beirava uma espécie de
neofascismo. Ao defrontar-se com esse quadro, não
sem conseqüências trágicas, o Professor
se vê – assim como o diretor à época
– com a saúde abalada. Mas se a personagem se
deixa levar e parece aguardar a morte inexorável
de forma passiva, numa seqüência final banhada
em rara beleza, assim como todo o filme, Visconti, ao
contrário, jamais deixa de seguir em frente e
dar incansável prosseguimento a seu trabalho.
Seu próximo (e derradeiro) passo foi realizar
um outro retrato de família, retornando a uma
adaptação literária e à
produção de época. Partindo de
um romance de Gabrielle D’Annuzzio, ambientado no seio
da aristocracia italiana do século XIX, O
Inocente é um daqueles momentos, assim como
O Leopardo ou Morte em Veneza, nos quais
Luchino Visconti atinge a superior maestria de trabalhar
com a suntuosidade da reconstituição de
época para retratar, com uma minúcia de
detalhes, não somente um tempo e um local, mas
também cada aspecto do comportamento e caráter
das personagens. Inspirados no mestre, muitos cineastas
tentaram repetir esse feito, alguns até com bastante
êxito – como, por exemplo, Martin Scorsese em
A Época da Inocência ou Robert Altman
em Assassinato em Gosford Park – mas nunca igualando
o patamar de perfeição delineado por Visconti.
Temos aqui mais uma vez, e talvez com a maior intensidade
de toda a carreira de Visconti, o retrato da crueldade
das classes dominantes e sua submissão cega e
quase desumana às regras e convenções
sociais. Desde o início, este universo rígido
fica perfeitamente demarcado com a chegada do rico senhor
Tulio Hermil (Giancarlo Gianinni) a um sarau onde estão
presentes sua esposa Giulianna (Laura Antonelli) e sua
amante Teresa (Jennifer O’Neill). Mesmo abalado com
o incidente, Tulio parte ao encontro de Teresa. Giulianna
é apresentada como uma mulher como tantas de
seu convívio, submissa, resignada e sabedora
das infidelidades socialmente toleradas do marido. Cada
vez mais abandonada, quando Tulio sai em viagem ao lado
da amante, Giulianna é apresentada pelo cunhado
a um jovem escritor em ascensão, Filippo D’Arborio
(Marc Porel). Ao regressar, Tulio vai aos poucos tomando
conhecimento de um possível envolvimento entre
a esposa e o escritor. Estranhamente, essa súbita
descoberta da sexualidade de Giulianna faz renascer
em Tulio o interesse por ela, mas a paixão não
pode durar quando ela se revela grávida de Filippo.
Giulianna insiste em prosseguir com a gravidez, apesar
do desejo de Tulio em interrompê-la. Quando a
criança nasce, Tulio, dominado por um egoísmo
doentio, mesmo após a morte do escritor por motivo
de saúde, é levado a um ato de impensável
crueldade que irá determinar sua ruína
moral e psicológica.
Partindo das idiossincrasias de Tulio, figura da mais
intensa perversidade, porém capaz de momentos
de grande ternura, Visconti traça seu mais impiedoso
retrato de uma aristocracia decadente. Tulio é
capaz de qualquer atitude, por mais ignominiosa que
seja, ao se considerar acima de qualquer justificativa
ou punição, seja ela pela justiça
dos homens (por sua condição social) ou
pela justiça divina (por ser ateu). Ao final,
será ele próprio o seu único juiz.
Mas mesmo fazendo uma crítica amarga a seu protagonista
e a tudo aquilo que ele representa, Visconti mostra
em O Inocente alguns dos planos e seqüências
mais belos de toda a sua carreira. É inesquecível
o close up no qual a tela do Cinemascope é
dominada pelos olhos de Jennifer O’Neill, como é
inesquecível o passeio de Tulio e Giulianna pela
área externa da casa de campo, com seus rostos
sendo sucessivamente ocultados e revelados pelas plantas
do jardim, e também o plano final, ao mesmo tempo
mordaz e poético.
Lutando contra a morte, Visconti encerra sua carreira
com uma obra-prima absoluta e incontestável.
É o testamento final de um homem que, mesmo de
forma paradoxal às suas origens e à sua
formação, assumiu convicções
fortes e libertárias, sem nunca se omitir perante
as questões de seu tempo. Mas cuja maior contribuição
à sociedade em que viveu se deu realmente através
de sua arte.
Gilberto Silva Jr.
(Violência e Paixão:
DVD Versátil/VHS Globo Vídeo
O Inocente: DVD Versátil/VHS Videocast)
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