Adaptação
do conto homônimo de abertura do livro Nuore
Storille, escrito pelo arquiteto e escritor italiano
Camilo Boito em 1883, Senso é um melodrama
épico de beleza plástica monumental, em
que a especial atenção dada por Visconti
nos quesitos direção de arte/ figurino
em filmes posteriores é amplamente iniciada.
A partir de um pano de fundo histórico não
tão pano de fundo assim, nos é narrada
a trama protagonizada por dois componentes de lados
opostos de uma guerra. De um lado temos a condessa veneziana
Lívia Serpieri e do outro o oficial austríaco
Franz Mahler (primeira referencia feita por Visconti
ao compositor pós-romântico austríaco
Gustav Mahler). A guerra em questão são
os embates bélicos que fizeram parte do processo
de unificação italiana. Se em O Leopardo
a ação se desenrola entre os anos 1860-1862,
na Sicília, durante a derrubada da monarquia
dos Bourbon pelas forças de Garibaldi, aqui o
recorte da unificação se centra no norte
que em 1866 se inicia na luta contra a dominação
austríaca.
A abertura do filme no La Fenice, durante a encenação
de Il Trovatore de Verdi, nos fornece o esboço
do clima de euforia e agitação política
que sobrevoava a região do Veneto naquela primavera
de 1866. Ao contrário da mulher do conto de Boito,
a condessa Serpieri de Visconti não é
uma aristocrata fútil e narcisista e sim uma
nobre portadora de consciência política
e de sentimentos nacionalistas. Julgando-se ser "uma
mulher verdadeiramente italiana", ela se opõe
ao marido, um notório colaborador dos austríacos,
e admira o caráter do primo Roberto Ussoni, um
dos líderes da resistência. É justamente
esse ímpeto nacionalista e o seu senso de justiça
que a levará ao encontro de seu futuro amante.
Ele, porém, diferentemente dela, se mostrará
logo nos primeiros diálogos um homem apolítico
e perdido no meio do conflito. A característica
que os une é o extremo individualismo que possuem.
Lívia, apesar do engajamento demonstrado no inicio
colocará sempre em primeiro lugar seus valores
individuais em detrimento de seu posicionamento ideológico,
chegando ao extremo de aplicar o dinheiro da resistência
na compra do atestado médico de Mahler. Provavelmente
leitora das novelas que enalteciam os ideais românticos,
Lívia é uma típica mulher de sua
época, que influenciada por um pensamento dominante
que exacerba o individualismo e coloca o amor idealizado
como bem maior, age segundo esses preceitos elegendo
o seu amante como o representante número um da
sua lista de prioridades vitais. Mahler, por sua vez,
não compartilhando esses ideais românticos,
é um hedonista de carteirinha que direciona o
seu individualismo para a concretização
de seus desejos carnais. Pensando somente em seus prazeres,
ele desconhece sentimentos nacionalistas e ímpetos
ideológicos. Despreza a guerra mais por não
compreendê-la do que pela evidência de seu
horror.
Assim Visconti desenvolve psicologicamente esses dois
personagens ambíguos que, assim como os lados
que representam (os subjugados italianos e os dominadores
austríacos), não são bons nem maus
e sim humanamente e terrivelmente fracos. A fraqueza
e a irracionalidade do excesso de sentimentalismo (Lívia)
e a fraqueza de ser escravo do desejo e do instinto
(Mahler). A História apresenta um notável
papel estratégico, tendo sempre que ter um número
razoável de anos ou séculos para enfim
se transformar em História com H maiúsculo.
Quando ela acontece diante de nossos olhos, quando a
ela somos contemporâneos, irremediavelmente e
sem dó nem piedade a História nos engole.
É exatamente assim que ela aparece em Senso:
imensamente maior que os seus personagens.
Boito escreveu seu conto cerca de 20 anos após
os acontecimentos, não tendo o distanciamento
de Visconti ao realizar Senso. E o sentimento
de horror à guerra expresso no filme, principalmente
através das falas de Mahler e de algumas cenas
de batalha, obviamente se dá devido à
proximidade do ano da filmagem em relação
ao fim da Segunda Guerra Mundial. Em seu discurso final,
na seqüência em que humilha a condessa Serpieri,
Franz Mahler além de decretar o seu repúdio
ao conflito amplia toda a sua dimensão trágica
sugerida anteriormente. Assim como o príncipe
de Salina em O Leopardo, ele é o representante
de um mundo que está preste a se transformar
em um amontoado de escombros. O império austríaco
está em inevitável decadência e,
ao enxergar o seu próximo fim, ele também
vê a sua substituição por um novo
mundo do qual o primo revolucionário de Lívia
é o seu anunciador. A troca de um mundo/geração/ideais
por outro é um tema muitas vezes revisitado por
Visconti. Ao falar para a sua ex-amante "não
sou seu herói romântico", o homem
culpado e diminuído por se considerar um covarde
desertor está acenando mais uma vez para a morte
de uma concepção de mundo. E minutos depois,
na seqüência de seu fuzilamento em um plano
geral em que não conseguimos ver o seu rosto,
apenas o vulto de seu corpo no escuro ao som de tambores
fúnebres, constatamos que sua profecia enfim
se realizou.
Estevão Garcia
(DVD Versátil/VHS Videocast)
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