SEDUÇÃO DA CARNE
Luchino Visconti, Senso, Itália, 1954

Adaptação do conto homônimo de abertura do livro Nuore Storille, escrito pelo arquiteto e escritor italiano Camilo Boito em 1883, Senso é um melodrama épico de beleza plástica monumental, em que a especial atenção dada por Visconti nos quesitos direção de arte/ figurino em filmes posteriores é amplamente iniciada. A partir de um pano de fundo histórico não tão pano de fundo assim, nos é narrada a trama protagonizada por dois componentes de lados opostos de uma guerra. De um lado temos a condessa veneziana Lívia Serpieri e do outro o oficial austríaco Franz Mahler (primeira referencia feita por Visconti ao compositor pós-romântico austríaco Gustav Mahler). A guerra em questão são os embates bélicos que fizeram parte do processo de unificação italiana. Se em O Leopardo a ação se desenrola entre os anos 1860-1862, na Sicília, durante a derrubada da monarquia dos Bourbon pelas forças de Garibaldi, aqui o recorte da unificação se centra no norte que em 1866 se inicia na luta contra a dominação austríaca.

A abertura do filme no La Fenice, durante a encenação de Il Trovatore de Verdi, nos fornece o esboço do clima de euforia e agitação política que sobrevoava a região do Veneto naquela primavera de 1866. Ao contrário da mulher do conto de Boito, a condessa Serpieri de Visconti não é uma aristocrata fútil e narcisista e sim uma nobre portadora de consciência política e de sentimentos nacionalistas. Julgando-se ser "uma mulher verdadeiramente italiana", ela se opõe ao marido, um notório colaborador dos austríacos, e admira o caráter do primo Roberto Ussoni, um dos líderes da resistência. É justamente esse ímpeto nacionalista e o seu senso de justiça que a levará ao encontro de seu futuro amante. Ele, porém, diferentemente dela, se mostrará logo nos primeiros diálogos um homem apolítico e perdido no meio do conflito. A característica que os une é o extremo individualismo que possuem. Lívia, apesar do engajamento demonstrado no inicio colocará sempre em primeiro lugar seus valores individuais em detrimento de seu posicionamento ideológico, chegando ao extremo de aplicar o dinheiro da resistência na compra do atestado médico de Mahler. Provavelmente leitora das novelas que enalteciam os ideais românticos, Lívia é uma típica mulher de sua época, que influenciada por um pensamento dominante que exacerba o individualismo e coloca o amor idealizado como bem maior, age segundo esses preceitos elegendo o seu amante como o representante número um da sua lista de prioridades vitais. Mahler, por sua vez, não compartilhando esses ideais românticos, é um hedonista de carteirinha que direciona o seu individualismo para a concretização de seus desejos carnais. Pensando somente em seus prazeres, ele desconhece sentimentos nacionalistas e ímpetos ideológicos. Despreza a guerra mais por não compreendê-la do que pela evidência de seu horror.

Assim Visconti desenvolve psicologicamente esses dois personagens ambíguos que, assim como os lados que representam (os subjugados italianos e os dominadores austríacos), não são bons nem maus e sim humanamente e terrivelmente fracos. A fraqueza e a irracionalidade do excesso de sentimentalismo (Lívia) e a fraqueza de ser escravo do desejo e do instinto (Mahler). A História apresenta um notável papel estratégico, tendo sempre que ter um número razoável de anos ou séculos para enfim se transformar em História com H maiúsculo. Quando ela acontece diante de nossos olhos, quando a ela somos contemporâneos, irremediavelmente e sem dó nem piedade a História nos engole. É exatamente assim que ela aparece em Senso: imensamente maior que os seus personagens.

Boito escreveu seu conto cerca de 20 anos após os acontecimentos, não tendo o distanciamento de Visconti ao realizar Senso. E o sentimento de horror à guerra expresso no filme, principalmente através das falas de Mahler e de algumas cenas de batalha, obviamente se dá devido à proximidade do ano da filmagem em relação ao fim da Segunda Guerra Mundial. Em seu discurso final, na seqüência em que humilha a condessa Serpieri, Franz Mahler além de decretar o seu repúdio ao conflito amplia toda a sua dimensão trágica sugerida anteriormente. Assim como o príncipe de Salina em O Leopardo, ele é o representante de um mundo que está preste a se transformar em um amontoado de escombros. O império austríaco está em inevitável decadência e, ao enxergar o seu próximo fim, ele também vê a sua substituição por um novo mundo do qual o primo revolucionário de Lívia é o seu anunciador. A troca de um mundo/geração/ideais por outro é um tema muitas vezes revisitado por Visconti. Ao falar para a sua ex-amante "não sou seu herói romântico", o homem culpado e diminuído por se considerar um covarde desertor está acenando mais uma vez para a morte de uma concepção de mundo. E minutos depois, na seqüência de seu fuzilamento em um plano geral em que não conseguimos ver o seu rosto, apenas o vulto de seu corpo no escuro ao som de tambores fúnebres, constatamos que sua profecia enfim se realizou.


Estevão Garcia

(DVD Versátil/VHS Videocast)