Em
das mais ternas seqüências jamais filmadas,
Rocco (Alain Delon) e Nadia (Annie Girardot) conversam
no pequeno café. Ele presta serviço militar,
ela acaba de sair da prisão: o encontro fortuito
dos dois sela o trágico amor que move Rocco
e Seus Irmãos, Leão de Prata no Festival
de Veneza de 1960, bem como demonstra a natureza eminentemente
pura e bondosa do protagonista, o qual ao mesmo tempo
em que se sente nostálgico quanto à terra
natal, no Sul, nutre fé inabalável em
relação à beleza do mundo.
Rocco é o herói positivo tão admirado
por Lukács, capaz de atuar sobre a realidade
e, dessa forma, altera-la (e melhora-la), ao contrário,
por exemplo, do príncipe Salina de O Leopardo,
essencialmente passivo, que observa, impotente, o desmoronamento
da sociedade aristocrática da qual faz parte,
pois não controla o processo histórico
que se dá à sua revelia e que, por fim,
o engole. Herdeiro conceitual do príncipe Mishkin
de O Idiota, de Fiódor Dostoiévski, a
inocência de Rocco frente às crueldades
cometidas pelos homens, sejam elas na instância
pessoal ou social, e sua imensa compaixão pelo
sofrimento alheio, levam-no ao sacrifício – tornar-se
boxeador, contra a vontade, além de abdicar do
grande amor – a fim de salvar a família, cuja
unidade é abalada pela paixão doentia
de Simone (Renato Salvatori) pela prostituta Nadia.
Vítima das más influências que adquire
em Milão e da fama repentina trazida pelo boxe,
Simone encarna o tijolo que, como narra Rocco ao irmão
mais novo, Lucca (Rocco Vidolazzi), atirado à
sombra durante a construção assegura que
a casa permaneça de pé.
A família Parondi migra do Sul para Milão,
com o intuito de se encontrar com o irmão mais
velho, Vincenzo (Spiros Focas). Sem moradia, são
abrigados em cortiço onde o Estado acolhe os
sem-teto. Inicialmente vivendo de pequenos bicos, como
retirar neve das ruas, os Parondi ascendem na sociedade
apesar das vicissitudes: Rocco une-se ao exército,
enviando o dinheiro à mãe, Rosaria (Katina
Paxinou), Ciro (Max Cartier) consegue emprego na montadora
da Alfa Romeo e Simone consagra-se através do
boxe. As tentações oferecidas pela florescente
Milão, canteiro de obras que se recupera economicamente
da destruição causada pela Segunda Guerra
Mundial, tais quais o sexo fácil da prostituição,
a fama instantânea fabricada pelos meios de comunicação
de massa, ávidas por heróis descartáveis
para o consumo das multidões, e o dinheiro sujo
que rola solto devido aos negociantes interesseiros,
terminam por seduzir Simone, cujo desvirtuamento pessoal
ocasiona a desagregação do seio familiar
e força a intervenção de Rocco
para salvar o que resta nos escombros.
Após a suntuosidade operística da aristocracia
em meio ao Risorgimento em Sedução
da Carne e o conto-de-fada fantasioso e romântico
adaptado de Dostoiévski em Noites Brancas,
Luchino Visconti retorna, com Rocco e Seus Irmãos,
ao enfoque do cotidiano das camadas mais baixas da população
na Itália contemporânea. Entretanto, se
no neo-realismo mostra-se o país no imediato
pós-guerra, destruído e miserável,
agora o cineasta o apresenta no passo seguinte, ou seja,
na reconstrução, catapultada pelos recursos
financeiros americanos oriundos do Plano Marshall e
marcada pelo impacto do acelerado desenvolvimento capitalista
nas relações sociais. No pós-neo-realismo
sugerido por Visconti, verifica-se o choque dos novos
valores herdados da modernização econômica
com os tradicionais, arraigados culturalmente há
séculos, o qual precipita a desestruturação
da célula em que se edifica a identidade nacional:
a família.
É a Itália que se convulsiona, com a migração
dos trabalhadores pobres do Sul rumo ao Norte desenvolvido,
em busca de melhores condições de vida.
Para dar origem aos novos tempos, visualizados nos prédios
que se erguem na paisagem, o velho país precisa
morrer, e com ele seus valores: Visconti faz com que
o contexto social em ebulição reflita
nos relacionamentos afetivos, de sorte que a decaída
de Simone não somente aponta para a última
tentativa de resgatar a família, como também
para o tijolo o que, dispensado, serve para garantir
a sociedade capitalista que nasce das cinzas. Rocco,
no entanto, igualmente se sacrifica pela Ordem a qual
se impõe (a história contada para Lucca,
que Visconti associa, através do travelling em
direção à fotografia, a Simone,
na verdade refere-se ao próprio protagonista),
uma vez que aceita se submeter ao boxe – visto como
meio privilegiado para ascensão social –, a fim
de tentar, em vão, que os cinco filhos de Rosaria
se mantenham unidos como os cincos dedos da mão.
Rocco e Seus Irmãos se encaminha para
a tragédia, com a luta fratricida entre o herói
e Simone pela posse de Nadia. Incapazes de agir de outra
maneira, pois, lembrando Brecht, são as margens
que o oprimem que tornam o rio violento, os membros
da família se voltam uns contra os outros, até
que Ciro decida a sorte de Simone, ao entrega-lo à
polícia pelo assassinato de Nadia ("Tutto
è finito adesso", diz Rocco, concomitante
à porta que se fecha ao longe). Mas, antes de
ler o filme por intermédio da concepção
marxista, com a vitória do trabalho, representada
pelo operário da Alfa Romeo, enquanto síntese
do conflito entre o capital modernizante e as tradições
da Itália arcaica, Visconti prefere concluir
Rocco e Seus Irmãos se voltando para Lucca
que, como o doce vagabundo de Charles Chaplin, afasta-se
da câmera, pela rua, rumo ao horizonte: de todos
os valores, novos ou antigos, absolutamente contingentes
e passageiros, o único que perdura é a
esperança.
Paulo Ricardo de Almeida
(DVD Versátil/VHS Cult
Filmes)
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