RAY
Taylor Hackford, Ray, EUA, 2004

A estrutura de Ray é muito curiosa: a biografia do astro da música é montada como um conjunto de blocos centrados na lógica da invenção de seus clássicos. Todo o filme é feito de historinhas que dizem: “O que estava acontecendo na vida de Ray Charles, o homem, quando Ray Charles, o mito, compôs/gravou o sucesso Tal”. A essa mecânica une-se à operação suprema do clichê biográfico: a reconstituição circense (sim, porque se trata sempre de uma questão de realização, não de interpretação) do personagem pelo ator. Em vários sentidos, Ray é Jamie Foxx. Sobre o ator foi lançada a responsabilidade de fazer o filme, em suas reprodução gesticular e fonoaudiológica do personagem.

Nesse sentido, se o filme se esmera para ser uma biografia, esforça-se pouco para ser um filme. E, por conta disso, perde-se mesmo como narrativa de uma história de vida: Ray é um culto, mas não se pode saber exatamente a quê. Cheia de si de se dizer “o homem para além do mito”, a película é pura mitificação, bloco a bloco. Parece mesmo uma minissérie de TV, que recorre a recursos didáticos (efeitos digitais inexplicáveis em uma tela de cinema, por exemplo).

E por mais irônico que isso possa parecer, Ray é um filme que parece lutar contra a visualidade. Sua fotografia de performatismos de iluminação e de angulações “espertas”, curiosamente, produz imagens mais informativas do que expressivas. Não há incertezas em Ray. O filme diz, simplesmente. É um filme-máquina, cujas informações não são dadas à interpretação, e sim simplesmente à recepção.

Poder-se-ia imaginar, claro, que o filme recusa-se à uma visualidade importante para valorizar o som – os assessores de imprensa adorariam dizer isso. Mas, não é o caso também: o som do filme só serve à música. Mas o filme não quer falar de música, o que transforma o investimento em uma elaboração sonora - que, no final, soa inexpressiva - algo sem porquê. Não vale nem a anedota de que “Ray é um filme para se ver de olhos fechados”, porque a música do filme é apenas um acessório.

Além disso, um dos traços mais grotescos do filme é parecer um daqueles institucionais feitos para mostrar como as drogas são prejudiciais a um personagem. O filme tem uma tese moral e se constrói em torno dela: Ray Charles não é personagem de sua própria história, mas da história - eternamente retornada - da celebridade que sucumbe à perda de controle que as drogas representam. E não se trata de ser contra ou a favor das drogas, mas contar uma história em que a droga é não um componente de uma trilha de destruição, e sim uma em que o personagem - de importância histórica - vira coadjuvante de uma saga da substância em questão. O Ray Charles de Ray não é herói, é escada e cavalo da heroína.

Mas se é moralmente indefensável - não por sua postura moralista, mas por sua mecânica desumana e desumanizadora -, Ray é menos defensável ainda esteticamente. Não apenas pela já comentada aqui preguiça de se conferir mais interpretação e menos espelhamento na interpretação do(s) ator(es), mas também, e sobretudo, pelo desejo estagnante de produzir um personagem em que caibam os problemas que o roteiro quer levantar. A representação do trauma de infância do menino Ray, que volta a ele na forma de uma “água da consciência” que brota do chão não é apenas um recurso juvenil, é também um projeto da pior das intenções: a morte do irmão de Ray é uma desculpa.

Isso porque se o filme todo é montado para fazer da heroína seu personagem central e de Ray Charles mais uma de suas vítimas padrão, ao mesmo tempo, ele também constrói uma justificação para seu vício: aplacar a dor da perda. Não é para ampliar horizontes que Ray se droga, é para reduzi-los. E, nesse sentido, ele propõe aquilo que de pior uma certa moralidade capitalista enuncia: o self-made man é predestinado e sofre não porque mereça, mas sim pela redenção. Mais que isso, ele enuncia que a perda de controle e a desgraça vêm não como resultado de processos, mas como uma ação externa. Sulista, Ray é religioso e, até por isso, é aberto a possessões demoníacas. Para o filme, sua saga é a do papel que a música teve não em sua mecânica de sofrimento e libertação e sim na de possessão e exorcismo.

Alexandre Werneck