A estrutura de Ray é
muito curiosa: a biografia do astro da música é montada
como um conjunto de blocos centrados na lógica da invenção
de seus clássicos. Todo o filme é feito de historinhas
que dizem: “O que estava acontecendo na vida de Ray
Charles, o homem, quando Ray Charles, o mito, compôs/gravou
o sucesso Tal”. A essa mecânica une-se à operação suprema
do clichê biográfico: a reconstituição circense (sim,
porque se trata sempre de uma questão de realização,
não de interpretação) do personagem pelo ator. Em vários
sentidos, Ray é Jamie Foxx. Sobre o ator foi
lançada a responsabilidade de fazer o filme, em suas
reprodução gesticular e fonoaudiológica do personagem.
Nesse sentido, se o filme se esmera para ser uma biografia,
esforça-se pouco para ser um filme. E, por conta disso,
perde-se mesmo como narrativa de uma história de vida:
Ray é um culto, mas não se pode saber exatamente a quê.
Cheia de si de se dizer “o homem para além do mito”,
a película é pura mitificação, bloco a bloco. Parece
mesmo uma minissérie de TV, que recorre a recursos didáticos
(efeitos digitais inexplicáveis em uma tela de cinema,
por exemplo).
E por mais irônico que isso possa parecer, Ray é um
filme que parece lutar contra a visualidade. Sua fotografia
de performatismos de iluminação e de angulações “espertas”,
curiosamente, produz imagens mais informativas do que
expressivas. Não há incertezas em Ray. O filme
diz, simplesmente. É um filme-máquina, cujas informações
não são dadas à interpretação, e sim simplesmente à
recepção.
Poder-se-ia imaginar, claro, que o filme recusa-se à
uma visualidade importante para valorizar o som – os
assessores de imprensa adorariam dizer isso. Mas, não
é o caso também: o som do filme só serve à música. Mas
o filme não quer falar de música, o que transforma o
investimento em uma elaboração sonora - que, no final,
soa inexpressiva - algo sem porquê. Não vale nem a anedota
de que “Ray é um filme para se ver de olhos fechados”,
porque a música do filme é apenas um acessório.
Além disso, um dos traços mais grotescos do filme é
parecer um daqueles institucionais feitos para mostrar
como as drogas são prejudiciais a um personagem. O filme
tem uma tese moral e se constrói em torno dela: Ray
Charles não é personagem de sua própria história, mas
da história - eternamente retornada - da celebridade
que sucumbe à perda de controle que as drogas representam.
E não se trata de ser contra ou a favor das drogas,
mas contar uma história em que a droga é não um componente
de uma trilha de destruição, e sim uma em que o personagem
- de importância histórica - vira coadjuvante de uma
saga da substância em questão. O Ray Charles de Ray
não é herói, é escada e cavalo da heroína.
Mas se é moralmente indefensável - não por sua postura
moralista, mas por sua mecânica desumana e desumanizadora
-, Ray é menos defensável ainda esteticamente.
Não apenas pela já comentada aqui preguiça de se conferir
mais interpretação e menos espelhamento na interpretação
do(s) ator(es), mas também, e sobretudo, pelo desejo
estagnante de produzir um personagem em que caibam os
problemas que o roteiro quer levantar. A representação
do trauma de infância do menino Ray, que volta a ele
na forma de uma “água da consciência” que brota do chão
não é apenas um recurso juvenil, é também um projeto
da pior das intenções: a morte do irmão de Ray é uma
desculpa.
Isso porque se o filme todo é montado para fazer da
heroína seu personagem central e de Ray Charles mais
uma de suas vítimas padrão, ao mesmo tempo, ele também
constrói uma justificação para seu vício: aplacar a
dor da perda. Não é para ampliar horizontes que Ray
se droga, é para reduzi-los. E, nesse sentido, ele propõe
aquilo que de pior uma certa moralidade capitalista
enuncia: o self-made man é predestinado e sofre não
porque mereça, mas sim pela redenção. Mais que isso,
ele enuncia que a perda de controle e a desgraça vêm
não como resultado de processos, mas como uma ação externa.
Sulista, Ray é religioso e, até por isso, é aberto a
possessões demoníacas. Para o filme, sua saga é a do
papel que a música teve não em sua mecânica de sofrimento
e libertação e sim na de possessão e exorcismo.
Alexandre Werneck
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