Sob muitos aspectos, Profissão:
Repórter representa o ápice de uma
proposta de cinema que Antonioni havia quase tornado
um estado normativo em seu tour de force pela
estetização de ausências (não
apenas a trilogia que envolve ambiciosas figuras de
alienação existencial -A Aventura,
A Noite e O Eclipse -, mas também
o anterior O Grito e o posterior Deserto Vermelho)
e que depois incorporara de vez a ebulição
social e artística que ocorria ao seu redor (Blow-Up,
Zabriskie Point). Os filmes de Antonioni sempre
foram do presente, sempre falaram das coisas que ocorriam
no mundo enquanto eram realizados e sempre traçaram
uma cartografia das relações humanas naquele
dado momento. Mas é nítido como a partir
de um certo ponto aumenta a urgência de lidar
com referências que são tão mais
locais quando conseguem ser representativas de um estado
de coisas alastrado pelo mundo (Blow-Up é
menos um filme sobre as "cores" de Londres
nos anos 60 do que um rito de passagem de toda a cultura
visual). Essa proposta de cinema de que Profissão:
Repórter é a forma acabada, na verdade,
pode perfeitamente ser aplicada a grande parte do que
se buscou definir por cinema moderno. É como
se Antonioni tivesse decidido pôr um ponto final,
mesclando e ultrapassando seus ingredientes pregressos,
na escalada que fez enquanto empreendia um profundo
esforço na direção de estudar as
possibilidades do plano. Profissão: Repórter
é o exemplo perfeito daquele cinema - que
precisou esperar pela renovação de instrumentos
e pela evolução natural de sua história
das formas - em que cada plano é uma aventura
estética, um desafio que vai da técnica
à linguagem e à produção
de sentido.
Feito em 1975, quando o cinema
se questiona permanentemente sobre a necessidade de
ser auto-reflexivo (para muitos uma exigência
política/estética do período) e
sobre a selvagem influência que a psicanálise
exercia tanto no campo da teoria do cinema quanto na
própria prática, o filme se lança
a um enredo bem afeito ao momento: o de um personagem
que troca de identidade com outro. Antonioni, portanto,
provocador nato, distribui as peças e incita
o jogo - não faltam indícios de uma abordagem
do sujeito que faz eco à distinção
lacaniana entre a ordem do imaginário e aquela
do simbólico. Nesse filme, a narrativa permite
que se enxergue uma passagem das relações
especulares de sujeito a sujeito, com a devida assunção
dos processos de projeção-identificação,
a um "complexo intersubjetivo de tipo simbólico",
quando ocorre a extorsão de imagem que leva um
personagem a lidar com os encargos da vida do outro.
Cabe a Jack Nicholson, em atuação quase
tão icônica quanto nos seus posteriores
protagonistas de Um Estranho no Ninho
e O Iluminado, interpretar o agente desse rolo
com as identidades: David Locke, repórter que
está fazendo um documentário sobre as
guerrilhas que ocorrem numa região da África,
e que se aproveita da morte de um homem de mesmo biótipo,
que estava hospedado no seu hotel, para mudar de nome
e levar uma vida diferente. Talvez seja o próprio
ciúme de Locke, ao ouvir Robertson falar sobre
as viagens e o eterno desprendimento de sua vida, o
que explica a morte lacônica deste último.
Antes de um filme sobre a troca de identidades, trata-se
de um filme sobre o acúmulo identitário,
pois no fim das contas ele não substitui, mas
sim acumula as identidades sua e de Robertson.
Além da inevitável
comparação com a psicanálise, a
política de reflexividade está em várias
cenas, desde as imagens de arquivo em que o zoom, este
apagador das distâncias, interroga a posição
que o olhar deve estabelecer diante de um fuzilamento,
até a cena em que o líder guerrilheiro
entrevistado vira a câmera na direção
de Locke e pede para que ele refaça as perguntas.
Sem falar na maneira como o jornalismo é questionado
no filme, não custando lembrar que esse é
um momento prolífico quanto à especulação,
pelo cinema, do papel da televisão na sociedade
e do re-posicionamento do indivíduo a partir
da perda de centros estáveis - um ano depois,
por exemplo, Sidney Lumet estará fazendo Rede
de Intrigas (Network, 1976).
Mas qualquer questão
temática colocada por Profissão: Repórter,
por mais complexa que seja, Antonioni trata como questão,
obrigatoriamente, de cinema. Em uma cena do início,
por exemplo, a câmera sai de Jack Nicholson, passeia
pelo espaço e reencontra seu personagem mais
adiante, vivendo um momento que, na diegese, é
anterior ao presente: a linha do tempo junta suas pontas,
passado e presente cabem num mesmo plano. A voz em off,
reproduzida pelo gravador (o objeto que é primeiramente
mostrado no plano, em escala aproximada), parece acompanhar
a panorâmica realizada pela câmera como
a querer preencher o espaço entre uma e outra
instância temporal - e de fato é o play-back
do diálogo o fio condutor desse original flash-back.
No começo do plano, Locke está trocando
a foto do seu passaporte com a do passaporte de Robertson,
e quando este aparece de costas na varanda do hotel,
num primeiro momento podemos tranqüilamente confundi-lo
com Locke, mas logo este surge pela direita do quadro
e nos mostra que o filme já tratava ali de misturar
as identidades dos dois.
Assim como Theo Angelopoulos
fará pouco mais de dez anos depois em Paisagem
na Neblina, Profissão: Repórter
é um filme que a cada plano parece totalizar
uma concepção de cinema - do que o plano-seqüência
do final, obviamente, representa o ponto máximo.
Esse plano-seqüência estimula a concorrência
entre os diversos filmes que estão acontecendo
simultaneamente: há o filme que vemos, há
aquele que ouvimos, há aquele que imaginamos
através do diálogo com o fora-da-tela.
É o fechamento de uma idéia anunciada
desde o início do filme, pois já na primeira
seqüência de Profissão: Repórter
há uma recapitulação do universo
temático de Antonioni: a comunicação
parece impossível; o deserto se esprai como uma
verdadeira paisagem subjetiva, tal como o eram as ilhas
rochosas e monocrômicas de A Aventura;
o carro de Locke atola na areia do deserto e ele não
sabe o que fazer para tirá-lo dali; as ações
ou são interrompidas no meio ou são pachorrentas,
não vemos o herói motivado e ativo do
cinema clássico; o mundo em que o filme se encontra
precede a sua narrativa, o espaço inspira o filme
e nunca o contrário.
Embora condense, desse
modo, muitas das aspirações do cinema
que Antonioni havia feito até então, Profissão:
Repórter é também uma obra
inédita, uma experimentação com
novos elementos. E não poderia ser diferente,
uma vez que o próprio protagonista do filme diz
que o grande problema está na inadequação
dos velhos códigos, que todos carregam intrinsecamente,
às transformações e às diferenças
do mundo. Por reconhecer que o mundo exige sempre novas
formas de percepção e cognição,
Antonioni não se permite a repetição
de fórmulas. Esse mundo em constante deslocamento
(de sentido, de direção, de cor, de nacionalidade)
induz a câmera a se mover em quase todos os planos
do filme. E se há alguém que simplesmente
vive esse deslocamento - sempre calma, sempre com uma
resposta imediata seja lá qual for a pergunta
-, ao invés de buscar seu sentido, é a
personagem de Maria Schneider, a jovem estudante de
arquitetura que resolve acompanhar Nicholson em sua
jornada. Ela, com seu ar blasé e pouco exigente
em relação às motivações,
é a única que consegue achar um jeito
plácido de transitar por esse verdadeiro império
da ambigüidade construído por Antonioni.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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