DESDE QUE OTAR PARTIU
Julie Bertuccelli, Depuis qu'Otar est parti, França/Bélgica, 2003

Os elogios que o filme de Julie Bertucelli tem recebido são majoritariamente relacionados à abordagem “humanista” das questões familiares, sociais e políticas que levanta. É incrível a capacidade de uma certa crítica contemporânea em inventar jargões banais sobre assuntos de profunda complexidade: “cinema humanista”, definição tão complicada quanto dizer o que é realismo hoje, de uma hora para outra se torna termo corrente, utilizado como valor em si e aparecendo com o mesmo significado aparente em defesas de filmes os mais díspares (contradição que mostra quão frágil é o “conceito”). No Brasil, e também na crítica internacional, não faltaram variações em torno desse termo quando do elogio a Desde que Otar Partiu, filme que opta pelo irrestrito acolhimento dos personagens e por uma narrativa que não busca se antecipar às atitudes dos mesmos.

Ao focar a vida de três mulheres de três gerações diferentes vivendo num mesmo apartamento, e conversando entre si o tempo todo, Bertucelli evoca um quê das feminices almodovarianas – no mínimo dos mínimos pela personagem de Marina, uma autêntica mulher à beira de um ataque de nervos. O filme se passa num bairro pobre da Geórgia e mostra os esforços teatrais de Marina, com a ajuda (a contragosto) de sua jovem filha Ada, em manter uma farsa: iludir Eka, sua mãe, a velhinha com que todos simpatizam logo de início (e que ainda defende teimosamente os ideais stalinistas), escondendo dela a morte de Otar, seu outro filho, que fora tentar a vida em Paris.

Essa trama micro-celular, e o tema político a ela subjacente, quase fazem desse filme um remake de Adeus, Lênin!, com as devidas transposições de tom. Mas não se pode negar que Bertucelli, embora escorregue em comentários rasos que realmente comprometem certos diálogos e certas passagens do filme, não só trata as oposições entre o mundo capitalista e o antigo bloco comunista de forma diferente da comédia disfuncional de Wolfgang Becker, como também possui uma concepção de mise-en-scène muito mais concisa e interessante do que a dele. Enquanto Adeus, Lênin! é um curioso caso de filme de 2 horas que praticamente nada adiciona a uma sinopse de cinco linhas, voltando sempre ao mesmo ponto e se auto-esvaziando ciclicamente, Desde que Otar Partiu tem motivos de sobra para existir como cinema em uma duração bastante próxima. Bertucelli planta cenas “ao acaso” que depois serão importantes para a coesão final do filme, como um acidente de carro que Ada presencia no início, e que Bertucelli prefere preservar fora-de-tela, antecipando o acidente em que seu tio depois falecerá. É como se o próprio mundo fosse o narrador do filme.

Ainda que carregue um traço de “narrativa minimalista tirada de livro de receitas”, Desde que Otar Partiu sabe se entregar à consciente exploração de um tom menor que poderia resultar em mera muleta estética. Sem precisar de muitos exemplos, fiquemos com a constante falta de luz no apartamento: Christophe Pollock, diretor de fotografia (que antes trabalhou em filmes como Paris no Verão, de Jacques Rivette, e Elogio ao Amor, penúltimo do Godard), transforma a penumbra do apartamento no contraponto perfeito ao passeio por Paris na parte final do filme. Por mais óbvio que possa parecer, do ponto de vista do enredo (na primeira cena em que a luz acaba, Otar liga de Paris, a “cidade das luzes”, e fica falando algum tempo com a mãe ao telefone), quando ocorre o passeio de táxi pelas ruas iluminadas, entendemos que aquela idéia, acima de tudo, abre caminho para a transformação de uma matéria sócio-melodramática em matéria de cinema em estado bruto. Essa cena, não custa lembrar, reabsorve nas luzes parisienses a confrontação dramática que se desenhara o filme todo, mas que acaba não acontecendo por conta da inesperada atitude de Eka, que descobre sobre a morte de Otar por si mesma e resolve esconder da filha e da neta, confirmando toda sua inclinação de grande figura acolhedora do filme. 

Há, de fato, uma candura com quem protagoniza Desde que Otar Partiu – não apenas a velhinha, sempre pronta a fazer sucesso com o público, mas também a jovem Ada, que vive matutando sobre a possibilidade de ir estudar na França, e sua mãe, constantemente mal-humorada, carregando a amargura de pertencer à geração do meio (nem iludida pelo sonho comunista, nem esperançosa do futuro – apenas ciente do passado falacioso e do presente difícil). A grande força do filme está nos momentos mais simples, como aquele em que Eka, sorriso infantil no rosto, fuma um cigarrinho a bordo de uma roda gigante. É também Eka quem sorri compreensiva para Ada, quando esta decide ficar em Paris na cena final, em que os vidros do aeroporto, separando os locais onde uma e as outras se encontram, vedam o som do choro de Marina ao ver a filha ficando para trás. Mais uma vez, Bertucelli escolheu um modo bastante cinematográfico de atenuar o potencial melodramático de uma cena (esse declarado medo do melodrama só não é reprovável porque tem lá seu sentido dentro do filme – caso fosse simplesmente por filiação a um cinema “de qualidade” que automaticamente rechaça certos excessos, seria realmente uma recusa boba e infundada). Nesse esforço de contenção se desenha um projeto de cinema nem sempre louvável, mas com belos momentos.

Luiz Carlos Oliveira Jr.