Os elogios que o filme de Julie
Bertucelli tem recebido são majoritariamente relacionados
à abordagem “humanista” das questões familiares, sociais
e políticas que levanta. É incrível a capacidade de
uma certa crítica contemporânea em inventar jargões
banais sobre assuntos de profunda complexidade: “cinema
humanista”, definição tão complicada quanto dizer o
que é realismo hoje, de uma hora para outra se torna
termo corrente, utilizado como valor em si e aparecendo
com o mesmo significado aparente em defesas de filmes
os mais díspares (contradição que mostra quão frágil
é o “conceito”). No Brasil, e também na crítica internacional,
não faltaram variações em torno desse termo quando do
elogio a Desde que Otar Partiu, filme que opta
pelo irrestrito acolhimento dos personagens e por uma
narrativa que não busca se antecipar às atitudes dos
mesmos.
Ao focar a vida de três mulheres de três gerações diferentes
vivendo num mesmo apartamento, e conversando entre si
o tempo todo, Bertucelli evoca um quê das feminices
almodovarianas – no mínimo dos mínimos pela personagem
de Marina, uma autêntica mulher à beira de um ataque
de nervos. O filme se passa num bairro pobre da Geórgia
e mostra os esforços teatrais de Marina, com a ajuda
(a contragosto) de sua jovem filha Ada, em manter uma
farsa: iludir Eka, sua mãe, a velhinha com que todos
simpatizam logo de início (e que ainda defende teimosamente
os ideais stalinistas), escondendo dela a morte de Otar,
seu outro filho, que fora tentar a vida em Paris.
Essa trama micro-celular, e o tema político a ela subjacente,
quase fazem desse filme um remake de Adeus,
Lênin!, com as devidas transposições de tom. Mas
não se pode negar que Bertucelli, embora escorregue
em comentários rasos que realmente comprometem certos
diálogos e certas passagens do filme, não só trata as
oposições entre o mundo capitalista e o antigo bloco
comunista de forma diferente da comédia disfuncional
de Wolfgang Becker, como também possui uma concepção
de mise-en-scène muito mais concisa e interessante
do que a dele. Enquanto Adeus, Lênin! é um curioso
caso de filme de 2 horas que praticamente nada adiciona
a uma sinopse de cinco linhas, voltando sempre ao mesmo
ponto e se auto-esvaziando ciclicamente, Desde que
Otar Partiu tem motivos de sobra para existir como
cinema em uma duração bastante próxima. Bertucelli planta
cenas “ao acaso” que depois serão importantes para a
coesão final do filme, como um acidente de carro que
Ada presencia no início, e que Bertucelli prefere preservar
fora-de-tela, antecipando o acidente em que seu tio
depois falecerá. É como se o próprio mundo fosse o narrador
do filme.
Ainda que carregue um traço de “narrativa minimalista
tirada de livro de receitas”, Desde que Otar Partiu
sabe se entregar à consciente exploração de um tom
menor que poderia resultar em mera muleta estética.
Sem precisar de muitos exemplos, fiquemos com a constante
falta de luz no apartamento: Christophe Pollock, diretor
de fotografia (que antes trabalhou em filmes como Paris
no Verão, de Jacques Rivette, e Elogio ao Amor,
penúltimo do Godard), transforma a penumbra do apartamento
no contraponto perfeito ao passeio por Paris na parte
final do filme. Por mais óbvio que possa parecer, do
ponto de vista do enredo (na primeira cena em que a
luz acaba, Otar liga de Paris, a “cidade das luzes”,
e fica falando algum tempo com a mãe ao telefone), quando
ocorre o passeio de táxi pelas ruas iluminadas, entendemos
que aquela idéia, acima de tudo, abre caminho para a
transformação de uma matéria sócio-melodramática em
matéria de cinema em estado bruto. Essa cena, não custa
lembrar, reabsorve nas luzes parisienses a confrontação
dramática que se desenhara o filme todo, mas que acaba
não acontecendo por conta da inesperada atitude de Eka,
que descobre sobre a morte de Otar por si mesma e resolve
esconder da filha e da neta, confirmando toda sua inclinação
de grande figura acolhedora do filme.
Há, de fato, uma candura com quem protagoniza Desde
que Otar Partiu – não apenas a velhinha, sempre
pronta a fazer sucesso com o público, mas também a jovem
Ada, que vive matutando sobre a possibilidade de ir
estudar na França, e sua mãe, constantemente mal-humorada,
carregando a amargura de pertencer à geração do meio
(nem iludida pelo sonho comunista, nem esperançosa do
futuro – apenas ciente do passado falacioso e do presente
difícil). A grande força do filme está nos momentos
mais simples, como aquele em que Eka, sorriso infantil
no rosto, fuma um cigarrinho a bordo de uma roda gigante.
É também Eka quem sorri compreensiva para Ada, quando
esta decide ficar em Paris na cena final, em que os
vidros do aeroporto, separando os locais onde uma e
as outras se encontram, vedam o som do choro de Marina
ao ver a filha ficando para trás. Mais uma vez, Bertucelli
escolheu um modo bastante cinematográfico de atenuar
o potencial melodramático de uma cena (esse declarado
medo do melodrama só não é reprovável porque tem lá
seu sentido dentro do filme – caso fosse simplesmente
por filiação a um cinema “de qualidade” que automaticamente
rechaça certos excessos, seria realmente uma recusa
boba e infundada). Nesse esforço de contenção se desenha
um projeto de cinema nem sempre louvável, mas com belos
momentos.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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