Ó
estrela, ó fiel estrela, quando decidirá
um encontro menos efêmero, longe de tudo, na sua
própria região de perene certeza?
Príncipe Salina (Burt Lancaster), ajoelhado,
assiste à passagem do padre, que se dirige para
ministrar a extrema unção. Tancredi (Alain
Delon), Angélica (Claudia Cardinale) e Don Calogero
(Paolo Stoppa), na carruagem, ouvem os últimos
seguidores de Garibaldi serem fuzilados. Após
a seqüência-clímax do baile - quarenta
anos do romance de Giuseppe Tomasi Di Lampedusa condensados
em apenas cinqüenta minutos -, na qual a aliança
entre a burguesia e a nobreza é definitivamente
selada, Luchino Visconti, em O Leopardo, Palma
de Ouro no Festival de Cannes de 1963, aponta tanto
para a morte da velha classe aristocrática, incapaz
de deter o avanço dos novos tempos representados
pelo capital oligopolista de Piemonte, quanto para a
vitória do projeto de unificação
da Itália que, utilizando-se a princípio
da participação popular, acaba por excluí-la,
a fim de assegurar o poder à monarquia constitucional
de Vittorio Emanuel.
Em O Leopardo, Visconti estabelece dois conflitos,
relacionados entre si e inseparáveis. Primeiro,
dos leões e leopardos contra os lobos e chacais,
ou seja, da aristocracia rural contra a burguesia industrializante,
de modo que a antiga sociedade de privilégios
é substituída gradativamente pelo ideal
nacionalista de unificação, não
apenas do país, como também dos mercados
italianos, antes dispersos. Segundo, dos leões,
leopardos, lobos e chacais contra as ovelhas, isto é,
dos nobres e burgueses contra os trabalhadores, pois
o movimento político-econômico que concilia
a decadência aristocrática com a ascensão
burguesa não altera a estrutura social dominante,
calcada na divisão entre ricos e pobres, no controle
que aqueles exercem sobre estes. Algo precisa mudar,
para que tudo permaneça igual: nas palavras ditas
por Tancredi ao príncipe Salina, trata-se, dada
a inevitabilidade das transformações,
de impedir o mal maior, que os eternos subjugados tomem
o poder pela força, ao invés da passagem
serena para a classe que, já com a economia nas
mãos, busca o prestígio e a legitimação
da velha Ordem (Dom Calogero, por exemplo, que compra
título de nobreza a fim de se equiparar a Don
Fabrizio).
Visconti força o encontro de ambos os conflitos
na seqüência do baile: enquanto o general
de Vittorio Emanuel narra e se vangloria (observado,
com ironia, pelo busto do imperador romano) da conquista
obtida sobre os homens de Garibaldi, agora tratados
como mera guerrilha fora da lei, Don Fabrizio Salina
vaga de salão em salão, presenciando as
jovens da nobreza que pulam como macacas, analisando
o quadro que lhe remete à própria morte,
chorando pelo fim inevitável frente ao espelho
e, por fim, valsando com Angélica, para confirmar
a união dos aristocratas com a burguesia. No
processo histórico que, de início, leva
ao triunfo das forças progressistas para, em
seguida, consolidar a volta dos conservadores, resta
ao príncipe - segundo ele próprio, homem
viril, porém, ao contrário do herói
positivo de Rocco e Seus Irmãos, personagem
passivo, que somente vê o mundo ruir a seu redor,
sem atuar, impotente - e aos outros da mesma estirpe
se retirarem com honra, com dignidade, no cerrar das
cortinas, com a certeza e o alívio de que as
mudanças não trazem rupturas, mas antes
mantêm a Ordem imemorial, com que a Sicília,
mergulhada no sono, é impedida de acordar.
Filme crepuscular, herdeiro, na fotografia em Technirama
e em Technicolor de Giuseppe Rotunno, da pintura macchiaioli,
O Leopardo respira morte e decadência a
cada plano, nas paredes descascadas dos prédios
de Donnafugata, nas paisagens rústicas e desoladas
da Sicília ou nas latrinas imundas que sobram
do baile, em aparência deslumbrante. Na chegada
à cidade em que sempre passam as férias,
sentados à igreja, abatidos e cobertos de poeira,
os familiares do príncipe se assemelham a fantasmas,
os quais se agarram a um tempo que não mais lhes
pertence. Recebido por Don Calogero - trajado com as
três cores do Risorgimento - ao som de
Verdi (símbolo da unificação italiana),
Don Fabrizio está consciente de que não
há lugar para ele na nova sociedade que se forma
a partir da convulsão da antiga: cabe-lhe apenas,
mesmo com sofrimento e pesar pela derrocada da elegante
bandeira branca dos Bourbon e do que ela representa,
prepara o caminho para o ambicioso Tancredi, casando-o
com Angélica às custas da felicidade da
própria filha, Concetta.
Apesar de dolorosa, a passagem de poder para a burguesia
se configura mais aprazível (e menos perigosa)
ao príncipe Salina, uma vez que os Sabóia,
dinastia a que faz parte o rei Vittorio Emanuel, ainda
são uma monarquia, embora representem os interesses
econômicos do primeiro-ministro Cavour e da classe
social que o alimenta. Se, em Sedução
da Carne, Luchino Visconti mostrara o Risorgimento
no Norte, através das guerras travadas por Piemonte
contra o Império Austro-Húngaro, em O
Leopardo a unificação ocorre no Sul,
com a tomada do Reino das Duas Sicílias, há
séculos sob a tutela dos Bourbons, pelos camisas
vermelhas de Garibaldi que, com os ideais republicanos
de Mazzini, são fundamentais, no primeiro momento,
para edificar o país, devendo ser esmagados na
seqüência, pois o efetivo envolvimento popular
que eles suscitam, infiltrados pelos socialistas utópicos
e pelos carbonários, ameaçam tanto a nobreza
quanto a burguesia. O plano isolado dos camponeses na
lavoura leva, por meio da fusão à cena
do baile: são os pobres que sustentam os ricos,
são os trabalhadores, na lógica que perpassa
todos os ajuntamentos humanos, cuja exploração
assegura o funcionamento da economia e os privilégios
para a classe social que esteja no controle.
O Leopardo, que radiografa o efêmero e
o constante nas sociedades, as quais se auto-regulam
e se renovam para continuarem as mesmas, também
marca a transformação do cinema de Luchino
Visconti que, embora mantenha a preocupação
marxista com a luta de classes, mergulha em definitivo
para descortinar sua própria condição
de nobre decadente, lamentando nostalgicamente a morte
de uma era que ele não presenciou e abraçando,
para tanto, o melodrama e a ópera. A partir do
filme seguinte a O Leopardo, Vagas Estrelas
da Ursa, o diretor adota o zoom in e o zoom out,
usados nos longos travellings que perscrutam
os ambientes: aproximação e afastamento
sensível dos personagens quanto ao mundo que
os cerca e que, como eles, é passageiro e impossível
de ser apreendido.
Na estetização metafísica que nasce
em O Leopardo e que o acompanha até O
Inocente, Luchino Visconti propõe, através
de algo tão fugidio (e, paradoxalmente, eterno)
como a imagem, representar o irrepresentável:
a morte. De um homem. De uma sociedade. De uma época.
E consegue.
Paulo Ricardo de Almeida
(DVD Versátil)
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