Uma
câmera colocada diante da janela de um caminhão
abre Obsessão. Na carroceria deste veículo,
saberemos segundos depois, está o protagonista,
Gino (Massimo Girotti), um homem em deslocamento, gerador
de conflitos no lugar onde chega, desmobilizador da
repetição, do formato padrão do
comportamento social, em suma, um ser em constante movimento
e mudança. Nesse início, a trilha sonora
associada às representações de
situações tensas e de alto teor de perigo
para os personagens nos dá a pista: estamos sendo
colocados em uma leitura italiana de um gênero
americano, o romance criminal de James M. Cain, The
Postman Always Rings Twice. E a novidade, nesse
gênero propagador de tensão e revelador
de índoles, é sempre desorganizadora.
Pode gerar transformações ou causar ruínas.
Ou simplesmente abalar a continuidade de um processo
apenas para reafirmá-lo como punição
mais adiante.
Visconti, tantas vezes chamado de decadentista (de forma
pejorativa), já nas primeiras imagens revela
seu ceticismo agudo. Nenhum projeto de mudança
será bem sucedido. E assim permanecerá
em seus filmes e nas décadas seguintes, com personagens
sempre perdendo o round para sua circunstância
histórica, ou perdendo seus amores, ou perdendo
a vida ou seus ideais de progresso (o final de A
Terra Treme). Dias melhores não surgem em
Visconti, e uma figura ameaçadora da ordem, como
Gino (Massimo Giroti), o forasteiro, acaba se tornando
vítima (presa fácil de um sistema social
e de um destino imobilizador).
Em suas primeiras imagens no cinema, Visconti evidencia
as regras da operação. Coloca aspas em
alguns planos para destacá-los como momentos
chaves, geralmente aqueles definidores de um início
ou de uma ruptura de alguma nova situação
na vida dos personagens, ali tratados como sinais de
um destino torto. Esse expediente está explícito
na utilização da grua para mostrar a chegada
do viajante-protagonista Gino diante da porta do restaurante
de estrada (local de seu paraíso efêmero
e da eternização de seu inferno), nos
movimento de seus pés seguidos por cachorros
quando entra no estabelecimento e no enquadramento de
apresentação dele à esposa do dono
do lugar, Giovanna (Clara Calamai, chamada para substituir
Anna Magnani, que engravidou).
A cena: ele de costas para nós, parado na porta
da cozinha, ela só nos dando a ver as pernas,
esticadas diante do corpo dele. É certamente
uma das mais engenhosas sucessões de planos em
todo o Visconti, mas ainda assim inferior à da
revelação do ato sexual entre os amantes
imediatos Gino e Giovanna, revelação realizada
pelo enquadramento de um espelho no qual ele olha para
fazer a barba e onde está refletida a imagem
dela ao fundo na cama.
Nessas passagens sublinhadas, sabemos estar diante de
uma construção dramática, que,
independentemente do tipo de acontecimento e de representação
de símbolos sociais, vale-se de uma aposta no
acaso-místico de origem trágica – nos
deuses que desviam, nos deuses que punem, no acaso que
descarrila. Os homens são vistos como impotentes
diante de seus destinos – e conseqüentemente das
prisões sociais nas quais estão condenados
pelo imobilismo social (algo ainda mais gritante em
A Terra Treme, com seu final de retorno ao início).
Há uma lógica histórica ou divina,
injusta que seja, da qual os personagens não
escapam. E interessa a Visconti o momento em que tentam
escapar sem conseguir, ou aqueles nos quais flertam
com a ruína por ter expirado o prazo de validade
de suas condições (O Leopardo,
Morte em Veneza, Violência e Paixão).
A derrota é a única certeza a aguardar
os seres viscontianos.
Os ambientes
A câmera move-se suave pelos ambientes, aproxima-se
dos rostos, segue os atores pelos espaços, revelando
o meio deles progressivamente, sem acentuar o olhar
descritivo, e colocando os objetos em cena e a geografia
doméstica como parte dos acontecimentos, não
como papéis de parede ou cenários de teatro.
Essa integração entre acontecimentos e
lugares, entre personagens e ambientes, nem sempre disfarça
sua proposta de uma antropologia por fragmentos sintéticos.
Exemplo: a longa seqüência de concurso de
dança, durante a qual o filme relativiza o julgamento
moral sobre um personagem estigmatizável (patrão,
gordo, marido opressor), mas principalmente descortina
um ritual de um determinado lugar e de uma classe social
específica, descrevendo lentamente características
de uma feira de variedades, em torno da qual a comunidade
satisfaz a demanda por circo e integração
no grupo – comuns a toda sociedade.
Em seus filmes posteriores, a começar pelo seguinte
(A Terra Treme), a operação de
situar personagens em seus meios, usando-os como guias
em um tour pelo entendimento de alguns mecanismos
da sociedade, encontrará um desafio em geral
cumprido: o de mantê-los vivos como personagens,
sem serem reduzidos a símbolos, sintomas e ilustrações
de um sociólogo sem pesquisa de campo – embora
em A Terra Treme, nesse sentido, o desafio não
se cumpre.
Os personagens
Gino entra em cena com desprezo pelo dono do lugar
e com olhos de cobiça para a esposa dele. Age
como ameaça aos limites mediadores (do desejo
principalmente), um sujeito sem nada a perder, sem os
medos de quem possui algo, sem o espírito da
burguesia. Sua representação tem como
imagem um macho viril e erotizado, em camisetas sem
mangas e com a pele sempre suada, com indícios
de ser capaz de prover a mulher com as habilidades de
seu corpo (o sexo e as atividades mecânicas, um
ser eficiente como macho e marido). O desejo pela "dona",
Gabi, o manterá por ali. Joga a âncora
temporariamente. Adere a um certo status quo (projeto
de família, trabalho), embora pela transgressão
dele (adultério).
Giovanna, a dona arfante, cheia de lamentos e ambições,
com sexualidade represada em vias de explodir, apresenta-se
como uma explorada, uma escrava de seu marido, casada
por necessidade material, porém, como veremos
adiante, oportunista e conformista nessa condição.
Seu drama é originário da desvinculação
entre o provedor e o amante. A circunstância social
da guerra a jogou para a cama do marido – e da cama
para a condição mínima de vida
proporcionada pela carteira dele – a da baixa burguesia
de uma região italiana de couro surrado, o Vale
do Pó. Giovanna encontra no forasteiro Gino o
ideal romântico de um idílio utópico
e sem lugar em sua realidade despida de floreios. Entre
o suspiro romântico e o gesto pragmático,
ela fará a opção pela manutenção,
não pela mudança. É uma insatisfeita,
mas, como tal, conservadora. Resiste à idéia
de fugir para viver em deslocamento e sem garantias
financeiras e de moradia. Quer riscos assegurados -
uma reforma, não uma revolução.
Quer a condição burguesa, pois o espírito
já possui.
Mas, sendo este um filme elaborado com os olhos no noir
americano, não podemos perder de vista como
a indecisão e o oportunismo dessa femme-fatale
popular e latina também serve para lhe dar uma
imagem postiça e indigna de confiança
– como a das fêmeas libidinosas e manipuladoras
do noir americano. Ela é, então,
fruto de uma condição social, uma "desgraçada",
segundo suas palavras (porção melodrama
de um trecho do filme), e também de uma imanente
ambigüidade (às vezes com sinais de desequilíbrio
e falhas de caráter bastante destacados). É
a personagem mais questionada pelo olhar de Visconti
E temos o proprietário-marido gordo e grosseiro,
Giuseppe (Juan de Landa), que, se a princípio
parece perfeito para carregar nas costas a tarefa de
vilão capitalista e assim legitimar seu assassinato
pelos amantes marginais-explorados, logo demonstra sutilezas
relativizadoras. O opressor é querido na comunidade,
afável com muitas das pessoas (dentro dos limites
de seu jeito bronco) e tem sensibilidade artística
(ovacionado em concurso de canto). No fundo, é
um ignorante, incapaz de ver o óbvio: que a mão
a que estendeu a sua para oferecer ajuda é a
mesma que conduz sua esposa à cama e depois o
ataca para ficar com ela e com parte do dinheiro – as
duas posses do personagem morto.
Após a aproximação dos amantes
e a tentativa frustrada de fuga, Visconti acompanha
apenas o forasteiro Gino, novamente de volta à
estrada e rumo a direções indefinidas,
outra vez sem projeto. Nessa opção por
Gino, não por Giovanna, Visconti hierarquiza
seu interesse. Ao nos colocar ao lado de Gino, após
nova ruptura e deslocamento, ele deixa de ser o forasteiro
(segundo olhar de quem está no lugar e não
de quem chega a ele), tornando-se o deslocado em busca
de inserção provisória. Visconti
detém-se no encontro e na intimidade de Gino
com outro viajante, Spagnollo (Elio Marcuzzo), artista
de rua, ex-combatente da guerra civil espanhola, com
quem divide cama (sem sexo à vista) e uns trocados.
Muito já se escreveu sobre o caráter homossexual
e político dessas passagens de convivência
entre Gino e Spagnollo, cortadas quando do lançamento
em cinema, mas os trechos incluídos na cópia
em DVD evidenciam a atmosfera homoerótica e só
descortinam um pouco do simbolismo político.
De qualquer forma, Spagnollo, além de ser mais
um anunciador dos deterministas sinais místicos-trágicos
aos quais o filme está ligado (ele tira a sorte
para o companheiro antes deste ir ao encontro da amante
e do marido dela), é um marginal militante. Ao
deixá-lo para engendrar um plano de assassinato,
que libertará Giovanna e levará os amantes
ao paraíso burguês (na idealização
do futuro por eles), Gino opta por uma segunda transgressão
(após o adultério, o assassinato), mas
esta o levará ao status quo (para substituir
o eliminado).
Essa inserção dele no baixo-establishment
ganha tratamento de melodrama estudioso de caráter.
Surgirá uma segunda mulher (uma bailarina, artista,
como Spagnollo), conflitos de consciência da parte
dele, confissão de amor da parte de Giovanna
e, finalmente, para inviabilizar a redenção
dos amantes criminosos, a mão do acaso intervém
no plano deles (o de unir sexo-instinto-paixão
e sociedade-negócios no amor-casamento burguês).
Os sinais do destino contra Gino e Giovanna, jogados
aqui e ali na narrativa, são confirmados pela
condenação deles por terem fracassado
no projeto de mudança – ou por terem ambicionado
a mudança? Como intelectual de esquerda, Visconti
era de um racionalismo de agudo ceticismo. E o castigo
imposto a seus personagens, ambíguos o tempo
todo enquanto símbolo moral, atenua o potencial
demolidor.
Cléber Eduardo
(DVD
Versátil)
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