NOITES BRANCAS
Luchino Visconti, Le notti bianche, 1957, Itália/França

Adaptação de Luchino Visconti e de Suso Cecchi D’Amico (que trabalha, a partir de Belíssima, em todos os filmes do cineasta) para o conto homônimo de Fiódor Dostoiévski, Noites Brancas, Leão de Prata no Festival de Veneza de 1957, representa marco fundamental na carreira do mestre italiano, na medida em que expande as noções de realismo, tão presente nas obras anteriores, rumo à fantasia e à imaginação, seja no tratamento diferenciado dado ao espaço cênico, seja na construção atemporal da narrativa.

Obsessão e A Terra Treme são comumente identificados com o neo-realismo italiano, pois, da mesma forma que, segundo Carlo Lizzani, operam a junção da realidade sócio-econômica das camadas baixas da população, com a tradição cultural erudita do Ocidente, sobretudo literária – a transposição de O Destino Bate à Sua Porta, de James M. Cain, para o cotidiano dos trabalhadores pobres do Sul em Obsessão, o uso do clássico de Verga a fim de retratar a vila de pescadores em A Terra Treme –, também encampam práticas de produção que os afastam do sistema de estúdio fascista (o cinema de "telefone branco"), tais quais filmagens em locações, iluminação natural, equipamentos mais leves e atores não-profissionais ou desconhecidos pelo público. Assim, se Sedução da Carne, por um lado, rompe com o neo-realismo – posto que a ação é deslocada da Itália miserável do pós-guerra para o seio da aristocracia durante o Risorgimento –, por outro se mantém fiel, dada a verossimilhança e o detalhismo com que Visconti impregna a narrativa, precisa quanto à reconstituição de época: o realismo praticado pelo diretor, na verdade, decorre da ópera verista, na qual temas fantasiosos e mitológicos são preteridos em troca de histórias calcadas nos contextos sociais em que transcorrem, em que o comportamento, as atitudes e a psicologia dos personagens se subordinam (melodramática e tragicamente) ao mundo restritivo que os cerca.

Em Noites Brancas, porém, a cenografia de Mario Garbuglia aponta justamente para o sonho, para o conto-de-fada. Ao reconstruir quarteirão inteiro de Livorno, com suas pontes e rios, nos estúdios da Cinecittá, Visconti opta, como De Sica já o fizera em Vítimas da Tormenta (em que o dia-a-dia dos garotos engraxates se transforma em pesadelo), por paradoxal antinaturalismo, já que, embora pautado na irrealidade fake do espaço cênico e da iluminação (a cargo de Giuseppe Rotunno), igualmente se esforça para torná-los críveis, não omitindo (e mesmo realçando) a sujeira das ruas, as paredes rachadas, as fachadas velhas e descascadas, as prostitutas e os mendigos que vagam sem esperança, enfim, a atmosfera triste e soturna dos ambientes. Trata-se, para o cineasta, não apenas de representar o real objetivo, mas de articulá-lo a camadas e camadas de imaginação e de fantasia a fim de narrar a eterna e atemporal busca romântica do homem pelo amor do Outro, capaz de libertá-lo da solidão que a sociedade, emocionalmente fria, violenta, distante e cruel, lhe impõe.

Mario (Marcello Mastroianni) retorna de viagem feita com a família do chefe. Andando a noite pelas ruas, de início confunde Natalia (Maria Schell), a qual chora sobre a ponte, com prostituta, para depois se apaixonar por ela. Marcam novo encontro para o dia seguinte, no mesmo local e na mesma hora, mas Natalia, ao avista-lo, foge. Mario a persegue, e por fim lhe arranca a verdade: todas as noites, há um ano, ela espera a volta do amado, misterioso inquilino (Jean Marais) que veio morar na casa em que Natalia e a avó viviam a solitárias.

O inquilino representa o príncipe encantado de Natalia: não se sabe quem ele é, de onde veio ou para onde vai; quase não fale, quase não aparece ao longo do filme, mas ainda assim povoa os pensamentos e os sonhos da jovem apaixonada. Por mais que Mario lhe procure defeitos, por mais que tente com que Natalia o esqueça, não consegue. O que tem, afinal, este trabalhador, que sobrevive graças a emprego miserável, que habita pensão caótica longe da família, que vez ou outra briga nas ruas, que é perturbado pelas prostitutas, que só encontra amizade em cão vadio, para lutar contra a imaginação romântica de uma mulher?

Mario é humano, demasiado humano. No triângulo amoroso criado por Visconti, ele representa a vida em si, com seus erros e acertos, com suas misérias e belezas, enquanto o misterioso inquilino, ao contrário, encarna o homem ideal, o cavaleiro de armadura brilhante egresso dos contos-de-fadas. Natalia, por sua vez, é o meio termo entre os dois, entre o real e o imaginado: meiga, tímida, ingênua, apaixonada, inocente, pura, amorosa e sonhadora, ela, ao mesmo tempo em que espera o grande amor, também integra os sonhos de Mario, conquanto se constitui na mulher que ele próprio idealiza.

Natalia, a qual sempre aparece nas sombras, a qual sempre é vista de relance, talvez exista apenas no pensamento de Mario, já que mesmo o homem, imperfeito por natureza, possui o direito de sonhar, de buscar a felicidade no mundo padrasto em que subsiste, com sofrimento e com alegrias. Na seqüência que justifica o título da obra, Natalia, desgostosa com seu príncipe, que não veio, resolve se entregar a Mario. Ela não o ama, mas quem sabe, no futuro? Felicíssimo, ele a leva para passeio de barco e, sob a ponte, onde se acotovelam mendigos e prostitutas, começa a nevar. Trata-se da indicação simbólica de que Mario, enfim, toca o conto-de-fada, materizaliza o sonho, funde a realidade à fantasia.

Quando cessa de nevar (sem antes o comentário de que o sobretudo de Natalia coberto pelos flocos brancos será seu vestido de noiva), é hora de voltar à terra. Sobre a ponte, encontra-se o inquilino, o cavaleiro encantado: ela corre para seus braços, desculpando-se com Mario, o qual lhe responde, sem mágoa, que, por um momento – de que sempre se lembrará – foi feliz. O tempo ínfimo, mas eterno, que justifica toda a existência.

A impossibilidade de concretizar a idealização do mundo (através do amor) mostra que o homem está condenado a vagar ao sabor dos quatro ventos, sempre à procura da felicidade, com a incômoda lembrança do Paraíso do qual foi expulso. Pelo menos, o cão vadio, fiel, continua a seu lado, para ajudá-lo: em Noites Brancas, não estamos sós.


Paulo Ricardo de Almeida

(DVD Versátil)