EM BUSCA DA TERRA DO NUNCA
Marc Forster, Finding Neverland, EUA, 2004

Não é todo dia que se tem mãos um filme que tenha “imortalidade” escrito em sua testa. Pois bem, o novo filme de Marc Forster certamente tem esta qualidade – afinal Em Busca da Terra do Nunca poderá ser dissecado e estudado no futuro, quando se desejar pegar um caso exemplar do “cinema de arte by Miramax” deste nosso tempo. Trata-se de uma das mais grotescas pantomimas colocadas em cena em muito tempo, que de cinema e de arte tem muito pouco – mas de Miramax tem bastante.

Já nos primeiros minutos, o paradoxo da sequência de créditos apresenta aquilo que vai nos atormentar ao longo da projeção – enquanto vemos uma cortina de teatro com o som de uma orquestra se afinando (artifício já mais que batido para abrir filmes como um “espetáculo montado”), surge na tela com pompa e circunstância, depois de absolutamente todos os créditos passarem, como sendo a informação mais importante de todas: “inspirado por uma história real”. Pois é este o espaço do espetáculo à la Forster: só vale no tanto em que for “verdadeiro” – sendo que o paradoxo da afirmação que o filme faz não só parece escapar a ele mesmo, como coloca em cheque a tese mesma que o filme pensa defender. Neste sentido, Em Busca da Terra do Nunca revela Marc Forster como o herdeiro legítimo de Frank Darabont. Afinal, Darabont fez um filme (À Procura de um Milagre) que se afirma contra a pena de morte enquanto defende que matar as pessoas, desde que elas sejam ruins, é OK; e um outro (Cine Majestic) que afirma que o que importa é que tenhamos direito a nossa liberdade de pensamento, desde que este pensamento não seja comunista. Forster vem da mesma escola: enquanto seu filme anterior (A Última Ceia) era um filme racista sobre preconceito racial, ele agora nos chega com este libelo em favor da nossa capacidade de sonhar – desde que este sonho seja completamente dominado pela realidade e, ainda pior, pelo lugar comum; ou seja, que não seja sonho, afinal. É um novo gênero que se consagra: o cinema conservador em pele de libertário. Assustador, sempre.

É verdade que ele monta aqui uma verdadeira operação de guerra sentimentalóide (comme il faut) para que ninguém perceba que ele é adepto do “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”: afinal, no meio de uma história com quatro crianças prodígio, um cachorro, uma mulher que morre de tuberculose, e (golpe de mestre) um gênio da escrita criando sua obra máxima, quem vai perceber que o discurso do filme não bate com o que ele mostra? Mas, o fato é que de um filme que ousa terminar com um plano de um ator-mirim prodígio chorando, não se pode esperar mesmo limite para os golpes baixos. Entenda-se bem: o menos grave do filme é seu apelo melodramático – afinal, o melodrama é uma construção dramatúrgica tão válida como qualquer outra. No entanto há que se ver porque (e como) se usa o melodrama, e aí sim Em Busca da Terra do Nunca mostra sua face obscura.

São elaborados, no entanto, os caminhos deste golpe em forma de filme: primeiro, pegando um dos mais libertários livros/peça jamais escrito (Peter Pan), ícone máximo da liberdade a todo custo, imagem do desejo de não se conformar com o que há de mais inexorável na ordem do mundo (a passagem do tempo). Claro, para isso conta-se com o fato que a maioria não leu mesmo o original, e já entende Peter Pan pela filtragem politicamente correta da Disney (empresa-mãe da Miramax). Então, o filme garante ao mesmo tempo seu verniz cultural auto-importante (não é qualquer história, é a história de J. M. Barrie, o criador de Peter Pan!), e sua aura de sonho libertário (Neverland...). Depois, coloca-se como protagonista Johnny Depp (o Edward Mãos de Tesoura, o Ed Wood etc), o que ajuda bastante na luta para esconder o fato de que se quer perverter tudo aquilo que a obra inteira de Tim Burton idealizou quanto aos domínios da fantasia e da recusa às normas da “realidade”, e finge-se fazer um tipo de “homenagem”. Finalmente, e golpe final, pega-se a gênese da obra máxima de Barrie (não por acaso, Peter Pan), e faz-se uma recriação de seu surgimento, garantindo a estaca final no coração do espectador afoito por “relevância humana e cultural”. Voilá!

No meio deste processo deve-se jogar pó de pirlimpimpim nos olhos do espectador o tempo todo, tentando evitar que ele perceba algumas “verdades” sobre o filme que se faz de fato. Mas, se levantamos o tapete, podemos ver este filme “escondido” em todo o seu esplendor de reacionarismo: destaquemos o simples fato de que o espaço do sonho e da realidade estão sempre sanitariamente delimitados (urso dançando: sonho; cachorro no parque: realidade), acima de tudo na realização do filme em si: cartesiano, organizado, delimitado. “Filme de resultados”, por assim dizer – nenhum espaço para o propalado “espírito livre” (na cena da peça de teatro que as crianças encenam, isolado momento onde a magia parece querer irromper, logo se interrompe a mesma para plantar uma tuberculose no personagem da mãe: vitória inexorável da “narratividade” sobre o sonho).

Enquanto o filme finge defender um suposto caráter “onírico” da criação da obra de arte, pretende nos fazer crer que cada pedacinho de uma obra livre como Peter Pan tinha um duplo exato na vida de J. M. Barrie – ou seja, a arte não é, de fato, fruto da criação mágica, da transcendência do artista, e sim uma aplicação (digamos, psicanalítica) dos aspectos reais de sua biografia num enclausuramento ficcional. Pobre Barrie... o gancho que surge na mão da avó maldosa do filme chega a ser constrangedor. E o filme revela então todo seu moralismo, finalmente, no ato de transformar a existência de um artista (Barrie), uma obra de arte única (Peter Pan), e a criação desta por aquele, numa simples “lição de vida” digna do mais tosco manual de auto-ajuda (que é o que o filme realmente se pretende ser) – quando Barrie, no filme, diz com orgulho que sua peça é “just a piece of silliness” (“apenas uma pequena bobagem”), resta-nos apenas a tristeza de ver que o filme de Forster se pretende ser algo bem mais do que isso, pretende nos “ensinar algo sobre a experiência humana”. Ai ai...

Neste espetáculo, sobra para o espectador apenas um papel de fiscal de escola neste rame-rame que bate ponto em todas as categorias possíveis do cinema mais desinteressante que se pode fazer no mundo (“personagens femininas invejosas e maldosas que descobrem no final que a vida é mais do que apenas pequenez de espírito” – presente; “trilha sonora auto-chamativa” – presente; “reconstituição de época de naturalismo impecável” – presente; “atores importantes em papéis secundários (Dustin Hoffman, Julie Christie)” – presente).  E a constatação de que, no filtro de politicamente correto que se aplica frente ao mundo, até mesmo a estranha atração de titio Barrie pelos quatro garotinhos passa a ser apenas uma “gentil ternura”, um “espírito eternamente infantil e sonhador”. Sei não, mas acho que mais ano menos ano, a vida de Michael Jackson ainda pode virar um “filme educativo para toda a família”. É só ver se a Miramax e seus meninos perdidos Forster e Darabont continuam na ativa mais umas decadazinhas... Enquanto isso, alguém a fim de dramatizar a relação de Lewis Carroll com a musa inspiradora de Alice no País das Maravilhas? Uh-oh...

Eduardo Valente