Não é todo dia que se tem mãos
um filme que tenha “imortalidade” escrito em sua testa.
Pois bem, o novo filme de Marc Forster certamente tem
esta qualidade – afinal Em Busca da Terra do Nunca
poderá ser dissecado e estudado no futuro, quando se
desejar pegar um caso exemplar do “cinema de arte by
Miramax” deste nosso tempo. Trata-se de uma das mais
grotescas pantomimas colocadas em cena em muito tempo,
que de cinema e de arte tem muito pouco – mas de Miramax
tem bastante.
Já nos primeiros minutos, o paradoxo da sequência de
créditos apresenta aquilo que vai nos atormentar ao
longo da projeção – enquanto vemos uma cortina de teatro
com o som de uma orquestra se afinando (artifício já
mais que batido para abrir filmes como um “espetáculo
montado”), surge na tela com pompa e circunstância,
depois de absolutamente todos os créditos passarem,
como sendo a informação mais importante de todas: “inspirado
por uma história real”. Pois é este o espaço do espetáculo
à la Forster: só vale no tanto em que for “verdadeiro”
– sendo que o paradoxo da afirmação que o filme faz
não só parece escapar a ele mesmo, como coloca em cheque
a tese mesma que o filme pensa defender. Neste sentido,
Em Busca da Terra do Nunca revela Marc Forster
como o herdeiro legítimo de Frank Darabont. Afinal,
Darabont fez um filme (À Procura de um Milagre)
que se afirma contra a pena de morte enquanto defende
que matar as pessoas, desde que elas sejam ruins, é
OK; e um outro (Cine Majestic) que afirma que
o que importa é que tenhamos direito a nossa liberdade
de pensamento, desde que este pensamento não seja comunista.
Forster vem da mesma escola: enquanto seu filme anterior
(A Última Ceia) era um filme racista sobre preconceito
racial, ele agora nos chega com este libelo em favor
da nossa capacidade de sonhar – desde que este sonho
seja completamente dominado pela realidade e, ainda
pior, pelo lugar comum; ou seja, que não seja sonho,
afinal. É um novo gênero que se consagra: o cinema conservador
em pele de libertário. Assustador, sempre.
É verdade que ele monta aqui uma verdadeira operação
de guerra sentimentalóide (comme il faut) para
que ninguém perceba que ele é adepto do “faça o que
eu digo, não faça o que eu faço”: afinal, no meio de
uma história com quatro crianças prodígio, um cachorro,
uma mulher que morre de tuberculose, e (golpe de mestre)
um gênio da escrita criando sua obra máxima, quem vai
perceber que o discurso do filme não bate com o que
ele mostra? Mas, o fato é que de um filme que ousa terminar
com um plano de um ator-mirim prodígio chorando, não
se pode esperar mesmo limite para os golpes baixos.
Entenda-se bem: o menos grave do filme é seu apelo melodramático
– afinal, o melodrama é uma construção dramatúrgica
tão válida como qualquer outra. No entanto há que se
ver porque (e como) se usa o melodrama, e aí sim Em
Busca da Terra do Nunca mostra sua face obscura.
São elaborados, no entanto, os caminhos deste golpe
em forma de filme: primeiro, pegando um dos mais libertários
livros/peça jamais escrito (Peter Pan), ícone
máximo da liberdade a todo custo, imagem do desejo de
não se conformar com o que há de mais inexorável na
ordem do mundo (a passagem do tempo). Claro, para isso
conta-se com o fato que a maioria não leu mesmo o original,
e já entende Peter Pan pela filtragem politicamente
correta da Disney (empresa-mãe da Miramax). Então, o
filme garante ao mesmo tempo seu verniz cultural auto-importante
(não é qualquer história, é a história de J. M. Barrie,
o criador de Peter Pan!), e sua aura de sonho
libertário (Neverland...). Depois, coloca-se
como protagonista Johnny Depp (o Edward Mãos de Tesoura,
o Ed Wood etc), o que ajuda bastante na luta para esconder
o fato de que se quer perverter tudo aquilo que a obra
inteira de Tim Burton idealizou quanto aos domínios
da fantasia e da recusa às normas da “realidade”, e
finge-se fazer um tipo de “homenagem”. Finalmente, e
golpe final, pega-se a gênese da obra máxima de Barrie
(não por acaso, Peter Pan), e faz-se uma recriação
de seu surgimento, garantindo a estaca final no coração
do espectador afoito por “relevância humana e cultural”.
Voilá!
No meio deste processo deve-se jogar pó de pirlimpimpim
nos olhos do espectador o tempo todo, tentando evitar
que ele perceba algumas “verdades” sobre o filme que
se faz de fato. Mas, se levantamos o tapete, podemos
ver este filme “escondido” em todo o seu esplendor de
reacionarismo: destaquemos o simples fato de que o espaço
do sonho e da realidade estão sempre sanitariamente
delimitados (urso dançando: sonho; cachorro no parque:
realidade), acima de tudo na realização do filme em
si: cartesiano, organizado, delimitado. “Filme de resultados”,
por assim dizer – nenhum espaço para o propalado “espírito
livre” (na cena da peça de teatro que as crianças encenam,
isolado momento onde a magia parece querer irromper,
logo se interrompe a mesma para plantar uma tuberculose
no personagem da mãe: vitória inexorável da “narratividade”
sobre o sonho).
Enquanto o filme finge defender um suposto caráter “onírico”
da criação da obra de arte, pretende nos fazer crer
que cada pedacinho de uma obra livre como Peter Pan
tinha um duplo exato na vida de J. M. Barrie – ou seja,
a arte não é, de fato, fruto da criação mágica, da transcendência
do artista, e sim uma aplicação (digamos, psicanalítica)
dos aspectos reais de sua biografia num enclausuramento
ficcional. Pobre Barrie... o gancho que surge na mão
da avó maldosa do filme chega a ser constrangedor. E
o filme revela então todo seu moralismo, finalmente,
no ato de transformar a existência de um artista (Barrie),
uma obra de arte única (Peter Pan), e a criação desta
por aquele, numa simples “lição de vida” digna do mais
tosco manual de auto-ajuda (que é o que o filme realmente
se pretende ser) – quando Barrie, no filme, diz com
orgulho que sua peça é “just a piece of silliness” (“apenas
uma pequena bobagem”), resta-nos apenas a tristeza de
ver que o filme de Forster se pretende ser algo bem
mais do que isso, pretende nos “ensinar algo sobre a
experiência humana”. Ai ai...
Neste espetáculo, sobra para o espectador apenas um
papel de fiscal de escola neste rame-rame que bate ponto
em todas as categorias possíveis do cinema mais desinteressante
que se pode fazer no mundo (“personagens femininas invejosas
e maldosas que descobrem no final que a vida é mais
do que apenas pequenez de espírito” – presente; “trilha
sonora auto-chamativa” – presente; “reconstituição de
época de naturalismo impecável” – presente; “atores
importantes em papéis secundários (Dustin Hoffman, Julie
Christie)” – presente).
E a constatação de que, no filtro de politicamente
correto que se aplica frente ao mundo, até mesmo a estranha
atração de titio Barrie pelos quatro garotinhos passa
a ser apenas uma “gentil ternura”, um “espírito eternamente
infantil e sonhador”. Sei não, mas acho que mais ano
menos ano, a vida de Michael Jackson ainda pode virar
um “filme educativo para toda a família”. É só ver se
a Miramax e seus meninos perdidos Forster e Darabont
continuam na ativa mais umas decadazinhas... Enquanto
isso, alguém a fim de dramatizar a relação de Lewis
Carroll com a musa inspiradora de Alice no País das
Maravilhas? Uh-oh...
Eduardo Valente
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