A
morte. Ela quase sempre chega sem ser anunciada. Bruscamente,
num rompante violento e súbito, ou sem ser percebida,
de mansinho, se instalando pé ante pé.
Degrada o corpo e o espírito, esfacela a dignidade
do ser, levando-o a profundidades nunca antes imaginadas.
Aschenbach era o melhor que a cultura européia
poderia ter produzido. Músico de primeira linha,
cidadão da mais alta estirpe, portador de um
título de nobreza e profundo conhecedor de uma
ampla cultura. Bem diferente do burguês de plantão,
ele sabia a importância das artes e o valor de
uma vida dedicada ao incansável labor em busca
da forma perfeita, aliando de maneira talvez proibida
arte e ciência. Acreditava poder atingir a beleza
e o sublime trabalhando sem descanso e se dedicando
com persistência incansável ao cultivo
de uma obra impecável, renunciando de toda a
forma à lassidão e aos prazeres mais banais.
Mas eis que o imponderável golpeia seu trajeto
acertado e sua postura alinhada: de férias para
recuperar seu fôlego criativo e animar seu corpo
frágil, ele encontra a manifestação
terrena da mais intocada beleza imaginada.
Humano e sensível, Aschenbach não pôde
renunciar a ela para manter sua integridade e superioridade
moral, como talvez tivesse feito Sócrates em
suas palavras a Fedro. Artista que era, não poderia
negar tal apelo nem com o mais científico dos
esforços. Estivesse ele perto de sua casa, em
território cativo, quem sabe teria se segurado
em tudo que lhe era mais caro e firme, tudo aquilo que
havia tão duramente construído ao longo
da vida e que estaria ali, a lhe oferecer porto seguro...
Mas era Veneza. As águas flutuantes entre as
vielas labirínticas, fizeram Aschenbach cambalear
e se deixar levar, perdendo-se nos enlevos de seus próprios
desejos proibidos, de seus próprios interesses
sufocados. Se apaixonou como o mais ingênuo adolescente
que nunca se permitiu ser. Se rebaixou, assim, de mansinho,
do mais louvável posto em que se encontrava.
Se deixou definhar, na vontade mais ardente de se entregar
de corpo e alma a um sentimento, como por toda a sua
vida havia se proibido de fazer. Se entregou, por fim,
a uma devotada relação platônica
de admiração de uma beleza divina e ignorância
das leis físicas que regem o mundo.
Obstinado em seu intuito ordenador, ele nunca gostaria
que algo fugisse à sua programação,
tomando rédeas próprias. Seu corpo debilitado
nunca poderia responder à altura de seu esforço
intelectual e, agora que envelhecia, sentindo o peso
inexorável do tempo que escorre na ampulheta,
atirado no mais inconcebível turbilhão
emocional, é mesmo que não se permitiria
romper a espessa barreira invisível entre si
e os outros. Assistindo tudo de longe, amando à
distância, em idéia, Aschenbach progressivamente
mergulha em decadência. Vê se corromper
sua imagem de grande homem, perde a medida das coisas,
se acredita dono da realidade que apreende com os olhos
e processa com a mente. Os longos zooms de Visconti
dão a exata dimensão da distância
a que ele se encontra de tudo – imagens passadas, objeto
amado – e de como tudo isto passa a existir extremamente
próximo e vivo para ele, que experimenta um processo
de introspecção cada vez maior. Tudo aquilo
tornado tão familiar e tão intimamente
conhecido, na realidade, não se compartilhava
com ele. Levava uma existência própria,
para muito além dos limites do quadro, recorte
de uma atenção vidrada desejosa de tudo
capturar. Administrava a si mesma, inapreensível,
ignorante daquele homem aprisionado por milhões
de desígnios insondáveis de si para si
mesmo, não fosse por sua presença constante,
numa quase onipresença nos espaços ocupados
pela família polonesa do rapaz Tadzio. A câmera,
que vai e vem, que se esgueira por trás das colunas
da cidade e entre os mil atrativos que povoam o hotel,
busca uma cumplicidade com esta sensação
de progressivo afastamento do mundo, tentando avistar
ou entender este prodigioso homem, cuja silhueta famosa
e conhecida vai se perdendo, dando lugar a um escravo
do olhar.
Morte em Veneza é, sem dúvida,
um filme de ponto de vista. Encenado pelo olhar de Aschenbach
e medido por aproximações e afastamentos
de acordo com sua percepção do que o cerca,
ele constrói de início uma atmosfera descritiva,
que vai dando lugar ao recorte privilegiado de Aschenbach
das particularidades do local. Se sua panorâmica
de turista recém-chegado captava muito do ambiente
do Hotel de Bains e da praia do Lido, logo sua atenção
está fixada em seu objeto de adoração
apaixonada, o Belo, o rapaz Tadzio e tudo o que o rodeia.
Em cada gesto medido de Aschenbach é possível
ver o detalhismo de Visconti e sua adesão ao
original de Thomas Mann. O que era extensa descrição
psicológica e sentimental naquele, ele transforma
em devotada expressão pictórica, compondo
quadros e movimentos de câmera ensaiados à
perfeição, como é possível
ver no curto, mas excelente, extra de DVD "A Veneza
de Visconti". Nele, temos acesso a uma breve visão
do processo criativo do diretor, que demonstra manifestar
grande amor por seus personagens, a ponto de nunca negar-lhes
a imagem, concedendo-lhes, ao contrário, num
esforço perfeccionista, sempre a melhor imagem.
E como prova da contaminação do filme
por seu objeto, podemos ver a contenção
de Aschenbach, por um lado, e sua fixação
apaixonada, por outro, pautarem Morte em Veneza
do início ao fim. Visconti afirma ter transformado
o personagem de Mann de escritor em músico para
ser mais fiel ao intencionado pelo próprio autor,
que era se aproximar, de alguma forma, da figura do
compositor Mahler. Não à toa, Mahler musica
veementemente todo o filme. Se Mann manifestava sua
profunda compreensão dos dilemas intelectuais-artísticos
de seu personagem através da sua própria
escrita, Visconti a manifesta através da trilha
sonora e da transposição de um personagem
extremamente psicologizado para um personagem eminentemente
visual. Não acessamos Aschenbach por uma detalhada
descrição do seu interior, mas pela observação
dos gestos e expressões precisos de Dirk Bogarde
e pelo acompanhamento intensivo da música de
Mahler.
Dessa forma, vamos acompanhando, em progresso imperceptível,
a morte de Aschenbach, embebido da paisagem de Veneza
e consumido pela obsessão de perfeição
e beleza. Tudo aquilo que ele mais prezava ali, presente
demais para um homem já tão fragilizado
e debilitado pelo avanço do tempo em seu corpo
e seu espírito, tornou inviável o restante
do percurso. Ele havia atingido o ponto crítico.
Seu modo de vida havia saturado sua própria vida.
E o que poderia tê-lo feito recarregar suas energias,
seus valores e suas crenças, para caminhar rumo
aos seus últimos anos, o fez entrar em colapso
e determinou uma impossibilidade de progredir.
Aschenbach morre. Contaminado por sua cidade amada,
impregnada de peste asiática, e por seu adorado
objeto de veneração, envolto por uma distância
intransponível em que apenas massacrantes joguinhos
sedutores têm espaço. Mergulhado em delírios
e febres próprias de quem é atingido por
grave infecção do corpo ou da alma, ele
abraça o declínio, transformando-se no
patético velho vestido de manequim pasteurizado
de homem jovial, que ele mesmo repugnava. Desfalece
por fim na praia deserta de turistas evadidos pela peste,
no palco que assistiu sua lenta decadência, frente
à imagem de seu ídolo venerado, que na
mais bela pose de Deus, aponta o infinito, coberto por
centelhas de luz emitidas pelo mar que reflete a cegueira
emitida pelo sol. Permanecemos nós, com a estupefação
de ter presenciado um amor muito intenso sem nenhuma
troca efetiva, uma vida tão bem estruturada e
tão altiva se esfacelando ante o mais banal,
um filme tão belo sobre algo tão horrível...
Tatiana Monassa
(DVD/VHS Warner)
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