O
que é hoje o rosto de Clint Eastwood? Uma figura
em contraluz, escurecida, da qual se vê apenas
alguns pedaços parcialmente iluminados. Um rosto
opaco, de pequenos gestos, que no mais das vezes só
refletem as ações de outros rostos ou
corpos, se abismam, se impressionam, se mostram aterrados
com o que vêem: aterrado ao ponto da falta de
gestos. Esse rosto de pedra, Eastwood soube sempre usar
de forma inigualável, desde a empáfia
em seus primeiros western-spaghettis à
figura cheia de rugas e culpas de seus últimos
filmes. O rosto de Eastwood é um rosto que problematiza
seu próprio envelhecimento dentro de uma indústria
de cinema que geralmente conjura seus artistas sexagenários
para fora das telas ou reduz sua participação
a pequenos papéis secundários cheios de
nobreza. Em Eastwood, esse envelhecimento tem de nobreza
muito pouco, mas muito de dignidade: uma dignidade de
meias furadas, sonhos frustrados, olhos cegos e falhas
de caráter. O cavaleiro pálido dos tempos
áureos se transforma em cético escuro.
A parceria com o diretor de fotografia Tom Stern a partir
de Dívida de Sangue dá ao cinema
de Clint Eastwood em geral um clima escurecido, soturno,
como se o universo cotidiano participasse de um estranho
complô de filme de terror vivido à luz
do dia. E Menina de Ouro, o bebê também
envelhecido - para a idade de uma boxeadora em começo
de carreira - de um milhão de dólares,
acrescenta mais tons de negro à paleta eastwoodiana,
fazendo casa perfeitamente para a tragédia meta-familiar
que está para acontecer aos personagens.
Porque o cinema de Eastwood, ao menos desde Os Imperdoáveis
(1992), parece circular por dois pólos ao mesmo
tempo diferentes e complementares: o corpo que envelhece
– Cowboys do Espaço como tratado ontológico
e vários outros, de Os Imperdoáveis
a Dívida de Sangue, como variações
– e a paternidade transversa. Seus protagonistas são
familiares - quase sempre pais - falidos, que tentam
criar elos de ligação familiar fora da
filiação sangüínea (Um
Mundo Perfeito e Crime Verdadeiro sendo apenas
os casos mais evidentes, pois até em Meia-Noite
no Jardim do Bem e do Mal e em Sobre Meninos
e Lobos são estruturas de paternidade que
permitem fazer existir todo o relato). Existe sempre
um elemento subversivo nessa substituição
trans: um homem que vem de longe para fazer da mulher
de outro a sua (As Pontes de Madison), uma criança
que se adota para fazê-la ter a infância
que não se teve (Um Mundo Perfeito), um
amigo a quem se deve confessar quando o padre foi incapaz
de dar ouvidos à confissão protocolar
(talvez a cena chave de Menina de Ouro). É
uma substituição que sutilmente engaja
seus personagens para fora dos circuitos de deus, família
e propriedade, e os obriga a uma reconstrução
do sentido da vida muito longe daquilo que é
o discurso oficial sobre ela.
Todo esse parêntese é necessário
para dar conta do que é Menina de Ouro,
um filme que ao mesmo tempo é a confirmação
de uma nova fase na carreira de Eastwood (que começara,
sem nos darmos conta, com Dívida de Sangue,
e os indícios são mais do que a troca
de fotógrafo) e o momento culminante de um percurso
coerente e homogêneo a toda obra, que aqui assume
ares de "arte poética", tamanha a frontalidade
da temática. Nova fase porque o herói
não é mais aquele que vem do mundo das
trevas para iluminar o nosso (O Estranho Sem Nome),
mas é o próprio e muito nosso mundo que
é o mundo das trevas. Trevas porque o máximo
a fazer é reconhecer a impotência diante
das reviravoltas do mundo: deixar o assassino à
solta (Sobre Meninos e Lobos), apressar a chegada
da morte (Menina de Ouro), conviver com um terceiro
personagem maculado para a vida inteira, sem chances
de recuperação (Morgan Freeman em Menina
de Ouro, Tim Robbins em Sobre Meninos e Lobos).
Seus filmes mais recentes abandonam a limpidez clássica
de suas obras-primas dos anos 90 e preferem submergir
em águas nebulosas de existências doloridas.
A trama sai de um trauma. A filha sempre ausente é
a mácula de Frankie Dunn, veterano treinador
de boxe. Ela é a instância recalcada, que
volta em vários momentos de sua vida, mas cujo
rosto jamais aparece na tela (curiosa similaridade com
a esposa de Kevin Bacon em Sobre Meninos e Lobos):
nas visitas à igreja, nas cartas que ele escreve
e que sempre voltam, e por fim no convívio com
seus pupilos. Segundo trauma: quando trabalhava como
segundo, seu mágico poder de estancar sangramentos
causou a Scrap a perda de um olho e a conseqüente
aposentadoria. O que faz com que Dunn seja um homem
maculado e precavido, paternalizante ao ponto de não
querer fazer com que seus tutelados corram riscos: um
pai hiperprotetor com seus filhos. Do outro lado, está
Maggie, oriunda da típica família white
trash do interior, velha demais para começar,
mas que vê o boxe como a única expectativa
de vida minimamente diferente daquela que viveu (e que
odeia). Mais força do que talento, mais aplicação
do que gênio, Maggie gruda na figura de Frankie
como sua única esperança de ser bem sucedida.
Questão de família, ou de familiaridade.
Todas as tentativas de constituição de
laço familiar, seja com Frankie ou com Maggie,
são frustradas: as cartas de Frankie voltam,
a família de Maggie rejeita sua nova atividade
e reclama da casa que ela comprou para eles (que eventualmente
poderia fazer com que a mãe perdesse a pensão
de seguro social). A própria vida de Frankie
é composta de filhos-estepe, de quem ele sente
a necessidade de cuidar e proteger: Scrap, o lutador
sensação Big Willie Nelson. Uma proteção
sufocante: Big Willie é o enésimo a trocar
Dunn por um manager que consiga para ele a luta
pelo título. Os filhos que desaparecem são
o eterno retorno de Frankie Dunne. Mas essa paternidade
transversa não é uma remissão recalcada
da paternidade ausente originária, mas a chance
para novos agenciamentos. Assim como em Um Mundo
Perfeito, a relação de paternidade
transversa entre Frankie e Maggie em Menina de Ouro
não está lá para substituir
uma outra impossível, mas para existir no presente
da vida de cada um deles. É só numa familiaridade
fora da família – e, no caso de Frankie, numa
religiosidade fora de deus – que eles conseguirão
exprimir seus sentimentos: Menina de Ouro é
povoado de órfãos, abandonados, desgarrados,
vivendo numa comunidade que, no limite, é mais
forte ou deveria ser mais forte que o sangue (Mo Cuishle).
Mas, como em todo filme de Clint Eastwood, o tema da
paternidade evoca sempre o da responsabilidade. Uma
responsabilidade que há muitos anos não
é mais a do caubói moderno Dirty Harry,
mas a das incertezas diante das decisões a tomar,
ou da indiscernibilidade em relação a
elas. A "coisa a fazer" não é
"a coisa certa" nos filmes de Eastwood há
muito tempo: o que agride demais em seus filmes é
a constatação da lacuna existente entre
a impossibilidade da ação "correta"
e a inaceitabilidade dos atos que se tem que empreender
(o fim de Poder Absoluto, nos termos da diegese
e nos termos das próprias convenções
do gênero ao cortar para pai e filha no momento
clímax; a estupidez da decisão absurda
do xerife em Um Mundo Perfeito; a escolha final
de Tommy Lee Jones em Cowboys do Espaço).
Em Menina de Ouro, temos um cenário um
pouco diferente: toda a intriga da responsabilidade
se situa diretamente em função da relação
transversa de pai e filha. Ao contrário da costumeira
metáfora pai/lei (Sobre Meninos e Lobos,
Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal), é
diretamente nas atribuições de pai ou
tutor que o circuito da responsabilidade funciona. Frankie
Dunn é aquele que não ouve, aquele que
sempre sabe e que não dá opções
de escolha a seus pupilos; seu percurso como personagem
deverá ser o aprendizado da liberdade do outro.
Mas é aí que o próprio aprendizado
fere: quando Maggie faz uma escolha absurda de percurso
para uma luta em outra cidade (ir de avião, voltar
de carro), achamos que o percurso estava constituído;
será só no final, no entanto, que a posição
de Frankie será posta à prova, no momento
limite de fazer para Maggie algo que ele mesmo
jamais faria e, assim, concomitantemente, mais uma vez
repetindo seu eterno retorno.
Menina de Ouro tem vários movimentos,
vários ritmos diferentes. Cineasta especulativo
e moralista (no sentido de colocar em jogo temas morais)
que é, Eastwood não tem o mínimo
pudor em jogar com gêneros a seu bel prazer, fazer
um estudo de personagem cambalear para um autêntico
filme de boxe e depois se transformar abruptamente num
melodrama em sentido estrito. Talvez o único
senão do filme seja uma certa falta de equilíbrio
entre os ritmos, a última parte sendo de longe
a mais pungente, e de ritmo mais detido. É, também,
o momento em que os atores, todos excelentes, se superam
em seus papéis, Hilary Swank se referindo a seu
cachorro de estimação, Morgan Freeman
aconselhando seu parceiro ou Eastwood na igreja, indeciso
sobre seu comportamento. E, convenhamos, só mesmo
Clint Eastwood para fazer de um embate moral com raízes
teológicas – o direito à eutanásia
– uma confrontação pessoal de responsabilidade.
Quando Frankie Dunn vai à igreja, ele não
está se deparando com a justiça divina,
mas com uma tomada de decisão muito pessoal entre
abrir mão da vida da única pessoa que
faz sentido na sua própria vida, ou deixá-la
existir de forma egoísta e contra a própria
vontade dela. Tanto que a lógica do transverso
em Eastwood faz com que, à cena da igreja, siga-se
a cena da conversa entre Scrap e Frankie, em que Scrap
assume, sempre de forma transversa, a função
que deveria ser a do padre: o consolo na decisão
difícil. Essa operação sutil de
desteologização da problemática,
de fazer das decisões o palco de questões
mormente humanas e humanamente frágeis, de muito
sub-repticiamente quebrar as regras de expectativa clássica
no cinema narrativo para transformar a intriga em cenários
do dilema humano é o que é tão
admirável e comovente na obra de Eastwood, e
em Menina de Ouro em particular. Um cinema que,
como a obra de Otto Preminger, reside nos meandros não
explicados pelos protocolos, não subsumidos pela
lógica narrativa, não resolvidos pelo
mínimo denominador comum. Um cinema que se interessa
antes de tudo pelo fator humano.
Ruy Gardnier
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