MENINA DE OURO
Clint Eastwood, Million Dollar Baby, EUA, 2004

O que é hoje o rosto de Clint Eastwood? Uma figura em contraluz, escurecida, da qual se vê apenas alguns pedaços parcialmente iluminados. Um rosto opaco, de pequenos gestos, que no mais das vezes só refletem as ações de outros rostos ou corpos, se abismam, se impressionam, se mostram aterrados com o que vêem: aterrado ao ponto da falta de gestos. Esse rosto de pedra, Eastwood soube sempre usar de forma inigualável, desde a empáfia em seus primeiros western-spaghettis à figura cheia de rugas e culpas de seus últimos filmes. O rosto de Eastwood é um rosto que problematiza seu próprio envelhecimento dentro de uma indústria de cinema que geralmente conjura seus artistas sexagenários para fora das telas ou reduz sua participação a pequenos papéis secundários cheios de nobreza. Em Eastwood, esse envelhecimento tem de nobreza muito pouco, mas muito de dignidade: uma dignidade de meias furadas, sonhos frustrados, olhos cegos e falhas de caráter. O cavaleiro pálido dos tempos áureos se transforma em cético escuro.

A parceria com o diretor de fotografia Tom Stern a partir de Dívida de Sangue dá ao cinema de Clint Eastwood em geral um clima escurecido, soturno, como se o universo cotidiano participasse de um estranho complô de filme de terror vivido à luz do dia. E Menina de Ouro, o bebê também envelhecido - para a idade de uma boxeadora em começo de carreira - de um milhão de dólares, acrescenta mais tons de negro à paleta eastwoodiana, fazendo casa perfeitamente para a tragédia meta-familiar que está para acontecer aos personagens.

Porque o cinema de Eastwood, ao menos desde Os Imperdoáveis (1992), parece circular por dois pólos ao mesmo tempo diferentes e complementares: o corpo que envelhece – Cowboys do Espaço como tratado ontológico e vários outros, de Os Imperdoáveis a Dívida de Sangue, como variações – e a paternidade transversa. Seus protagonistas são familiares - quase sempre pais - falidos, que tentam criar elos de ligação familiar fora da filiação sangüínea (Um Mundo Perfeito e Crime Verdadeiro sendo apenas os casos mais evidentes, pois até em Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal e em Sobre Meninos e Lobos são estruturas de paternidade que permitem fazer existir todo o relato). Existe sempre um elemento subversivo nessa substituição trans: um homem que vem de longe para fazer da mulher de outro a sua (As Pontes de Madison), uma criança que se adota para fazê-la ter a infância que não se teve (Um Mundo Perfeito), um amigo a quem se deve confessar quando o padre foi incapaz de dar ouvidos à confissão protocolar (talvez a cena chave de Menina de Ouro). É uma substituição que sutilmente engaja seus personagens para fora dos circuitos de deus, família e propriedade, e os obriga a uma reconstrução do sentido da vida muito longe daquilo que é o discurso oficial sobre ela.

Todo esse parêntese é necessário para dar conta do que é Menina de Ouro, um filme que ao mesmo tempo é a confirmação de uma nova fase na carreira de Eastwood (que começara, sem nos darmos conta, com Dívida de Sangue, e os indícios são mais do que a troca de fotógrafo) e o momento culminante de um percurso coerente e homogêneo a toda obra, que aqui assume ares de "arte poética", tamanha a frontalidade da temática. Nova fase porque o herói não é mais aquele que vem do mundo das trevas para iluminar o nosso (O Estranho Sem Nome), mas é o próprio e muito nosso mundo que é o mundo das trevas. Trevas porque o máximo a fazer é reconhecer a impotência diante das reviravoltas do mundo: deixar o assassino à solta (Sobre Meninos e Lobos), apressar a chegada da morte (Menina de Ouro), conviver com um terceiro personagem maculado para a vida inteira, sem chances de recuperação (Morgan Freeman em Menina de Ouro, Tim Robbins em Sobre Meninos e Lobos). Seus filmes mais recentes abandonam a limpidez clássica de suas obras-primas dos anos 90 e preferem submergir em águas nebulosas de existências doloridas.

A trama sai de um trauma. A filha sempre ausente é a mácula de Frankie Dunn, veterano treinador de boxe. Ela é a instância recalcada, que volta em vários momentos de sua vida, mas cujo rosto jamais aparece na tela (curiosa similaridade com a esposa de Kevin Bacon em Sobre Meninos e Lobos): nas visitas à igreja, nas cartas que ele escreve e que sempre voltam, e por fim no convívio com seus pupilos. Segundo trauma: quando trabalhava como segundo, seu mágico poder de estancar sangramentos causou a Scrap a perda de um olho e a conseqüente aposentadoria. O que faz com que Dunn seja um homem maculado e precavido, paternalizante ao ponto de não querer fazer com que seus tutelados corram riscos: um pai hiperprotetor com seus filhos. Do outro lado, está Maggie, oriunda da típica família white trash do interior, velha demais para começar, mas que vê o boxe como a única expectativa de vida minimamente diferente daquela que viveu (e que odeia). Mais força do que talento, mais aplicação do que gênio, Maggie gruda na figura de Frankie como sua única esperança de ser bem sucedida.

Questão de família, ou de familiaridade. Todas as tentativas de constituição de laço familiar, seja com Frankie ou com Maggie, são frustradas: as cartas de Frankie voltam, a família de Maggie rejeita sua nova atividade e reclama da casa que ela comprou para eles (que eventualmente poderia fazer com que a mãe perdesse a pensão de seguro social). A própria vida de Frankie é composta de filhos-estepe, de quem ele sente a necessidade de cuidar e proteger: Scrap, o lutador sensação Big Willie Nelson. Uma proteção sufocante: Big Willie é o enésimo a trocar Dunn por um manager que consiga para ele a luta pelo título. Os filhos que desaparecem são o eterno retorno de Frankie Dunne. Mas essa paternidade transversa não é uma remissão recalcada da paternidade ausente originária, mas a chance para novos agenciamentos. Assim como em Um Mundo Perfeito, a relação de paternidade transversa entre Frankie e Maggie em Menina de Ouro não está lá para substituir uma outra impossível, mas para existir no presente da vida de cada um deles. É só numa familiaridade fora da família – e, no caso de Frankie, numa religiosidade fora de deus – que eles conseguirão exprimir seus sentimentos: Menina de Ouro é povoado de órfãos, abandonados, desgarrados, vivendo numa comunidade que, no limite, é mais forte ou deveria ser mais forte que o sangue (Mo Cuishle).

Mas, como em todo filme de Clint Eastwood, o tema da paternidade evoca sempre o da responsabilidade. Uma responsabilidade que há muitos anos não é mais a do caubói moderno Dirty Harry, mas a das incertezas diante das decisões a tomar, ou da indiscernibilidade em relação a elas. A "coisa a fazer" não é "a coisa certa" nos filmes de Eastwood há muito tempo: o que agride demais em seus filmes é a constatação da lacuna existente entre a impossibilidade da ação "correta" e a inaceitabilidade dos atos que se tem que empreender (o fim de Poder Absoluto, nos termos da diegese e nos termos das próprias convenções do gênero ao cortar para pai e filha no momento clímax; a estupidez da decisão absurda do xerife em Um Mundo Perfeito; a escolha final de Tommy Lee Jones em Cowboys do Espaço). Em Menina de Ouro, temos um cenário um pouco diferente: toda a intriga da responsabilidade se situa diretamente em função da relação transversa de pai e filha. Ao contrário da costumeira metáfora pai/lei (Sobre Meninos e Lobos, Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal), é diretamente nas atribuições de pai ou tutor que o circuito da responsabilidade funciona. Frankie Dunn é aquele que não ouve, aquele que sempre sabe e que não dá opções de escolha a seus pupilos; seu percurso como personagem deverá ser o aprendizado da liberdade do outro. Mas é aí que o próprio aprendizado fere: quando Maggie faz uma escolha absurda de percurso para uma luta em outra cidade (ir de avião, voltar de carro), achamos que o percurso estava constituído; será só no final, no entanto, que a posição de Frankie será posta à prova, no momento limite de fazer para Maggie algo que ele mesmo jamais faria e, assim, concomitantemente, mais uma vez repetindo seu eterno retorno.

Menina de Ouro tem vários movimentos, vários ritmos diferentes. Cineasta especulativo e moralista (no sentido de colocar em jogo temas morais) que é, Eastwood não tem o mínimo pudor em jogar com gêneros a seu bel prazer, fazer um estudo de personagem cambalear para um autêntico filme de boxe e depois se transformar abruptamente num melodrama em sentido estrito. Talvez o único senão do filme seja uma certa falta de equilíbrio entre os ritmos, a última parte sendo de longe a mais pungente, e de ritmo mais detido. É, também, o momento em que os atores, todos excelentes, se superam em seus papéis, Hilary Swank se referindo a seu cachorro de estimação, Morgan Freeman aconselhando seu parceiro ou Eastwood na igreja, indeciso sobre seu comportamento. E, convenhamos, só mesmo Clint Eastwood para fazer de um embate moral com raízes teológicas – o direito à eutanásia – uma confrontação pessoal de responsabilidade. Quando Frankie Dunn vai à igreja, ele não está se deparando com a justiça divina, mas com uma tomada de decisão muito pessoal entre abrir mão da vida da única pessoa que faz sentido na sua própria vida, ou deixá-la existir de forma egoísta e contra a própria vontade dela. Tanto que a lógica do transverso em Eastwood faz com que, à cena da igreja, siga-se a cena da conversa entre Scrap e Frankie, em que Scrap assume, sempre de forma transversa, a função que deveria ser a do padre: o consolo na decisão difícil. Essa operação sutil de desteologização da problemática, de fazer das decisões o palco de questões mormente humanas e humanamente frágeis, de muito sub-repticiamente quebrar as regras de expectativa clássica no cinema narrativo para transformar a intriga em cenários do dilema humano é o que é tão admirável e comovente na obra de Eastwood, e em Menina de Ouro em particular. Um cinema que, como a obra de Otto Preminger, reside nos meandros não explicados pelos protocolos, não subsumidos pela lógica narrativa, não resolvidos pelo mínimo denominador comum. Um cinema que se interessa antes de tudo pelo fator humano.


Ruy Gardnier

 

 

Clint Eastwood e Morgan Freeman em Menina de Ouro (2004)