ENTRANDO NUMA FRIA MAIOR AINDA
Jay Roach, Meet the Fockers, EUA, 2004

Pode já parecer lugar comum a afirmação de que a comédia é um gênero freqüentemente subestimado como objeto de uma análise ou reflexão mais atentas. Ainda assim, em se tratando de comédias calcadas em equívocos ou piadas consideradas “de mau gosto”, os filmes tendem sempre a serem vistos, por considerável parcela da crítica, apenas como entretenimento inconseqüente (exceções existem, em especial no caso de diretores já consagrados – um Woody Allen da vida, por exemplo) – ainda mais quando se trata de sucessos de bilheteria estrondosos.

Foi assim com Entrando Numa Fria (Meet the Parents), dirigido por Jay Roach em 2000 – e que arrecadou mais de 160 milhões de dólares, apenas no mercado dos EUA. O filme, bastante engraçado por sinal, tratava de uma série de situações constrangedoras pelas quais passava Greg Focker (Ben Stiller, personagem cujo sobrenome nas legendas em português foi traduzido como Fornika, para que não se perdesse o trocadilho original), um desajeitado enfermeiro, para ser aceito pela conservadora família de sua noiva, cujo pai era um autoritário agente aposentado da CIA, Jack Byrnes (Robert DeNiro). Filme concebido no final do 2º mandato de Bill Clinton, democrata que governou os EUA quase sempre pressionado for forças conservadoras, o filme parecia antever o – questionável – resultado das eleições realizadas na época em que o filme era lançado, com a vitória do republicano George W. Bush. Ao final de Entrando Numa Fria, Greg consegue enquadrar-se e ser aceito naquilo que Jack denominava seu “círculo de confiança”, submetendo-se a um estilo de vida marcadamente WASP de ser, em prol do seu amor. Da mesma forma, o cidadão americano, ainda mais notadamente no período que se seguiria ao 11/09/2001, veria seu país dominado pelo avanço de uma onda patriótico-moralista e pelo controle da direita republicana.

Passaram-se quatro anos e, junto a uma nova eleição presidencial (na qual se repetiu a vitória de Bush e seu partido), veio a inevitável continuação: Entrando Numa Fria Maior Ainda. E este, notadamente ainda mais que seu antecessor, trata de dizer alguma coisa sobre o estado das coisas na sociedade americana hoje. O título original, Meet the Fockers retrata melhor a realidade do filme, pois, dessa vez, a situação se inverte e é Jack quem tem que visitar e conhecer a família de seu genro, ainda uma figura esquisita para seus padrões. Vemos aqui um aprofundamento no perfil de Greg Focker, que, no filme original, era apresentado principalmente como uma figura eternamente atrapalhada, nos moldes da persona cinematográfica consagrada por Jerry Lewis. Estamos agora em contato com as orígens de Greg Focker, fruto de uma família judia de formação intelectual liberal, ligada aos movimentos de contracultura dos anos 60/70, exemplos daquilo que os americanos considerariam como “esquerda”: o pai, Bernie (Dustin Hoffman), um advogado afastado da profissão; a mãe, Roz (Barbra Streisend), uma terapeuta sexual especializada em terceira idade. Sua eterna descontração e visão franca de assuntos como a sexualidade contrastam sobremaneira com a rígida e tacanha visão de mundo de Jack.

A coisa a princípio parece que irá direcionar-se numa trama sobre como Greg tenta impor a seus pais formas de manter ou disfarçar as aparências perante a outra família, num padrão semelhante ao consagrado por A Gaiola das Loucas: Greg tenta domar seus pais extravagantes para o olhar de Jack, eterno guardião daquilo que se convencionou chamar de “american way of life”. Só que, aos poucos, os Focker vão se impondo e é Jack (ainda mais mais manipulador e anti-ético em sua conduta de preservar a qualquer custo os valores que considera corretos), que ver-se-á, digamos, “acossado” pelos Focker, forçado a rever seus conceitos pessoais, familiares e, por que não dizer, políticos.

É partindo desse ponto que podemos nos aproximar de uma leitura que aproxima o microcosmo proposto pelo filme da contingência social norte-americana: a família Focker como representante de uma porção substancial da sociedade americana, de pensamento liberal, que estaria em desacordo com a política reacionária da administração Bush – um  tanto acuada, mas ainda ciosa por se impor novamente em uma América cada vez mais boçal e careta (como Jack Byrnes). Vale lembrar que tal anseio reflete o momento no qual Meet the Fockers foi concebido e produzido, o período anterior ao pleito que reelegeu Bush - com uma vantagem bem estreita, diga-se de passagem – no qual havia forte esperança quanto a uma derrota republicana.

Enquanto no quadro político real as coisas parecem estar ficando cada vez mais sombrias, ao menos em Meet the Fockers essa vitória de uma mentalidade liberal parece prevalecer e não por via de uma imposição forçada e do embate, como poderia se esperar: a vitória vem através da conciliação e da afirmação da sexualidade. Esse ponto mostra-se patente a partir de como o discurso de Roz vai aos poucos ecoando em Dina (Blythe Danner), a aparentemente submissa esposa de Jack; mas ainda de forma mais intensa na cena onde Greg, Bernie e Jack vão presos e são liberados não pelo pretenso poder de Jack como agente aposentado da CIA, mas por um juiz local que tinha os Focker como pessoas do mais alto conceito, por ser um dos pacientes de Roz.

Com tudo isso, Meet the Fockers faz uma legítima retomada de uma tradição na comédia americana de crítica aos valores republicanos e conservadores, que teve em Frank Capra e Preston Sturges nas décadas de 1930 e 40 seus mais expressivos representantes. Não estaríamos forçando nem um pouco a barra ao encararmos o filme de Roach como uma releitura atualizada do tema central da obra-prima Do Mundo Nada Se Leva (You Can’t Take It With You), que Capra dirigiu em 1938. Este tratava de uma família nada convencional, chefiada por Lionel Barrymore, que se impunha perante um especulador imobiliário, vivido por Edward Arnold, enquanto florescia um romance entre seus filhos (James Stewart e Jean Arthur).

Mas, para além de sua relação com uma importante tradição cômica, e sua atualidade política, Meet the Fockers é também, acima de tudo, extremamente eficiente enquanto comédia. Devemos creditar tal mérito não somente a um roteiro que equilibra escracho e inteligência, mas principalmente ao talento ascendente do cineasta Jay Roach, com uma carreira exclusivamente dedicada ao gênero e que vem se destacando desde a sua estréia (com o primeiro filme da série Austin Powers, e suas demais seqüências). Roach impõe a Meet the Fockers um rítmo um pouco menos insano, porém mais equilibrado, que o da primeira aventura de Greg e Jack. Mas revela aqui um perfeito domínio da encenação e tempo perfeito na construção de piadas verbais, e principalmente visuais. Se não atinge ainda a sofisticação e a genialidade de um Frank Tashlin, Roach aproxima-se bastante dos melhores momentos, por exemplo, de um Blake Edwards. Aproveita ao máximo todos os elementos ao seu dispor, explorando com sarcasmo e crueldade figuras a princípio associadas a uma imagem de “fofura”, como cachorros, gatos e um bebê – este, no caso, o neto de Jack, já na mais tenra idade um protótipo do seu avô, é responsável por algumas das melhores piadas do filme.

Roach extrai de seu elenco uma colaboração calorosa, onde o conjunto parece superar os estrelismos. Do elenco original, vêm Ben Stiller (que continua justificando por quê é o ator numero um da comédia americana contemporânea) e Robert DeNiro, que mesmo na fase careteira e “piloto-automático” na qual parece mergulhado há alguns anos faz de Jack a mais importante de suas personagens recentes. Temos também Blythe Danner, num papel que ecoa sua condição de boa atriz eternamente subestimada, e Teri Polo (Pam, a noiva de Greg), uma belíssima escada para a constelação de astros. Mais que bem vindas são as somas à essa equipe, primeiro com uma surpreendente Barbra Streisand, distante de sua imagem sempre antipática e retomando muito bem uma linhagem de papéis cômicos aos quais se dedicou no início de sua carreira em cinema (Essa Pequena é uma Parada ou Nossa, Que Loucura!, por exemplo). Mas a cereja no bolo é mesmo Dustin Hoffman, grande ator que vinha andando meio distante de boas personagens e que tem aqui uma performance cômica não menos que iluminada.

A magia e a ânsia de liberdade dos Fockers parece ter contagiado o público americano, com o filme tendo arrecado até o momento mais de 260 milhões de dólares em bilheteria. Ao que tudo indica, a platéia dos EUA (ou, pelo menos 49% dela...) se vê impingida a respirar um pouco de uma ode à liberdade de expressão e pensamento, em meio ao clima políticamente inóspito de sua política interna e externa. Para usar uma expressão da personagem de Dustin Hoffman, ao menos no cinema, a América, e quiçá o mundo, vêm sendo “fockerized” – e Jack e seus congêneres podem aqui ser definidos como aquilo que realmente são, através daquela que é a primeira (e única) palavra pronunciada no filme pelo neto de Jack. E a imagem da “vingança” daqueles que não toleram um “bushismo” como doutrina muncial fica para sempre gravada na cena que talvez sintetize toda a idéia do filme – aquela na qual o erotizado cachorro dos Focker, por assim dizer, ataca o antipático gato de estimação da família Byrne.

Gilberto Silva Jr.