Pode já parecer lugar comum
a afirmação de que a comédia é um gênero freqüentemente
subestimado como objeto de uma análise ou reflexão mais
atentas. Ainda assim, em se tratando de comédias calcadas
em equívocos ou piadas consideradas “de mau gosto”,
os filmes tendem sempre a serem vistos, por considerável
parcela da crítica, apenas como entretenimento inconseqüente
(exceções existem, em especial no caso de diretores
já consagrados – um Woody Allen da vida, por exemplo)
– ainda mais quando se trata de sucessos de bilheteria
estrondosos.
Foi assim com Entrando
Numa Fria (Meet the Parents), dirigido por Jay Roach
em 2000 – e que arrecadou mais de 160 milhões de dólares,
apenas no mercado dos EUA. O filme, bastante engraçado
por sinal, tratava de uma série de situações constrangedoras
pelas quais passava Greg Focker (Ben Stiller, personagem
cujo sobrenome nas legendas em português foi traduzido
como Fornika, para que não se perdesse o trocadilho
original), um desajeitado enfermeiro, para ser aceito
pela conservadora família de sua noiva, cujo pai era
um autoritário agente aposentado da CIA, Jack Byrnes
(Robert DeNiro). Filme concebido no final do 2º
mandato de Bill Clinton, democrata que governou os EUA
quase sempre pressionado for forças conservadoras, o
filme parecia antever o – questionável – resultado das
eleições realizadas na época em que o filme era lançado,
com a vitória do republicano George W. Bush. Ao final
de Entrando Numa
Fria, Greg consegue enquadrar-se e ser aceito naquilo
que Jack denominava seu “círculo de confiança”, submetendo-se
a um estilo de vida marcadamente WASP de ser, em prol
do seu amor. Da mesma forma, o cidadão americano, ainda
mais notadamente no período que se seguiria ao 11/09/2001,
veria seu país dominado pelo avanço de uma onda patriótico-moralista
e pelo controle da direita republicana.
Passaram-se quatro anos e, junto a uma nova eleição
presidencial (na qual se repetiu a vitória de Bush e
seu partido), veio a inevitável continuação: Entrando Numa Fria Maior Ainda. E este,
notadamente ainda mais que seu antecessor, trata de
dizer alguma coisa sobre o estado das coisas na sociedade
americana hoje. O título original, Meet the Fockers retrata melhor a realidade
do filme, pois, dessa vez, a situação se inverte e é
Jack quem tem que visitar e conhecer a família de seu
genro, ainda uma figura esquisita para seus padrões.
Vemos aqui um aprofundamento no perfil de Greg Focker,
que, no filme original, era apresentado principalmente
como uma figura eternamente atrapalhada, nos moldes
da persona cinematográfica consagrada por Jerry Lewis.
Estamos agora em contato com as orígens de Greg Focker,
fruto de uma família judia de formação intelectual liberal,
ligada aos movimentos de contracultura dos anos 60/70,
exemplos daquilo que os americanos considerariam como
“esquerda”: o pai, Bernie (Dustin Hoffman), um advogado
afastado da profissão; a mãe, Roz (Barbra Streisend),
uma terapeuta sexual especializada em terceira idade.
Sua eterna descontração e visão franca de assuntos como
a sexualidade contrastam sobremaneira com a rígida e
tacanha visão de mundo de Jack.
A coisa a princípio parece que irá direcionar-se numa
trama sobre como Greg tenta impor a seus pais formas
de manter ou disfarçar as aparências perante a outra
família, num padrão semelhante ao consagrado por A Gaiola das Loucas: Greg tenta domar seus pais extravagantes para
o olhar de Jack, eterno guardião daquilo que se convencionou
chamar de “american way of life”. Só que, aos poucos,
os Focker vão se impondo e é Jack (ainda mais mais manipulador
e anti-ético em sua conduta de preservar a qualquer
custo os valores que considera corretos), que ver-se-á,
digamos, “acossado” pelos Focker, forçado a rever seus
conceitos pessoais, familiares e, por que não dizer,
políticos.
É partindo desse ponto que podemos nos aproximar de
uma leitura que aproxima o microcosmo proposto pelo
filme da contingência social norte-americana: a família
Focker como representante de uma porção substancial
da sociedade americana, de pensamento liberal, que estaria
em desacordo com a política reacionária da administração
Bush – um tanto acuada, mas ainda ciosa por se impor
novamente em uma América cada vez mais boçal e careta
(como Jack Byrnes). Vale lembrar que tal anseio reflete
o momento no qual Meet
the Fockers foi concebido e produzido, o período
anterior ao pleito que reelegeu Bush - com uma vantagem
bem estreita, diga-se de passagem – no qual havia forte
esperança quanto a uma derrota republicana.
Enquanto no quadro político real as coisas parecem estar
ficando cada vez mais sombrias, ao menos em Meet
the Fockers essa vitória de uma mentalidade liberal
parece prevalecer e não por via de uma imposição forçada
e do embate, como poderia se esperar: a vitória vem
através da conciliação e da afirmação da sexualidade.
Esse ponto mostra-se patente a partir de como o discurso
de Roz vai aos poucos ecoando em Dina (Blythe Danner),
a aparentemente submissa esposa de Jack; mas ainda de
forma mais intensa na cena onde Greg, Bernie e Jack
vão presos e são liberados não pelo pretenso poder de
Jack como agente aposentado da CIA, mas por um juiz
local que tinha os Focker como pessoas do mais alto
conceito, por ser um dos pacientes de Roz.
Com tudo isso, Meet
the Fockers faz uma legítima retomada de uma tradição
na comédia americana de crítica aos valores republicanos
e conservadores, que teve em Frank Capra e Preston Sturges
nas décadas de 1930 e 40 seus mais expressivos representantes.
Não estaríamos forçando nem um pouco a barra ao encararmos
o filme de Roach como uma releitura atualizada do tema
central da obra-prima Do
Mundo Nada Se Leva (You
Can’t Take It With You), que Capra dirigiu em 1938.
Este tratava de uma família nada convencional, chefiada
por Lionel Barrymore, que se impunha perante um especulador
imobiliário, vivido por Edward Arnold, enquanto florescia
um romance entre seus filhos (James Stewart e Jean Arthur).
Mas, para além de sua relação com uma importante tradição
cômica, e sua atualidade política, Meet the Fockers é também, acima de tudo, extremamente eficiente enquanto
comédia. Devemos creditar tal mérito não somente a um
roteiro que equilibra escracho e inteligência, mas principalmente
ao talento ascendente do cineasta Jay Roach, com uma
carreira exclusivamente dedicada ao gênero e que vem
se destacando desde a sua estréia (com o primeiro filme
da série Austin Powers, e suas demais seqüências). Roach impõe a Meet
the Fockers um rítmo um pouco menos insano, porém
mais equilibrado, que o da primeira aventura de Greg
e Jack. Mas revela aqui um perfeito domínio da encenação
e tempo perfeito na construção de piadas verbais, e
principalmente visuais. Se não atinge ainda a sofisticação
e a genialidade de um Frank Tashlin, Roach aproxima-se
bastante dos melhores momentos, por exemplo, de um Blake
Edwards. Aproveita ao máximo todos os elementos ao seu
dispor, explorando com sarcasmo e crueldade figuras
a princípio associadas a uma imagem de “fofura”, como
cachorros, gatos e um bebê – este, no caso, o neto de
Jack, já na mais tenra idade um protótipo do seu avô,
é responsável por algumas das melhores piadas do filme.
Roach extrai de seu elenco uma colaboração calorosa,
onde o conjunto parece superar os estrelismos. Do elenco
original, vêm Ben Stiller (que continua justificando
por quê é o ator numero um da comédia americana contemporânea)
e Robert DeNiro, que mesmo na fase careteira e “piloto-automático”
na qual parece mergulhado há alguns anos faz de Jack
a mais importante de suas personagens recentes. Temos
também Blythe Danner, num papel que ecoa sua condição
de boa atriz eternamente subestimada, e Teri Polo (Pam,
a noiva de Greg), uma belíssima escada para a constelação
de astros. Mais que bem vindas são as somas à essa equipe,
primeiro com uma surpreendente Barbra Streisand, distante
de sua imagem sempre antipática e retomando muito bem
uma linhagem de papéis cômicos aos quais se dedicou
no início de sua carreira em cinema (Essa Pequena é uma Parada ou Nossa,
Que Loucura!, por exemplo). Mas a cereja no bolo
é mesmo Dustin Hoffman, grande ator que vinha andando
meio distante de boas personagens e que tem aqui uma
performance cômica não menos que iluminada.
A magia e a ânsia de liberdade dos Fockers parece ter
contagiado o público americano, com o filme tendo arrecado
até o momento mais de 260 milhões de dólares em bilheteria.
Ao que tudo indica, a platéia dos EUA (ou, pelo menos
49% dela...) se vê impingida a respirar um pouco de
uma ode à liberdade de expressão e pensamento, em meio
ao clima políticamente inóspito de sua política interna
e externa. Para usar uma expressão da personagem de
Dustin Hoffman, ao menos no cinema, a América, e quiçá
o mundo, vêm sendo “fockerized” – e Jack e seus congêneres podem aqui ser definidos como
aquilo que realmente são, através daquela que é a primeira
(e única) palavra pronunciada no filme pelo neto de
Jack. E a imagem da “vingança” daqueles que não toleram
um “bushismo” como doutrina muncial fica para sempre
gravada na cena que talvez sintetize toda a idéia do
filme – aquela na qual o erotizado cachorro dos Focker,
por assim dizer, ataca o antipático gato de estimação
da família Byrne.
Gilberto Silva Jr.
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