Um
narrador explica as relações de exploração
entre comerciantes de peixe e pescadores em um vilarejo
siciliano logo na introdução e retorna
de tempos em tempos para interpretar o significado social
de algumas situações e informar sobre
características e emoções de um
ou outro personagem. A informação inicial
sobre a utilização de atores amadores
e de diálogos em dialeto da Sicília acentua
a aproximação entre atores e personagens,
uns fundindo-se nos outros pela vivência real
das experiências encenadas e pela transformação
delas em um "documentário com pouca invenção
ficcional", cujos diálogos eram criados
verbalmente e não na escrita, criados em cima
do momento da filmagem com o vocabulário dos
atores, buscando assim impor-se como a verdade daquela
realidade.
A militância por esse hiper-realismo antropológico
acaba por explicitar a função organizadora
e de militante político de esquerda do autor
Visconti. O narrador precisa convencer o espectador
de que tudo aquilo é como é mesmo, de
uma fidelidade do filme aos fatos e à realidade,
para depois fazer denúncias e interpretações
em nome do povo injustiçado. Como intelectual
que pensa o povo, que entende os mecanismos de sua desgraça,
que legitima sua visão com a participação
e parceria desse mesmo povo em uma representação
dele, Visconti faz o papel do artista de esquerda (em
momento de imediato pós-guerra e em meio a conflitante
democratização): fala sobre o povo e em
nome do povo. Faz pedagogia político-ideológica-sentimental
para instruir, mobilizar e comover. Planejado para parte
da estratégia eleitoral do Partido Comunista
Italiano, do qual Visconti fazia parte, A Terra Treme
é, sobretudo, um filme da estratégia viscontiana
daí seu pessimismo sem espaço para utopias.
Os comunistas esperavam um documentário sobre
a exploração de pescadores sicilianos
e, com uma equipe mínima e recursos reduzidos
(o que custou interrupções da filmagem),
Visconti criou uma tragédia distópica.
Ele faz isso tecendo um drama familiar, centrado na
experiência do indivíduo produzida pela
soma de sua circunstância social e de sua reação
a essa circunstância, sem perder a dimensão
trágica, como em Obsessão, que
condena esse indivíduo à imobilidade
e à continuidade. Sua matéria prima é
o romance de Giovanni Verga (Il Malavoglia),
de quem já tentara adaptar L΄Amante de Gramigna
antes de rodar Obsessão. Novamente, também
como em Obsessão, há uma lógica
(do destino, da História, dos deuses) e, nessa
lógica, o fracasso é a certeza. Novamente,
a mudança é abortada (a do personagem,
a da sociedade). A estratégia realista-documental,
para levar o espectador a crer nas imagens como verdade
do mundo, encontra um impasse ao final: se aquela é
a verdade da situação mostrada, então
essa verdade legitima a criticada resignação
popular (tratada como fruto da ignorância e da
desmobilização política). Ao mostrar
o retrocesso do herói, Visconti esvazia a retórica
transformadora. Não há idealismo em seu
horizonte apenas a constatação do imobilismo.
Seu herói rompe com o modelo único do
sistema econômico local para arriscar um modelo
alternativo de relações comerciais. Retorna
à condição anterior por conta do
próprio sistema e com uma ajuda do acaso-destino-deuses
(o acidente com seu barco)
Como já fora em Obsessão e será
nos próximos filmes, a construção
do mundo onde se dão as ações é
priorizada. A câmera está sempre em busca
de um ângulo capaz de sintetizar ou revelar algo
daquele microcosmo e algo do macrocosmo ali presente.
Detém-se no comércio dos peixes com a
procura paciente por respirar a lógica do lugar
operação também feita no concurso
de canto de Obsessão e mais tarde nos
bailes de O Leopardo e de O Inocente.
A câmera instala-se nos lugares para tentar trazer
algum entendimento sobre eles a partir de gestos habituais
o ritual do cotidiano, da repetição,
formador de uma cultura, de uma condição
de vida. Busca a estrutura ali presente na experiência,
e assim distancia-se dos corpos, de seus detalhes, para
melhor captá-los no ambiente motivador dos
dramas, não apenas cenário.
Visconti, tanto quanto um aliado na luta dos injustiçados
e um intérprete do mundo ao qual não pertence
diretamente, é um esteta. Persegue a grande imagem,
a grande composição, o belo plano, o sagrado
da natureza e do homem, a epifania do comum, sempre
atrás do impacto visual e os obtém em
momentos como os das mulheres vestidas de preto olhando
o mar, ao vento, à espera dos homens que foram
pescar mesmo com tempestade. A denúncia social
e a conscientização política em
nada inibem a aventura artística empenhada em
criar formas bem dispostas no espaço e nas
quais se manifesta sua admiração de juventude
por Leni Riefenstahl e sua noção de espetáculo
nas montagens teatrais. Assim prosseguirá, com
momentos melhores e outros nem tanto, seu percurso estilístico:
sustentado por um olhar integrador dos personagens nos
ambientes, por um ceticismo às vezes mais às
vezes menos tranqüilo e por uma fusão dos
indivíduos com seus meios.
Cléber Eduardo
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Versátil)
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