Tudo
azul
Nesse filme que há dez anos atrás era
apresentado no Un Certain Regard, em Cannes, Ulu Grosbard
deu a Jennifer Jason Leigh o papel de sua vida: Sadie
Flood, que é a protagonista – apesar do nome
do filme ser o da sua irmã famosa, Georgia (Mare
Winningham). A opção do título
antecipa a idéia do filme de abordar uma personagem
que sempre age como se fosse o eco estrondoso, porém
distante, de algum grande acontecimento. Georgia não
é propriamente a sombra que a atrapalha, mas
antes o seu oposto: casa, marido, dois filhos e um outro
a caminho, carreira estável, reconhecimento.
Nômade, viciada em drogas, não reconhecida
senão por acaso (como pelo entregador de um supermercado
que acaba casando com ela, mas a deixa após um
tempo), Sadie possui na irmã uma crítica
permanente, uma reprovadora do seu estilo de vida.
O filme pode ser visto como uma sucessão de esquetes
sobre o fracasso, com o detalhe de que – e aí
está a sua beleza – a personagem de Jennifer
Jason Leigh, otimista incorrigível, não
foi avisada disso, e vive cada um desses momentos como
se fosse o acontecimento. Há uma inocência
nisso tudo (mas não ingenuidade), pois mesmo
após atravessar os maiores lamaçais, Sadie
sempre sai delicada e lívida na outra margem.
Seu aspecto angelical contrasta com o mundo caótico
em que se apresenta, mas não podemos separar
um do outro. Como uma diva junkie, ela faz uma
longa turnê por bares, pequenos clubes noturnos
e até uma casa de boliche, todos sempre vazios.
No palco, seu corpo lânguido, escorregadio, um
tanto quebradiço até, despende uma energia
que não se sabe de onde emana. Sadie canta com
o corpo, esgarçando suas cordas vocais, dando
forma sonora a contorções internas. Já
no início, quando ela interpreta seu carro-chefe,
"Almost blue", num plano-seqüência
em que a câmera se aproxima lentamente de seu
rosto, suprimindo o entorno decadente daquele bar em
fim de noite e pedindo que ouçamos Sadie com
toda atenção, fica clara a oposição
entre essa arte dionisíaca e a seriedade apolínea
do estilo de Georgia, que abrira o filme cantando para
uma multidão. De um lado uma cantora do corpo,
dos eflúvios, da sarjeta; do outro uma porta-voz
da arte como uma forma de ascese, demiurga, uma cantora
dos palcos espaçosos e assépticos. Grosbard
põe as duas em confronto através de uma
mise-en-scène contida, cuja principal
assinatura é a "invisibilidade" (conforme
Bill Krohn assinalou numa crítica publicada nos
Cahiers du Cinéma na ocasião
da cobertura de Cannes em 1995). Filme sem close-up,
sem decupagem psicológica, sem motivação
maior que a simples vontade de ceder espaço às
personagens – o que certamente tem a ver com a carreira
teatral de Ulu Grosbard, mais prolífica que sua
carreira cinematográfica.
Sadie Flood: o sobrenome artístico é possivelmente
o que melhor exprime a natureza de sua força
diluvial. "Ela devora as pessoas", diz Georgia,
que posteriormente afirmará que a irmã
não sabe cantar e deveria desistir. A cena-chave
do filme é a do show em Seattle, com casa cheia,
quando Georgia convida Sadie para um número solo.
A escolha de Sadie é uma música de Van
Morrison que dura oito minutos, e Grosbard filma a cena
na íntegra, concentrando-se praticamente só
nela e na irmã que a observa do backstage
(e que voltará ao palco, no final da cena, para
fazer um backing vocal e "ajudar" a
irmã a terminar a canção). Bêbada,
etérea, emotiva, transformada em um ícone
abstrato pela luz azul que vem do fundo, Sadie repete
os versos mais melancólicos de Van Morrison à
exaustão. Sua interpretação é
como uma hemorragia incontrolável, e a reação
da platéia ao final da música não
poderia ser outra: um silêncio sepulcral (salvo
um ou outro aplauso vacilante), uma ausência de
resposta (por medo, por fascinação, por
asco?) diante daquela performance que, muito antes de
ter sido "artística", expôs uma
vida em toda sua potência e, simultaneamente,
em toda sua debilidade.
Nos momentos finais de Georgia, temos a impressão
de ter assistido a um filme sobre a fragilidade de uma
vida absurdamente sinuosa. A soma dessas parcelas de
fragilidade, contudo, fornece um resultado cuja força
tem poder avassalador. A última cena do filme
estabelece uma montagem paralela em que Sadie e Georgia
aparecem cantando a mesma música, de autoria
da segunda, em shows separados. Cada uma a seu modo,
as duas cantam. E o plano que encerra o filme
é o de Sadie agradecendo ao público (leia-se
a meia-dúzia de gatos pingados que ocupa o bar
em que ela se apresenta) com um gesto tão autoconfiante
quanto consciente de seu fracasso cíclico. Embora
Singles (1992), de Cameron Crowe, tenha tentado
mais cedo e mais explicitamente traçar um painel
da geração Seattle da primeira metade
dos anos 90, Georgia, com toda sua melancolia
de clínica de desintoxicação, talvez
seja a melhor expressão (pós-suicídio
de Kurt Cobain, é preciso notar) daquela fascinante
cena – reforçando a idéia de que o filme
absorve as vibrações de um eco de alcance
mais amplo do que aparentemente entrega. "Seattle
is home", diz Sadie quando sobe ao palco para cantar
a música de Van Morrison. Quase triste, quase
choro, quase vômito, quase enchente... completamente
blue.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(VHS Video Arte)
|