GEORGIA
Ulu Grosbard, Georgia, EUA, 1995

Tudo azul

Nesse filme que há dez anos atrás era apresentado no Un Certain Regard, em Cannes, Ulu Grosbard deu a Jennifer Jason Leigh o papel de sua vida: Sadie Flood, que é a protagonista – apesar do nome do filme ser o da sua irmã famosa, Georgia (Mare Winningham). A opção do título antecipa a idéia do filme de abordar uma personagem que sempre age como se fosse o eco estrondoso, porém distante, de algum grande acontecimento. Georgia não é propriamente a sombra que a atrapalha, mas antes o seu oposto: casa, marido, dois filhos e um outro a caminho, carreira estável, reconhecimento. Nômade, viciada em drogas, não reconhecida senão por acaso (como pelo entregador de um supermercado que acaba casando com ela, mas a deixa após um tempo), Sadie possui na irmã uma crítica permanente, uma reprovadora do seu estilo de vida.

O filme pode ser visto como uma sucessão de esquetes sobre o fracasso, com o detalhe de que – e aí está a sua beleza – a personagem de Jennifer Jason Leigh, otimista incorrigível, não foi avisada disso, e vive cada um desses momentos como se fosse o acontecimento. Há uma inocência nisso tudo (mas não ingenuidade), pois mesmo após atravessar os maiores lamaçais, Sadie sempre sai delicada e lívida na outra margem. Seu aspecto angelical contrasta com o mundo caótico em que se apresenta, mas não podemos separar um do outro. Como uma diva junkie, ela faz uma longa turnê por bares, pequenos clubes noturnos e até uma casa de boliche, todos sempre vazios. No palco, seu corpo lânguido, escorregadio, um tanto quebradiço até, despende uma energia que não se sabe de onde emana. Sadie canta com o corpo, esgarçando suas cordas vocais, dando forma sonora a contorções internas. Já no início, quando ela interpreta seu carro-chefe, "Almost blue", num plano-seqüência em que a câmera se aproxima lentamente de seu rosto, suprimindo o entorno decadente daquele bar em fim de noite e pedindo que ouçamos Sadie com toda atenção, fica clara a oposição entre essa arte dionisíaca e a seriedade apolínea do estilo de Georgia, que abrira o filme cantando para uma multidão. De um lado uma cantora do corpo, dos eflúvios, da sarjeta; do outro uma porta-voz da arte como uma forma de ascese, demiurga, uma cantora dos palcos espaçosos e assépticos. Grosbard põe as duas em confronto através de uma mise-en-scène contida, cuja principal assinatura é a "invisibilidade" (conforme Bill Krohn assinalou numa crítica publicada nos Cahiers du Cinéma na ocasião da cobertura de Cannes em 1995). Filme sem close-up, sem decupagem psicológica, sem motivação maior que a simples vontade de ceder espaço às personagens – o que certamente tem a ver com a carreira teatral de Ulu Grosbard, mais prolífica que sua carreira cinematográfica.

Sadie Flood: o sobrenome artístico é possivelmente o que melhor exprime a natureza de sua força diluvial. "Ela devora as pessoas", diz Georgia, que posteriormente afirmará que a irmã não sabe cantar e deveria desistir. A cena-chave do filme é a do show em Seattle, com casa cheia, quando Georgia convida Sadie para um número solo. A escolha de Sadie é uma música de Van Morrison que dura oito minutos, e Grosbard filma a cena na íntegra, concentrando-se praticamente só nela e na irmã que a observa do backstage (e que voltará ao palco, no final da cena, para fazer um backing vocal e "ajudar" a irmã a terminar a canção). Bêbada, etérea, emotiva, transformada em um ícone abstrato pela luz azul que vem do fundo, Sadie repete os versos mais melancólicos de Van Morrison à exaustão. Sua interpretação é como uma hemorragia incontrolável, e a reação da platéia ao final da música não poderia ser outra: um silêncio sepulcral (salvo um ou outro aplauso vacilante), uma ausência de resposta (por medo, por fascinação, por asco?) diante daquela performance que, muito antes de ter sido "artística", expôs uma vida em toda sua potência e, simultaneamente, em toda sua debilidade.

Nos momentos finais de Georgia, temos a impressão de ter assistido a um filme sobre a fragilidade de uma vida absurdamente sinuosa. A soma dessas parcelas de fragilidade, contudo, fornece um resultado cuja força tem poder avassalador. A última cena do filme estabelece uma montagem paralela em que Sadie e Georgia aparecem cantando a mesma música, de autoria da segunda, em shows separados. Cada uma a seu modo, as duas cantam. E o plano que encerra o filme é o de Sadie agradecendo ao público (leia-se a meia-dúzia de gatos pingados que ocupa o bar em que ela se apresenta) com um gesto tão autoconfiante quanto consciente de seu fracasso cíclico. Embora Singles (1992), de Cameron Crowe, tenha tentado mais cedo e mais explicitamente traçar um painel da geração Seattle da primeira metade dos anos 90, Georgia, com toda sua melancolia de clínica de desintoxicação, talvez seja a melhor expressão (pós-suicídio de Kurt Cobain, é preciso notar) daquela fascinante cena – reforçando a idéia de que o filme absorve as vibrações de um eco de alcance mais amplo do que aparentemente entrega. "Seattle is home", diz Sadie quando sobe ao palco para cantar a música de Van Morrison. Quase triste, quase choro, quase vômito, quase enchente... completamente blue.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

(VHS Video Arte)