Uma
das principais restrições ao filme dentre
as feitas pelos não-apreciadores de Garotas
do ABC seria que este não atingiria a mesma
"intensidade" de Anjos do Arrabalde
(1987), incursão anterior do diretor Carlos Reichenbach
em um universo semelhante, o das mulheres proletárias,
habitantes da periferia de São Paulo. Só
que, ao fazer tal afirmação, esses detratores
parecem ignorar a diversidade nas propostas de ambos
os filmes. Se o filme de 87 é um retrato crú
e desglamurizado, realizado com fortes cores néo-realistas,
Garotas do ABC – concebido como o piloto de uma
série e fruto de um projeto que foi ao longo
do tempo mudando de cara diveras vezes e cuja idéia
surgiu não coincidentemente logo após
a conclusão de Anjos do Arrabalde – parte
muito mais de uma visão pessoal do próprio
Carlão. Como ele mesmo afirma: "Nunca pretendi
realizar com esses filmes um tratado sociológico
sobre o assunto, mas trabalhar o meu imaginário
a respeito do universo feminino (...)".Foge, portanto,
de uma abordagem quase documental que poderia impor
ao seu realizador uma necessidade de reprodução
do real. Isso se estende também ao trabalho dos
atores, que por essas razões foge aos limites
de um "naturalismo televisivo", considerado
como equivocado parâmetro para avaliação
de atuaçoes por um certo senso comum.
Visto sob esse prisma, e considerando-se o fato de que,
o filme não pretende esgotar os universos de
suas personagens, que, ao menos em tese, deveriam retornar
em episódios subseqüentes, Garotas do
ABC consegue concretizar de forma mais que satisfatória
– por que não dizer, por vezes brilhante – as
intenções de seu autor. Se a idéia
original era retratar um grupo de operárias de
uma indústria têxtil, fêz-se opção
dramatúrgica priorizar uma delas (no caso a jovem,
bela e negra Aurélia) e esta serve de forma eficiente,
pela força e simpatia da personagem, de ponte
para introduzir o espectador no mundo onde tais moças
vivem, trabalham e se divertem. Carlão parte
do pressuposto que a vida pobre das personagens não
seria um poço de sofrimentos ou o reservatório
de males infinitos. Como para qualquer um, temos um
misto de alegrias e tristezas e isso fica claro logo
nos primeiros minutos com a apresentação
da família de Aurélia (Michelle Valle).
Se há uma força rígida e repressora,
representada pelo pai (Antônio Pitanga), fica
caracterizada também a união e o amor
inerentes desse núcleo. A própria Aurélia,
uma moça de temperamento forte, ousado, dotada
de sexualidade franca e poucas papas na língua,
tem também seu lado "menina" muito
intenso, haja visto seu deslumbramento adolescente por
homens musculosos – incorporados na figura de Arnold
Schwarzennegger – que a leva a apaixonar-se pelo torturado
fascistóide Fábio (Fernando Pavão),
com quem ela pouco ou nada tem em comum.
O retrato afetuoso e multifacetado prossegue na fábrica.
Mesmo não sendo de todo aprofundadas ao longo
do roteiro, não somente as operárias,
mais a maioria das personagens tem seu lado de intensa
humanidade, e como esta são sempre complexas
e contraditórias. Tais figuras, muitas dessas
pouco mais que esboçadas durante o filme, são
dotadas de um potencial dramático que trazem
o desejo de que realmente Reichenbach tenha oportunidade
de levar a frente seu projeto e retornar a elas. E também
a personagens masculinos, como o jornalista Nelson Torres
(Ênio Gonçalves, na atuação
mais marcante do filme) e o policial Sampaio (Adriano
Stuart), que fogem a uma composição maniqueísta
e deixam transparecer uma certa promiscuidade entre
o triângulo imprensa-polícia-crime.
Esta humanização prossegue na forma íntima
como as operárias tratam suas máquinas,
nomeadas através de números, e se reflete
em imagens na forma como diretor percorre com suas câmeras
o espaço da fábrica, mostrando os teares
numa dança cadenciada, indício inequívoco
de sua paixão pelo mundo que retrata. Tendo isso
em vista, há que se destacar a forma como Reichenbach
e sua câmera dominam e se integram aos espaços
que percorrem. Não somente a fábrica,
mas os demais cenários como o salão de
sinuca, os bares, as ruas e principalmente o Clube Democrático
são explorados com uma intensidade e criatividade
únicas. E mesmo que sejam feitas ressalvas quanto
a uma utilização excessiva de travellings
em 360º, não podemos esquecer
que Garotas do ABC é um filme de encenação
extremamente elaborada, com planos e movimentos de câmera
matematicamente concebidos por um cineasta que domina
mais que nenhum outro em atividade atualmente no Brasil
a linguagem e os recursos cinematográficos. E
que não nega que sua mise-en-scène
carrega a influência, mesmo que inconsciente,
do mestre Fritz Lang.
Uma atenção especial deve ser direcionada
à personagem Salesiano de Carvalho (Selton Mello)
e a seu grupo neo-fascista. Apesar de nunca minimizar
o risco representado por tais figuras, o filme não
deixa de destacar o absurdo e o ridículo por
tráz deles. Dotado de condição
financeira privilegiada e formação universitária,
Salesiano vai encontrar eco a suas idéias elitistas
e discriminatórias somente entre seus companheiros
derrotados do salão de sinuca: um nerd recalcado,
dois operários desempregados e de cabeça
fraca e um neurótico depressivo. E mesmo esses
o vêem como um descontrolado, um loose cannon,
como dizem os americanos. Carlão por vezes os
retrata de forma quase cômica –os operários
aparecem se estapeando como os Três Patetas –
mas essa utilização de humor é
uma forma de escarnecer tais personegens através
do deboche, dentro de um espírito "anarco-libertário"
que o diretor proclama para seu filme. Esses não
deixam de ser apresentados como um bando de incompetentes,
haja visto a forma como são praticamente enxotados
em sua invasão ao Clube Democrático. Mas
mesmo debochando, o cineasta não deixa de estar
atento à ação nociva de tais grupos
e a sua proliferação com um discurso que
se apropria da intensificação das diferenças
sociais para difundir o ódio.
Voltando à proposta original de Carlão,
no universo das Garotas do ABC nem tudo é
trabalho e violência. O filme é conscientemente
dividido em dois tempos: o trabalho e o tempo livre,
este último, para o diretor seria "o único
e verdadeiro espaço de liberdade do ser humano".
E se o retrato das horas de trabalhos guarda tintas
de realidade, é ao mostrar o momento de lazer
que Carlão libera seu imaginário e seu
universo pessoal. Desse modo, no Clube Democrático
– tal nome é quase um inventário das intenções
do diretor ao conceber esse universo – as operárias
do início do século XXI dançam
ao som de soul e boleros e não ao som
de funk ou axé music como seria
de se esperar, caso a intenção fosse a
de uma radical verossimilhança. E no baile de
sábado há espaço para todos, à
exceção dos fascistas (anti-democráticos
por excelência), interagirem e se integrarem.
Até mesmo o tarado que, no início do filme,
aparece importunando as moças no ponto de ônibus.
Mas nesse mundo idealizado, tudo acaba parecendo mais
coerente e real que se houvesse um retrato verista.
Com isso, Reichenbach caminha para concluír seu
filme de forma a frustrar as expectativas quanto a um
clímax de intensa dramaticidade.
Ao domingo, o grupo fascista aparece desintegrado, mesmo
com a insistência cada vez mais insandecida de
Salesiano em manter seu discurso. Mas para Aurélia
e suas companheiras, a vida segue seu curso, com a seqüência
final da visita a Suzano, que traz à mente a
lembrança do curta Sonhos de Vida, realizado
por Reichenbach em 1979. Como suas personagens, Carlão
vai em frente, lutando contra a estreiteza do circuito
distribuidor-exibidor, que fez com que este ótimo
Garotas do ABC fosse jogado no mercado sem qualquer
estratégia de lançamento e retirado de
cartaz antes de ter tido tempo hábil para encontrar
seu público. Se Aurélia após a
decepção com Fábio descobre um
novo horizonte com o irmão de Kinuyo, Carlão
também não desiste e anuncia seu próximo
projeto para após o lançamento de Bens
Confiscados: Lucineide Falsa Loura, mais
um episódio da saga das Garotas do ABC.
Gilberto Silva Jr.
|