Antes
de estrear no longa com o retrato em preto e branco
de uma certa juventude em Copacabana me Engana
(1969), Antonio Carlos Fontoura dirigiu seus primeiros
curtas pincelando na tela as cores fortes de uma palheta
pop, tropicalista, gráfica (artes plásticas
+ quadrinhos).
Heitor dos Prazeres deixa-se perpassar pela música,
os quadros e a prosódia do veterano compositor,
com uma atitude programática que o título
do curta seguinte sintetiza bem: Ver Ouvir. Nesse,
uma novíssima geração de artistas
plásticos se expõe entre palavras e imagens.
Nos dois filmes, o entrelaçamento entre o verbo
e o traço, entre a composição sonora
e a pictórica. Mesmo constituindo documentos
preciosos sobre os artistas, são documentários
que têm como principal registro e propósito
o pacto da mise-en-scène com seu objeto.
E nesse sentido oferecem um revigorante antídoto
às levas recentes de filmes documentais escorados
no biografismo mais preguiçoso.
Informações precisas não fazem
parte do universo verbal de Heitor dos Prazeres.
A fala do músico (a única do filme) não
deixa saber em que ano nasceu ou as músicas que
compôs. Em contrapartida, oferece suas impressões
do mundo concreto (as pessoas na rua, o Rio de Janeiro
da praça Onze) e do mundo da criação
(sua pintura). Tudo numa prosódia absolutamente
particular, também ela uma representação,
como os quadros e as músicas. Quando divaga a
partir do seu nome, explica o prazer que ele divide
com o povo, alegre e sofredor: "Eu para o povo
represento um pedaço. Eu sou o ovo e o povo é
a chocadeira".
As primeiras imagens nas ruas do centro e depois os
planos de Heitor dos Prazeres dentro de um carro, com
a cidade passando ao redor, causam logo espanto pela
deslumbrante fotografia de Affonso Beato, de cores densas
e contrastadas. Câmera e músico chegam
no sobrado antigo. No último andar, fica seu
ateliê, com vista para o morro. Com ele na varanda,
a câmera abre em zoom até mostrar a fachada
do prédio, majestática escultura de um
tempo que já passou e também de um tempo
que permanece. Passado e testemunho, como a presença
de Heitor dos Prazeres no filme.
Engraçado como a música vira coadjuvante.
A pintura, atividade menos conhecida do artista, ganha
maior relevo. É ela que proporciona a chave para
o mundo de Heitor dos Prazeres, permitindo ao filme
uma compreensão por meio de texturas, cores e
composições. Na seqüência final,
quando lá está o músico cantando
com seu violão e cercado por um coral de pastoras,
a apresentação é linda e histórica,
porém ainda mais encantadoras são as correspondências
que a montagem estabelece com os quadros. Antes, o artista
poderia ter feito comentários sobre a praça
Onze e até uma referência à tia
Ciata, mas nenhuma informação tão
esclarecedora e vibrante quanto aquelas transmitidas
pelas correspondências entre os elementos em cena
no número musical e as imagens dos quadros, reforçando
o parentesco evidente de fisionomias, figurinos, gestos,
ambientes. A história do samba e da boemia carioca
se desdobra, gloriosa – no jeito com que Heitor dos
Prazeres segura seu violão, nos movimentos graciosos
das pastoras, nos desenhos de músicos, de casais
suspensos num passo de dança, de amigos bêbados
voltando da orgia, do pierrô e colombina na tristeza
carnavalesca, as moças nos quadros parecidas
com as coristas, as silhuetas semelhantes desenhadas
pela câmera e pelo pincel. Pela via pictórica,
a música passa de coadjuvante a protagonista.
O filme não persegue a espontaneidade de falas
ou de registros. Prevalece certa formalidade no trato
com o artista e certo formalismo na linguagem. Longe
de ser defeito, é uma tomada de posição,
a valorizar o conceito que rege a organização
de sons e imagens. Ver Ouvir adota percurso semelhante,
reforçando ainda mais o aspecto conceitual por
tratar de artistas – e seus discursos – modernos, empenhados
tanto no processo de criação quanto de
reflexão. O filme se divide em três blocos:
"Roberto Magalhães: um jogo de espelhos",
"Antonio Dias: preparação para o
contra-ataque", "Rubens Gerchman: os desconhecidos".
Mais o que seria um epílogo, "Ferreira Gullar:
a pintura fala", com o poeta lendo (em off)
trecho de um artigo seu. Como em Heitor dos Prazeres,
o artista é quem fala, enquanto o filme mostra
suas obras e propõe o diálogo entre as
linguagens em cena: música, artes plásticas,
cinema e quem mais chegar.
É um mundo de cores fortes (fotografia de David
Drew Zingg, câmera de João Carlos Horta)
e um tratamento de objetos e cenários que oscila
entre o rigor conceitual e um deslavado fetichismo.
Roberto Magalhães passeia no parque de diversões,
enquanto em off narra cronologicamente suas aventuras
artísticas de infância, como as gravuras
feitas em borracha de apagar lápis. Quando fala
dos projetores construídos em caixa de sapatos
e dos filmes pintados em rolos de papel, encarna um
Pierrot le fou da Guanabara e pinta o rosto com tintas
coloridas. As traquitanas do parque (carrinhos, carrossel,
sala de espelhos) e da infância repercutem nos
desenhos mostrados, pela semelhança de formas
e traços (carros, caricaturas deformadas) e também
pelo que existe nos trabalhos de objetos do cotidiano
deslocados, com uma ingenuidade infantil rigorosamente
elaborada. Na trilha sonora, uma cristalina música
erudita, que contrasta com as experimentações
musicais do bloco seguinte, com Antonio Dias.
Nessa segunda parte, as dissonâncias se estendem
à figura do artista, quase sempre escondido sob
uma máscara de poluição. O anti-herói
mascarado aparece em casa, nas ruas e até freqüentando
uma vernissage. Completando o disfarce, uma camisa com
um grande coração vermelho no peito –
a mesma figura reelaborada em diversas versões
nas suas obras. No terceiro segmento, com Rubens Gerchman,
a estratégia de jogar os conceitos e os artistas
no mundo torna-se literal e ganha os recursos do cinema
direto. Os quadros são colocados nas ruas do
centro da cidade e o diretor, com microfone Nagra em
punho, colhe o depoimento de populares sobre como vêem
as obras. Mas nem aqui a espontaneidade é o objetivo.
As entrevistas, que nunca estão em sincro, entram
como um elemento a mais no diálogo entre o filme
e os quadros de Gerchman, que vão beber na fonte
do imaginário popular, via imprensa sensacionalista,
anúncios amorosos, canções sentimentais
(na trilha, Altemar Dutra destrói corações
com "Sentimental eu sou").
A atitude tropicalista, que aciona o olhar pop
sobre as hierarquias artísticas e os valores
culturais, fica mais evidente na parte dedicada a Gerchman,
até pela ligação direta entre o
movimento e o pintor, que teve uma de suas telas servindo
de inspiração para a música "Lindonéia",
gravada no disco Tropicália – Panis et circencis.
A levada pop, no entanto, percorre todo os blocos,
em especial nas recorrentes referências aos quadrinhos,
tanto nas obras exibidas como na concepção
gráfica do filme e na construção
de cada artista enquanto personagem – sobretudo Dias,
com sua ironia mascarada.
Depois de assistir a Heitor dos Prazeres e Ver
ouvir fica a maior vontade de conhecer dois outros
curtas da filmografia de Fontoura: Meu Nome é
Gal e Mutantes, ambos de 1970. Tomara que
ainda existam cópias ou negativo, porque as informações
sobre eles sugerem, no mínimo, uma curiosa experiência
de curtas musicais, nos quais o diretor parece encampar
com grande entusiasmo as propostas do cinema direto.
Em entrevista para o Jornal da Tarde (14.agosto.1969),
Fontoura comenta como gostou de filmar Gerchman nas
ruas do Rio, os quadros misturados com o povo ("uma
espécie de happening"), e como pretende
utilizar as técnicas de improvisação
no filme com Os Mutantes, que serão co-autores,
estimulados a "criar livremente". Segundo
a reportagem, em Meu Nome é Gal uma câmera
escondida filma a cantora pelas ruas do centro ou então
interpretando uma historiazinha ("ela acorda, desfaz
os papelotes do cabelo e se prepara para sair").
Os dois curtas faziam parte de um projeto desenvolvido
entre a gravadora Philips e a produtora fundada por
Fontoura e David Neves. O nome da empresa? Pop Filmes.
Luciana Corrêa de Araújo
(VHS Funarte, coleção
Brasilianas nº17: Antônio Carlos Fontoura)
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