FLORES DE CHANG

Muitas vezes, a melhor maneira de conhecer um assunto é analisando sua repercussão longe do local em que ele acontece. Ou, sem precisar tomar muita distância, argüindo os que participaram indiretamente do processo. Mas isso é só para dizer que fica mais fácil – e mais prazeroso – falar de Chang Cheh quando se assiste também aos filmes de outros realizadores importantes do seu período. Dos muitos nomes que passaram pela Shaw Brothers ao longo dos anos 60 e 70, alguns se fixaram melhor na história do cinema (que nem sempre é justa com seus agentes criadores, convenhamos). Além de Chang, diretores como King Hu e Liu Chia-liang (também conhecido como Lau Kar-leung) e atores como David Chiang, Alexander Fu Sheng, Gordon Liu (irmão de Liu Chia-liang e protagonista de Shaolin Challenges Ninja/Heroes of the East, obra-prima de 1978) e Cheng Pei-pei ocupam a galeria dos que, em se tratando de cinema de kung fu, não podem ser esquecidos sob hipótese alguma.

Coreógrafo de alguns dos mais célebres filmes de Chang Cheh (Trail of the Broken Blade, One-Armed Swordsman, The Heroic Ones, Heroes Two, entre outros), Liu Chia-liang começa na direção somente em 1975, com Spiritual Boxer. Estavam lançadas as bases de consolidação de um gênero em que Jackie Chan depois se consagraria: a comédia kung fu. "Para mim, um filme de ação deve ter partes engraçadas", diz Liu (1). Da ruptura com Chang Cheh, o que mais sobressaía na obra de estréia de Liu (que continua filmando, ainda que esporadicamente, sendo seu último filme de 2002, Drunken Monkey) era a sua recusa à sangüinolência e ao lirismo ultra-violento que tanto marcavam os filmes de seu antecessor. Surgia um tempo mais leve e menos trágico, assim como uma valorização mais evidente e preponderante do código moral do kung fu. Ele mesmo um discípulo de Shaolin (o patriarca da escola de kung fu a que pertencia era ninguém menos que Wong Fei-hung), Liu assimila a própria educação e o próprio treinamento do kung fu na pauta principal do seu cinema. Na ordem dos fatos na vida de Liu, o kung fu veio bem antes do cinema, sendo praticado desde a infância, num percurso contrário ao de Chang Cheh, para quem ele foi o homem por trás da aparição de autênticas cenas de kung fu, resgatando heróis que realmente existiram e retratando a disciplina dessa arte marcial exatamente como eles a praticavam. O que Liu, como coreógrafo e consultor geral, não conseguia convencer Chang, entretanto, era da importância em estabelecer o link entre os mestres e os discípulos no kung fu – talvez por se tratar de um assunto muito particular, enquanto os filmes de Chang claramente confluíam para os universais de amor, amizade, morte, família. Embora agregando subgêneros e subtramas que entram em órbita ao redor dos protagonistas, o interesse central dos filmes de Liu jamais se desvia da técnica – e da filosofia, naturalmente – das artes marciais em foco. Exemplar, nesse sentido, é seu delicioso filme Shaolin Challenges Ninja (1978), que nada mais é do que uma comédia kung fu de re-casamento.

Nesse filme, Gordon Liu interpreta um jovem chinês que se casa com uma japonesa a quem estava prometido desde a infância. Curiosamente, e com um cunho sexual bem interessante, a vida conjugal se torna uma eterna e infantil disputa entre as técnicas do kung fu e do ninjitsu, até o momento em que a esposa volta revoltada para o Japão, não aceitando ter perdido as disputas para o marido e ameaçando terminar o casamento. A carta que Gordon Liu, incentivado por seu criado (alívio cômico do filme), escreve à esposa conclamando-a para um desafio (apenas como inusitada estratégia de reconciliação), e acirrando a rivalidade entre as tradições japonesa e chinesa, acaba nas mãos dos membros do clã ninjitsu em que ela treina, que se sentem ofendidos e viajam até a China para aceitar o desafio. Rendendo cenas simultaneamente hilárias e exuberantes do ponto de vista das coreografias, os desafios vão sendo vencidos um a um por Gordon Liu – o que serve de panos para manga quando da identificação do traço nacionalista da obra de Liu Chia-liang –, enquanto a esposa se mostra arrependida por ter ido embora e disposta a ficar ao lado do marido.

É assustadora a inventividade de Liu para criar cenas de ação em que a agilidade e a surpresa dos golpes entram em perfeito acordo. Os corpos dos atores se contorcem como em nenhum outro filme do gênero. Sensacional, por exemplo, é a cena em que Gordon Liu vai buscar a ajuda de um lutador beberrão, que dorme em banco de praça e detém uma técnica única, calcada no poder maleável e escorregadio do corpo em estado ébrio. Para cada confronto de Shaolin Challenges Ninja, um treinamento específico por parte do herói. Ao final, a mensagem – verbalizada por Gordon Liu – de que o mais importante não está na habilidade, mas na moral que a sustenta. Apaixonado pela técnica e convictamente engajado no entretenimento, o que Liu Chia-liang faz é muito mais um documentário-fantástico sobre o kung fu.

Numa chave que guarda lá suas semelhanças com Liu, King Hu, autor da obra-prima Come Drink With Me – que introduziu definitivamente a modernidade no cinema de ação –, alterna as cenas em que documenta os golpes dos lutadores com aquelas em que pululam cenários artificiais e acrobacias inverossímeis. Existe uma diferença crucial entre seu estilo e o do diretor de Golden Swallow (outro filme paradigmático sobre a revolução estética na Shaw Brothers na segunda metade da década de 60): enquanto King Hu interliga as ações através de uma elegante rede de raccords solidários que potencializam a ação na passagem de um plano a outro (mais detalhes, ver o texto de Come Drink With Me, Contracampo nş 61), nos filmes de Chang Cheh a ação se estrutura em pétalas. Nada muito espantoso para um cineasta que, sempre que pode, preenche parte de seu enquadramento – quando não ele todo – com flores as mais diversas (The Brave Archer traz uma seqüência em que o par romântico se perde num oceano de rosas). Com cores e formas que variam indefinidamente, as imagens/pétalas se agrupam em torno de um núcleo e participam de uma configuração conjunta. Se, na cena final de Shaolin Challenges Ninja, Liu Chia-liang faz a luta começar num lugar e ir migrando para outros pontos, sendo que a ligação entre uma e outra porção de espaço se dá por movimentos induzidos ora pelo personagem que luta, ora pela própria câmera que se move ou pelo corte que a montagem executa, a essa cascata de golpes, contudo, Chang prefere uma outra via estética que, sem contrariar o seu aspecto violento, passa pela floricultura. As cenas de ação de Chang traçam uma circunferência a partir de um centro estável, dando aquela impressão de filmes que, por mais que sejam desvairados no cultivo do artifício, soam ostensiva e detalhadamente coreografados na sua cadeia de imagens – o que já não se aplica aos filmes da segunda metade dos anos 70, impregnados de instabilidade e narrativamente/esteticamente mais arriscados que o usual. Nessa posterior transmutação do estilo Chang Cheh, o formato em pétalas já diz respeito mais a uma infindável sobreposição de camadas narrativas e imagéticas do que a uma coesão plástica nas cenas de ação. Mas ainda que houvesse, nos filmes anteriores, um centro – e um diâmetro a ser respeitado –, os corpos podiam flutuar livremente ao redor do ponto de fixação – daí a fluidez dos movimentos e a sensação de leveza transmitida por esses corpos.

Chang Cheh é sem dúvida um diretor único dentro do cenário das artes marciais e do filme de espadachim solitário, que ele mesmo ajudou a se desdobrar no cinema de ação efetivamente voltado para o kung fu, com atuações de verdadeiros adeptos das artes marciais, nada de amadores ou golpes facilitados pela montagem. A preocupação detalhista de Chang com a cenografia feita em estúdio, com as relações gráficas da decupagem e com a dinamicidade dos embates (sejam eles duelos ou confrontos coletivos) – associada ao espírito do cinema-entretenimento – faz dele um magistral compositor de operetas que trazem, a um só tempo, a primariedade das ficções populares de fácil consumo e a sofisticação estetizante de um cinema imediatamente identificado ao circuito de arte (para melhor elucidação desse ponto, aguardem a chegada de Hero, constrangedor exemplo da mão pesada de Zhang Yimou ao tentar emular Ashes of Time, de Wong Kar-wai, dentro dos preceitos do que há de pior no cinema chinês oficialesco – mas que agrada ao público ocidental, que já comprou a grife muito antes, desde O Tigre e o Dragão). Em termos de diálogo com o público, Chang traduz para o cinema – através de elementos como o seu incisivo e recorrente uso do zoom in/out – uma modalidade significante residual das formas pré-modernas de narração (2). O zoom-chicote e as trilhas sonoras sempre enfáticas funcionam como procedimentos retóricos deflagradores da performance narrativa em si. Mas não se trata de criar distanciamento através da quebra da crença numa narração "invisível e impessoal", e sim de fazer da instância narradora um similar do ficcionista que, em meio a uma praça pública, conta estórias nas quais mescla sua habilidade como narrador/animador presente à de estimulador de imaginários que ficam a cargo das mentes individuais.

Fica muito difícil utilizar superlativos para falar de uma obra de 100 filmes dos quais tivemos acesso a no máximo vinte. Mas uma vez que nosso recorte pode ser diminutivamente considerado razoável (pois abrange os "principais" períodos da carreira de Chang), dá para arriscar dizer que Vengeance é possivelmente um de seus ápices – um dos melhores filmes que pudemos ver, isso certamente. Vengeance (Bo sao, 1970) é um triunfo do esplendor formal na mesma medida em que nos permite contemplar algumas características menos frisadas quando da análise do conjunto da obra de Chang. É preciso vencer uma primeira e indispensável etapa – de fascinação pelo redimensionamento do movimento (a essência do cinema, para muitos) – para apreciar, por exemplo, sua grandiosa capacidade – e nítida paixão – em filmar cenas românticas. Em muitos momentos de Vengeance, fica martelando na tela a pergunta: "Por que ele não faz logo um filme de amor?". Nas cenas de romance, Chang Cheh parece querer lentificar o tempo, tornar mais viscosa a duração (sempre tão seca, não apenas no kung fu pian como também no wuxia pian), prolongar ao máximo o tempo do herói de tragar um cigarro deitado à cama, ao lado da amante – antes de ele retornar ao projeto sanguinário de vingança pelo irmão abatido no início do filme. "Hsiao Lou, seu coração bate tão rápido", diz-lhe a carinhosa heroína positiva do filme. Nessas cenas em que a câmera, ao invés de se mover, realiza enquadramentos estáticos e busca os mais abstratos e menos legíveis pontos de vista – e em que as cores automaticamente se harmonizam com as sombras e se recombinam em favor de uma escala reconfortante –, o que Chang pretende é justamente frear os batimentos cardíacos de Kuan Hsiao Lou (David Chiang), o melancólico herói do filme. Se for verdade o que Cheng Pei-pei (famosa atriz de filmes de artes marciais, presente em muitos dos clássicos do estúdio Shaw Brothers) fala de Chang Cheh – que ele sempre preferiu rodar as cenas de amor às de luta –, essa cena então metaforiza perfeitamente a relação do cineasta com seus objetos de escolha: ele identifica-se com a personagem que se entristece ao ver o amante partir; quer permanecer no quarto, quer prolongar aquela cena, mas precisa mover o filme adiante, reencontrar a ação. Antes de pormenorizar a indiscutível mestria de Chang como diretor de cenas de ação, essa descoberta de um visionário romântico tencionando cada segundo de toda a violência de sua obra apenas lhe abre um flanco estético e temático extraordinário.

Assim como o posterior Dois Heróis do Karatê (Heroes Two, 1974), belo exemplo de roteiro inventivo a partir de uma mesma receita básica (mas com rearranjos de peças e de locações formidável), Vengeance já é da fase mais kung fu. Não só pelos aspectos de romance, mas mesmo dentro da lógica do filme de kung fu tradicional, Vengeance é peça singular, ambientada nos anos 20 e tendo personagens que são atores da ópera de Pequim (de que o cinema aqui em questão é um herdeiro mais que direto). As lutas de Vengeance não são como a maioria das lutas dos outros filmes de kung fu. Os personagens do filme, para falar a verdade, menos exibem técnicas específicas do que simplesmente "saem na mão" – até porque se trata de um filme com tantos elementos de kung fu quanto do filme de gangster (ou talvez até com mais do segundo). Chang transferiu as lutas para um plano quase que integralmente moral: a força dos golpes é desmedida, não calculada, pura explosão de ódio. Prevalece, mais do que nunca, a fórmula do herói que, mesmo com suas tripas de fora, continua lutando até o último estertor.

Esse suspiro derradeiro, em Vengeance, se dá ao lado de uma fonte ornada com flores de diferentes tipos, e perante os olhos desesperados da amada. Os últimos planos do filme são cruelmente belos: o plano aproximado de Hsiao-lou agonizando, com a roupa branca ensangüentada e o olhar fixo numa virtual imagem de sonhos que se perdem; o amigo que pousa a mão sobre o ombro da namorada entristecida; a luz variando no decorrer dos planos para denotar um sol que nasce; o plongé em enquadramento aberto com o corpo de Hsiao-lou estrebuchado ao lado da fonte florida: tudo muito estático, e ao mesmo tempo muito movimentado por uma atmosfera conscientemente antologizante. As flores parecem estar ali já para velar o corpo do herói. Majestosa e melancólica até o fim da alma, essa cena não só comprova que Chang Cheh não se compraz da morte de seus personagens, mas fornece ainda uma amostragem (apenas uma pequena fração) da incrível força de seu cinema. No vasto jardim da cinefilia, eis algumas de suas mais prodigiosas paisagens.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

1. Em entrevista concedida a Olivier Assayas e Charles Tesson (Cahiers du Cinéma nş 362-363, especial "Made in Hong Kong", 1984).

2. Ver o interessante artigo de Paul Willemen, "The Zoom in Popular Cinema: A Question of Performance", publicado no primeiro número do site australiano Rouge.

 

 






Dois momentos de Dois Heróis do Karatê/Heroes Two (1974)