1970
marca uma primeira mudança de percurso na carreira
de Chang Cheh. Ao mesmo tempo um filme de gangster,
passado nos anos 20 (Vengeance) e o primeiro
projeto de megaprodução, com fortificações,
centenas de cavalos e milhares de figurantes, The
Heroic Ones. É um filme muito curioso, estrelado
por David Chiang e Ti Lung, como dois de treze "generais"
que são filhos adotivos de um poderoso mongol
que luta contra fortificações vizinhas.
Mas não é uma história de luta
entre fortificações, mas o processo de
auto-destruição dos treze generais entrei
si, em meio a infindáveis conspirações
e lutas por glória. O filme é bastante
peculiar na medida que é a intriga que menos
se espera de Chang Cheh: os iguais, ao invés
de serem leais uns aos outros, são o foco de
uma manobra suicida de dilapidação dos
valores humanos incomum num cinema de lealdade entre
lutadores. Dois generais desgarrados, invejosos da glória
de um dos seus (David Chiang, o décimo terceiro
general), armam planos para cair nas graças do
pai, sempre desordenadamente e sem os efeitos desejados.
Também curioso é o fato de que o chefe
do clã, o chefe Tártaro Li Ke-yung, é
interpretado por Ku Feng, geralmente utilizado como
vilão nos filmes de Chang Cheh (The Magnificent
Trio, Have Sword Will Travel, os dois primeiros
One-Armed Swordsman). A intriga amorosa recebe
apenas uma nesga de atenção, jamais se
resolvendo: David Chiang se apaixona por uma moradora
do forte inimigo, salva-a de ser violentada pelos dois
generais traidores, e recebe dela um lenço, para
nunca mais vê-la. E a forma entrópica que
o filme assume é inesperada: ao invés
de se completar com a invasão final que iria
destronar Chu Wen (Chan Sing), o filme termina com a
luta fratricida entre o restante dos 13 generais, fazendo
a soma chegar, ao final, a apenas quatro.
Uma coisa a se notar em The Heroic Ones, e que
permanecerá nos filmes "épicos" (utilizo
essa expressão por falta de uma melhor para descrever
esse gênero de filme, muito particular da cinematografia
de Hong Kong), é que a câmera faz um uso
muito discreto das aglomerações humanas
das tropas, e nunca se vê em seus filmes o famoso
plongé que toma diagonalmente a movimentação
dos soldados. Nenhuma utilização geométrica
das multidões à Leni Riefenstahl, ou,
mais recentemente, à Zhang Yimou em Herói,
assim como há de fato muito pouca suntuosidade
nos planos de castelo, de cavalos ou de soldados armados
em fila com lanças. Seguindo uma lógica
inversa das superproduções, cuja principal
característica é chamar atenção
para sua própria pujança (tanto logística
quanto econômica), a suntuosidade própria
do cinema de Chang Cheh continua a ser humana: os rostos
belos das mulheres e os rostos austeros dos homens,
mas sobretudo os momentos de batalha e de espada sobre
carne, com centenas de figurantes. Em todo caso, mesmo
nas batalhas é a lógica do menor número
que se sai vitoriosa: os conflitos em grande número
são geralmente tomados em planos gerais, sem
inserções de close-ups, e é
só quando a ação se fecha em uns
poucos homens que a câmera acompanha, aproximando
os planos dos movimentos habilidosos dos personagens.
Essa lógica é levada à sua concretização
mais perfeita em The Water Margin (1972). Adaptação
de alguns poucos capítulos (64 a 68) de um clássico
da literatura chinesa escrito no século XIV mas
situado no século XII, Os foragidos do pântano,
o filme segue algumas das peripécias do grupo
de 108 heróis de Liang Shan em sua tentativa
de desbancar líderes corruptos e/ou impiedosos
do poder. Também é uma história
de conspiração: os 108 heróis devem
convencer dois exímios lutadores, Lu Jun-yi (Tamba
Tetsuro) e Yan Qing (David Chiang), mestre e pupilo,
a juntar forças para derrotar os inimigos. Por
mais que não sejam apresentados os exatos 108
heróis, muitos deles o são, e as apresentações
(com direito ao nome do ator em mandarim e inglês,
e o nome do personagem que interpreta) vão até
os 25 minutos de filme, quando é apresentado
o progatonista David Chiang. Se existem um ofício
meticuloso de artesanato narrativo – e é bom
lembrar que Chang co-assinava ou supervisionava a maioria
de deus roteiros – nesses filmes "corais" de Chang Cheh,
é a passagem do individual ao coletivo, o que
acaba coincidindo com a questão do star-system
de Hong Kong e de como dar tempo de tela ao astro quando
se deve contemplar uma série de outros personagens/atores
interessantes (de certa forma, os generais 4 e 11 de
The Heroic Ones se rebelam também por
não serem os protagonistas do filme). Há
uma separação hierárquica clara
entre as estrelas (David Chiang em The Heroic Ones,
The Water Margin e All Men Are Brothers,
Fu Sheng em O Bravo Arqueiro de Shaolin/The
Brave Archer), os coadjuvantes com tempo generoso
de tela (Ku Feng e Ti Lung em The Heroic Ones,
Fan Mei-sheng em The Water Margin e All Men
Are Brothers)
O ritmo frenético dessas histórias que
ricocheteiam narrativa e estilisticamente o tempo inteiro
permite maiores audácias formais e mais loucuras
de zoom, foco e câmera na mão por
parte de Chang Cheh. É como se, saindo do estilo
mais contido do wuxia pian e partindo para uma
narrativa multi-personagem, fosse necessário
multiplicar também as intervenções
de câmera e alterar o espaço de forma significativa.
A seqüência de créditos de The
Water Margin é quase um manifesto: para filmar
a chegada de uma esquadra e um caminho percorrido a
cavalo, o diretor faz uso de zoom in e out de
forma abrupta, joga a câmera de um lado para o
outro emulando maresia, ou posiciona ela na frente do
barco, fazendo com que todos os operários no
deque olhem para ela. O propósito? Menos virtuosismo
do que uma profissão de fé em filmar os
movimentos e de incorporar o movimento à câmera,
isso não no quadro de um cinema de vanguarda
em que o conceito do diretor seria melhor aceito (e
onde isso foi feito à perfeição
em A Symphony of Sound por Andy Warhol), mas
no cotidiano bem prosaico de um cinema comercial de
gênero não-elegante.
All Men Are Brothers é uma continuação
estrita de The Water Margin. Atende à
mesma lógica do filme, mas com um razoável
recuo de personagens: o filme começa à
paisana, com David Chiang se disfarçando de flautista
para conseguir o perdão do imperador e explicar
a ele a natureza das ações do grupo foragido
dos 108 heróis de Liang Shan. Depois de uma tentativa
fracassada de entrada na fortificação
inimiga, um grupo reduzido de heróis é
escolhido pelo chefe do grupo e chamado para organizar
estrategicamente um ataque baseado não mais no
número, mas na astúcia. O roteiro expressa
uma tentativa mais focada de narrativa: é melhor
dar a todos os protagonistas algum tempo, e para isso
é preciso reduzir o número. Reduzindo,
a) é possível um ataque mais planejado
da parte dos personagens; e b) é possível
um ritmo mais matizado que, ainda vertiginoso, possa
ser capaz no entanto melhor dos personagens.
O Bravo Arqueiro de Shaolin/The Brave Archer,
de 1977, é uma espécie de nova reflexão
no estatuto do cinema "coral" de Chang Cheh. Estamos
em 1977, e nos estertores do sucesso do cinema industrial
de Hong Kong, ao menos o da Shaw Brothers, que em breve
passará a ver o foco central de sua produção
no mercado televisual. Existem quase dois filmes no
meio deste: o primeiro, que jorra personagens e intrigas,
e o segundo, que é centrado no percurso de Kuo
Ching (Fu Sheng, última estrela individual de
Chang Cheh) com sua amada Yung-Er (Tien Niu). Uma outra
lógica, que vai cronologicamente do coletivo
ao individual (ou, mais especificamente, ao dual), deixando
certas tramas e certos personagens rigorosamente para
trás para focar numa tensão específica.
A se julgar pelas 3 continuações que teve
(termina com Brave Archer 4, de 1982, mas já
sem nenhum dos personagens principais do primeiro filme),
talvez tenha sido a recepção mais bem
aceita dos grandes épicos de Chang Cheh. Curiosamente,
o filme não flagra um Chang muito arrojado e
nem mesmo entusiasmado: a maioria das idéias
boas (que o filme naturalmente tem) nunca alcança
o brilho de seus melhores esforços. The Water
Margin, espécie de laboratório selvagem
de inserção de atores dentro de papéis
e tratado de partilha mútua dos espaços,
é o que de todos os épicos de Chang Cheh
merece mais atenção: um estilo adequando
sua expressão a um novo gênero, e o desenvolvimento
se fazendo todo a nossa frente. Mesmo no grandioso,
a grande épica do cinema de Chang Cheh reside
na fragilidade de um único corpo.
Ruy Gardnier
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