CHANG CHEH, ESTETA INDUSTRIAL

1. Falar de Chang Cheh implica uma variação no discurso crítico costumeiro. É um diretor que sempre se inseriu muito bem no circuito dos cinemas de estúdio, adaptou-se às mudanças da época quando era preciso, nunca seguiu contra a maré ou fez filmes "de contrabando" tentando passar um discurso por baixo dos canais de praxe. Tampouco pode-se dizer com facilidade que seu cinema toca as grandes decisões da existência humana (embora o faça, de alguma forma) ou se insira no patamar de um cinema "humanista" (grande clichê da crítica de bom tom), e muito menos que exista complexidade em sua dramaturgia. A intriga dos filmes de Chang Cheh está na imagem, no extensivo uso dos recursos que ela apresenta para construir expressividade, num zoom, numa mudança de foco, num corte, numa passagem de cena, na movimentação dos atores pelo plano, nos movimentos de câmera, na construção dos cenários e no imaginário que tudo isso evoca. Escrever sobre o cinema de Chang ao mesmo tempo revela as limitações de escrita de uma certa crítica de cinema (discorrer sobre a trama, especular sobre a mensagem do filme) e obriga a uma atenção específica à imagem como aquilo que compõe a raiz da expressão cinematográfica (e que, curiosamente, é tão pouco analisada nesse mesmo veio crítico de que falamos). Ao mesmo tempo, falar de Chang Cheh se faz necessário não só porque ele é referência absoluta em termos de cinema de ação (Tsui Hark e John Woo bebem avidamente da fonte, Tarantino fez de Chang sua principal referência em Kill Bill, e pode-se dizer que um campo enorme e decisivo do cinema contemporâneo, que passa por Soderbergh, Vincent Gallo e McG, mesmo não sendo influenciado ou tendo pouco ou nada a ver estilisticamente, passa hoje por uma mesma problemática de imagem), mas sobretudo porque a energia e mestria de suas composições e filmes obrigam a uma avaliação e uma reconsideração desse que sempre foi visto como um artesão talentoso e nada mais.

2. O Grande tema de Chang Cheh, se há um só – mas que também é o do cinema como um todo –, é o movimento. O segundo, derivado do primeiro, é a fragilidade dos corpos. Chang parece ser um continuador da arte cinética de Dziga Vertov, por vias transversas. Tudo se dá com uma velocidade tão particular que é preciso um novo aprendizado do olhar para conseguir capturar o modo como os corpos se movimentam, se distanciam ou se chocam, como o espaço é percorrido por um corpo através do plano ou para longe dele. Nesse sentido, o cinema de Chang se distancia da arte do outro mestre do wuxia pian, King Hu: nada de muito mágico nos vôos dos espadachins, nada da análise do movimento que fará de Hu uma espécie de sino-Leone. Se por vezes e em épocas o cinema de Chang Cheh é imbuído de um sentido romântico, este é tratado de forma bastante laica e imanente. Como todo esteta da agilidade (mais da câmera que dos corpos, por mais que eles sejam ágeis), o autor de Golden Swallow vê o mundo como sucessão de fluxos, que se integram ou se repelem, no amor assim como na guerra. E, como poeta dos fluxos, Chang sabe muito bem aproveitar o momento em que algo se fixa, o momento que um corpo deixa de ter movimentos: a morte. Muitos vêem em seu cinema apenas uma sangrenta contagem de corpos de homens em combate. Não é que isso não esteja lá, mas o simples fato de que diversas das mortes que acontecem em seus filmes são tão repletas de carnalidade (quando morrem os heróis, quando certos vilões são humanizados no momento mesmo antes de morrer) permite apontar para o fato de que o rasgo feito é muito mais importante que a espada, e que grande parte do jogo sem sentido de violência de alguns de seus filmes remete justamente para essa ausência de sentido, e não pelos rituais de honra, astúcia e virilidade tão freqüentes em filmes do gênero. É espantoso como, inclusive, é várias vezes o ponto de vista das personagens femininas (anti-violência) que parece reinar no final (os dois One-Armed Swordsman com o ator Wang Yu, The Magnificent Trio, entre outros).

3. Se excetuarmos dois filmes desconhecidos e realizados com muita distância temporal antes e depois de quaisquer outros (Alishan feng yun, 1949, em Taiwan, e Ye Huo, 1957, já em Hong Kong), a carreira de diretor de Chang Cheh começa em 1965, no ano em que a febre do wuxia pian iria dominar o imaginário cinematográfico de Hong Kong. Nesse momento, Chang já tinha uma carreira sólida de roteirista por cinco anos na indústria de cinema com musicais e filmes de ação. No mesmo período, surgem três filmes que modificarão definitivamente o cinema feito na ilha: Temple of the Red Lotus (dir. Xu Zenghong), Come Drink with Me (dir. King Hu) e Tiger Boy (dir. Chang Cheh). Os filmes wuxia formam um gênero tradicional na cultura chinesa (e no cinema desde os anos 20), e seus heróis são cavaleiros errantes, espadachins habilidosos que rumam de cidade em cidade, misturando técnicas humanas com poderes mágicos, por vezes. Mas é somente em meados dos anos 60 que o wuxia pian (literalmente filmes de cavaleiro marcial, embora a expressão tenha um significado muito mais profundo que esse 1) passa a ser recuperado, principalmente através dos produtores com forte senso de mercado que eram os Shaw Brothers, Run Run e Run Me Shaw. É com os irmãos Shaw que Chang Cheh realizará grande parte de sua prolífica produção (101 filmes de que se tem notícia), e todos os seus filmes mais conhecidos. E é durante a segunda parte dos anos 60 que os filmes wuxia terão sua máxima expressão, sendo em seguida substituídos no gosto do público local pelo cinema de kung fu, ou kung fu pian, principalmente a partir do acontecimento Bruce Lee.

4. The Magnificent Trio (1966) já é Chang Cheh exercendo com talento sua criatividade de encenador. Historieta meta-comunista, o filme conta a história de habitantes de um vilarejo tentando desbancar um prefeito local corrupto que obriga as comunidades a ceder taxas escorchantes de alimentos e tributos. No meio do caminho aparece Wang Yu, maior estrela do cinema wuxia, que aqui interpreta Lu Fang, um espadachim que retorna de batalha e encampa a justa luta dos camponeses 2. Tanto as delirantes cenas de crédito quanto os temas de lealdade e fraternidade entre os espadachins já se fazem presentes, assim como a força dos evocativos cenários de estúdio, mais mágicos do que naturalistas, e o subtema amoroso representa parte decisiva da trama. Em todos os filmes dos anos 60 que vão se seguir a The Magnificent Trio, os traços de enredo permanecerão semelhantes, com foco forte no romantismo do personagem principal: um romantismo que não ilustra só nos interlúdios com as personagens femininas, mas em toda uma ideologia de herói dramático, sério, focado, que Wang Yu representa à perfeição (e que farão dele uma figura de proa desse período). Segue-se um período de pequenas obras-primas: The Trail of the Broken Blade (1967), One-Armed Swordsman (1967), Golden Swallow (1968), Return of the One-Armed Swordsman (1968) e Have Sword, Will Travel (1969). Chang evolui seu estilo, aprimorando-se em enredos sempre simples, em que as cenas de ação vão assumindo recortes cada vez mais virtuosos. A notar nesse período a primeira contribuição de Liu Chia-liang (ou Lau Kar-leung), coreógrafo de ação e herdeiro de sangue do verdadeiro templo de Shaolin (através da figura real mas não menos mitológica de Wong Fei-hung, posteriormente herói ficcional da saga Era Uma Vez na China de Tsui Hark). Liu trabalha com Chang pela primeira vez em The Trail of the Broken Blade. Em 1970, Wang Yu decide tentar sua carreira de diretor, e esse momento coincide com uma baixa de popularidade do wuxia clássico.

5. Todo esse ambiente propicia uma espécie de recomeço na carreira de Chang Cheh, que precisa ao mesmo tempo encontrar uma nova estrela para protagonizar seus filmes e novas fórmulas para encher os cinemas. A estrela ele encontrará no jovem David Chiang, que já protagonizava Have Sword Will Travel junto com Ti Lung, ele mesmo também um quase estreante no cinema. Juntos, eles farão a dupla de protagonistas mais famosa do cinema de Hong Kong. Em David Chiang, Chang Cheh encontrará o protagonista mais capaz de substituir Wang Yu e trazer a seus filmes um veio cômico-cínico que estará presente em boa parte de sua carreira a partir dos anos 70. Prova disso é a comparação entre o primeiro One-Armed Swordsman e New One-Armed Swordsman, retomada em outra chave do mito do espadachim de um braço só. Chiang é o herói orgulhoso (New One-Armed...), bon vivant e mulherengo (Heroic Ones, The Water Margin) que vai dar o tom para Chang Cheh substituir ao wuxia pian clássico um novo gênero híbrido, mais voltado para o cinema de ação mais contemporâneo (Vengeance, Anonymous Heroes) ou para superproduções com uma infinidade de personagens, cavalos e castelos (The Water Margin, Heroic Ones, All Men Are Heroes). O estilo de Chang Cheh, exuberante e excessivo mas de uma limpidez impressionante nos anos 60, vai assumindo um tom vertiginoso, quase experimental, misturando zoom in/out com câmera na mão tecendo movimentos desvairados, como se a imagem precisasse se movimentar tanto quanto os personagens que ela enquadra. Espadachins ou heróis de kung fu, os heróis e vilões dos filmes de Chang na primeira metade da década de 70 se aproximam muito do imaginário das histórias em quadrinhos, em suas roupas, em suas extravagantes técnicas de luta e em seus gestos.

6. O sucesso de Bruce Lee e sua prematura morte em 1973 fazem com que o cinema de kung fu (kung fu pian) se transforme aos poucos em foco principal da indústria de Hong Kong, e ainda que Chang continue realizando alguns filmes de espadachim ou superproduções com centenas de personagens (O Bravo Arqueiro de Shaolin/Brave Archer, com três continuações), de 1974 em diante a maior parte de seus filmes terá muito poucos embates de espada, que serão substituídos por onipresentes lutas corporais. Nasce então mais uma parceria de Chang Cheh com outro novo ator, muito mais versado em artes marciais e também muito mais galhardo do que David Chiang: Fu Sheng (ou Alexander Fu Sheng, no Ocidente). Fu Sheng começa no cinema em Boxer From Shantung (1972), mas só tem seu primeiro papel principal em Dois Heróis do Karatê/Heroes II (1974). O filme também é o primeiro de uma enorme série de filmes que Chang Cheh realiza tendo como base o famoso universo dos monges do Templo de Shaolin, importante casa de aprendizado de artes marciais destruída na dinastia Qing e tornada clandestina desde então. Em filmes como Five Shaolin Masters (1974), Disciples of Shaolin (1975), Shaolin Temple (1976) e Chinatown Kid (1977, raro filme de Chang Cheh disponível que se passa no tempo atual, no bairro chinês da cidade de São Francisco), começam a aparecer atores como Lu Feng, Chiang Sheng, Philip Kwok, Sun Chien e Lo Meng, que se tornariam famosos em 1978 com Os Cinco Venenos de Shaolin/Five Deadly Venoms (1978), último time de estreladas catapultadas para a fama por Chang Cheh. Se o começo do período kung fu e o trabalho com Fu Sheng dá a Chang uma nova oportunidade de reinventar sua mise-en-scène, abandonando parte de sua extravagância e voltando a um estilo mais direto, menos floreado; e se o sucesso dos filmes com os "cinco venenos" dão a ele algum gás suplementar, a trajetória de seu cinema nos anos 80 é obscura, e tudo leva a crer, a partir de Kid with the Golden Arm (1979), seu filme mais tardio a que pudemos ter acesso, que já havia um certo desgaste de energia e inventividade que se fazia sentir, em filmes de duração muito curta, com cortes pouco eficientes e fórmula funcionando (pois ainda funcionava) no vazio.

7. Chang Cheh tem toda sua trajetória dentro da indústria de Hong Kong, e nela conseguiu desenvolver um estilo visual próprio, em várias temáticas diferentes e rearranjos de carreira que permitem reconhecer uma mestria incomum do formato scope 2,35:1 (no Shawscope da cartela de abertura bastante ostentatória dos filmes da Shaw Brothers, retomada em Kill Bill), que não ficam somente na apresentação costumeira do cinema de artesanato (com os ideais de lisibilidade absoluta da imagem), mas desenvolvem utilizações expressivas e por vezes selvagens da imagem que dificilmente encontraremos em outro realizador de cinema de gênero, em Hong Kong ou qualquer outro país. Um estilo que não é apenas um jogo expressivo descolado daquilo que se filma, mas um casamento meticuloso de uma paleta de opções estéticas muito pessoais com um universo temático também muito próprio. Um universo de heroísmo, habilidade, morte e sangue, que no entanto nunca se encerra numa filosofia da violência positivada pela maior força ou maior habilidade, e tampouco faz da morte apenas um suporte para o gozo visual. Que o digam os espectadores de The Water Margin: na cena da execução da conspiradora esposa de um dos 108 heróis de Liang Shan e de seu amante, Chang Cheh faz de tudo para aproximar o espectador daqueles que serão assassinados a sangue frio pelos heróis do filme. A execução, quando ela se dá, é fria, e jamais assume aos olhos da mise-en-scène um tom de justiça feita, e sim o gosto amargo do niilismo através da lógica do derramamento de sangue. Cinema mais masoquista do que sádico – infindável número de heróis a que falta a família, a pessoa amada, o braço, a comunidade, o companheiro morto –, os filmes de Chang Cheh fazem da carne de todos, heróis ou vilões, sua própria carne, igualando-a toda pela imagem como o testemunho daquilo que vibra, e que em algum momento não vibrará mais, como todo movimento que se encerra, como toda vida que sucumbe. Algo muito além do exploit que certas visões meio apressadas gostariam de fazer crer.


Ruy Gardnier

1. O artigo de Eric Yin "A definition of wuxia and xia" tenta clarificar ao máximo a expressão. Para uma cronologia mais rigorosa do wuxia pian (ou wuxia pien), o artigo do bastante informativo site Kung Fu Cinema.

2. O filme é uma adaptação bastante fiel em seu argumento de Three Outlaw Samurai (1964), filme japonês de Hideo Gosha.

 

 





Golden Swallow (1968)