Ao
compararmos as seqüências de abertura de
Belíssima e as do posterior, Sedução
da Carne, somos acometidos da aparente constatação
de que o autor teria realizado uma abrupta operação
de ruptura. Afinal, ao vermos em Belíssima
a harmoniosa, comedida e precisa decupagem da orquestra,
recheada de planos-detalhe centrados no desenho e nas
formas dos instrumentos musicais intercalados com uma
serie de planos médios dos músicos, não
imaginaríamos que no seu filme seguinte Visconti
colocaria logo nos seus primeiros segundos a opulência
e a suntuosidade da ópera Il Trovatore
de Giuseppe Verdi. Simplicidade, despojamento versus
o exagero, o transbordante e o espetacular. Essas duas
expressões, aparentemente antagônicas e
em constante conflito, sempre estiveram unificadas e
entrelaçadas por um frágil fio na singular
arte de Luchino Visconti. Mesmo em seus três primeiros
filmes, comumente considerados pertencentes ao movimento
neo-realista – e dos quais Belíssima é
cronologicamente o último –, percebemos que já
estão ali entranhados em suas formas o refinamento
e o apurado senso estético de um peculiar artista-esteta
que não poderia de forma alguma ficar muito tempo
preso aos preceitos de qualquer escola. Luchino Visconti
sempre foi muito maior que o neo-realismo e Belíssima
muito mais que uma continuidade de seus filmes anteriores
(Obsessão e A Terra Treme), muito
mais que uma simples obra de transição
entre duas possíveis distintas fases de sua carreira.
O filme é, acima de tudo, um claro manifesto
de reavaliação do movimento neo-realista.
Um ambiente desconhecido e pouco familiar ao mundo aristocrático
do qual Visconti faz parte é escolhido novamente
como objeto de captura de suas lentes: as vilas e os
cortiços da classe média baixa romana.
Visconti nos narra com destreza e poesia a estória
de Magdalena Cecconi, interpretada de forma absolutamente
magistral por Anna Magnani. Morando em uma casa que
é invadida todas as noites pelas luzes e pela
vibração trêmula de uma tela cinematográfica,
já que de seu quintal é possível
assistir aos filmes exibidos pelo cinema ao ar livre
do lado. Essa tela a nutre com o glamour e a magnitude
do melhor cinema escapista hollywoodiano, que ela sonha
em utilizar como uma ponte que irá tirá-la
da atual pobreza e a conduzirá para uma vida
de encantos e esplendor. Mas para concretizar o seu
desejo Madalena precisará de uma ferramenta que,
elaborada e manuseada por ela, tornará mais fácil
o seu aceso a essa incrível "fábrica
de ilusões", e essa ferramenta será
justamente a sua pequena filha Maria.
Inconscientemente disposta a corromper a inocência
da filha, ela a apresentará a um mundo cruel
onde está acentuada de forma assustadora a competição
e a insaciável sede pela fama. Para sobreviver
e para se destacar nesse ambiente é preciso se
dedicar integralmente a ele e até mesmo se escravizar,
obedecendo cegamente às suas severas regras.
Submetida a uma serie de humilhações,
Maria é então obrigada a decorar versinhos,
a se vestir e a se portar de maneira especial. A menina
tenta de sua forma se comunicar com a mãe e expressar
o que está sentindo diante daquela situação,
porém um grandioso abismo tornará mãe
e filha incomunicáveis – e esse abismo é
exatamente o sonho obstinado de Magdalena. Em uma cena
tocante e densamente dramática, a menina que
acaba mais um dia árduo de busca pela fama é
posta na cama pelos pais e, após ficar sozinha
em seu quarto, expele um melancólico e contido
choro. Maria, a principal vítima e sofredora
das duras conseqüências de um sonho que não
lhe pertence, é ignorada e usada como um ser
que não possui o direito de exprimir seus próprios
sentimentos. Somente quando está só, portanto,
surge o momento propicio para emanar e soltar todas
as suas mágoas. Maria está em uma prisão.
As oposições vida versus cinema, mundo
real versus mundo de fantasia, verdade versus mentira
são acentuadas ao longo da trajetória
de Magdalena e sua filha Maria e estão estreitamente
conectadas à sugestão estética
proposta pelo neo-realismo italiano, configurando-se,
portanto, em provocadores comentários que colocam
em questão o prazo de validade das teorias levantadas
pelos outros pioneiros dessa escola. No final de Belíssima,
quando Anna Magnani está prestes a levar o choque
que a recolocará no "mundo real", surge
o comentário exposto na importante seqüência
ambientada na sala de montagem dos estúdios da
Cinecittá. A montadora revela que no passado
tinha sido chamada para trabalhar como atriz, por ter
o porte condizente ao tipo que estavam procurando, e
que depois de dois ou três filmes nunca mais foi
requisitada e que, portanto, ao invés do glamour
de uma vida de estrela o destino lhe tinha reservado
o escuro das salas de montagem. Ela completa ainda que
para ser um ator é necessário ser um ator
de verdade, e que se você não for realmente
um ator é melhor que busque uma outra profissão.
Está sendo posto em xeque aqui um dos maiores
cânones do neo-realismo – e ocorrendo a valorização
do ator com formação. Na seqüência
final, quando Magdalena, enfim, desiste de seus objetivos
e faz as pazes com o marido através de abraços
e afagos, ela, ouvindo o som que emana do cinema, fala
a seguinte frase: "Esse Burt Lancaster é
mesmo muito simpático". O marido reage como
se isso fosse uma possível recaída da
esposa, ela sorri respondendo que não. Ou seja,
Burt Lancaster é um elemento representante de
um outro mundo, o mundo do cinema, mas de qual cinema?
O cinema onde o cinema é o cinema e não
o mundo. O cinema de que em certa medida Visconti estaria
cada vez mais próximo sem, no entanto, renegar
de alguma forma o seu passado como cineasta. Sua obra
estará a partir daqui fazendo claramente a fusão
e o choque entre esses dois cinemas. Ironia ou não,
o mesmo Burt Lancaster entraria na filmografia de Visconti
e seria anos mais tarde o protagonista de duas de suas
grandiosas obras primas, O Leopardo e Violência
e Paixão.
Estevão Garcia
(DVD Versátil)
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