“A solidão engendra o original,
o belo ousado e surpreendente, o poema. Mas engendra
também o inverso, o desmedido, o absurdo e o ilícito”.
Thomas Mann.
A crítica começa com afirmação perigosa: O Aviador
é a obra-prima de Martin Scorsese. Na cinebiografia
do magnata Howard Hughes, o diretor americano – e o
adjetivo é fundamental – retrata de forma pungente e
violenta a solidão atroz que se abate sobre os sonhadores,
sobre os homens à margem, diferentes, que ousam e que
se arriscam na busca utópica pela grandeza inalcançável.
Através do cinema, das mulheres e da aviação, Hughes
lança-se à caça tanto da perfeição quanto da aceitação
e da segurança (mas em seus próprios termos) dentro
de uma sociedade que, embora dele precise para se mover
à frente, teme-o pela postura agressiva e inovadora
que apresenta: personagem trágico, pois consciente da
impossibilidade de se adequar ao mundo que o cerca,
o anti-herói de Scorsese está condenado a viver no isolamento
de sua mente obsessiva e paranóica. No entanto, ao invés
de se deter na densidade psicológica do protagonista,
como em Táxi Driver ou Touro Indomável,
o cineasta privilegia a superfície, radicalizando o
afresco narrativo já visto em Gangues de Nova York,
no qual o acúmulo dos acontecimentos que envolvem o
jovem tycoon serve para expressar amálgama de
idéias acerca de uma América romântica, visionária e
empreendedora, que acaba digerida, no caminho do futuro,
pelas práticas comerciais monopolistas, pelo dirigismo
corrupto do Estado e pela supremacia das grandes corporações.
Em A Dócil, o anti-herói de Dostoiévski alega
não ser meeiro da felicidade, que quer sempre tudo ou
nada. Howard Hughes, em O Aviador, também: transtornado
pelo pavor aos germes, o anti-herói de Scorsese, trancafiado
na sala de projeção onde assiste a O Proscrito
(The Outlaw, faroeste sobre S-E-X-O que produz),
diz que gosta do deserto pois, apesar de seco, ele é
limpo. A frase, mais adiante, encontra ressonância no
diálogo de Hughes com Ava Gardner, para quem nada é
limpo, embora todos façam o melhor que podem. Para complexificar
a teia discursiva criada pelo roteiro de John Logan,
as referências à limpeza remetem à mãe do magnata, a
qual lhe ensina, ainda criança, que ele não está a salvo,
assim como ao plano borgiano em que o protagonista,
frente a frente com o passado, observa o então menino
a declarar todos os objetivos que perseguirá ao longo
da vida, e os quais o agora homem de meia-idade de fato
alcançou, com (ou sem) sucesso.
Não somente o deserto, como também os céus, o cinema
e as mulheres (sobretudo a igualmente desajustada Katharine
Hepburn), encarnam, para Howard Hughes, o ideal de pureza
sempre perseguido, mas jamais encontrado, posto que
significam os territórios selvagens ainda não conquistados
pelo homem e, em conseqüência, propícios a empreendimentos
fundadores de novas coordenadas. Scorsese mostra Hughes
como o último dos pioneiros, herdeiro direto e legítimo
dos americanos que, durante o século XIX, marcharam
em direção ao Oeste a fim de desbravá-lo. Assim, enquanto
filme que explora as fronteiras da civilização e os
limites da ação individual, O Aviador deve cada
plano a John Ford, cujos personagens marginais, rebeldes
e insubmissos se sacrificam em prol da comunidade para
que a Ordem, da qual eles mesmos terminam expulsos,
possa se estabelecer: Tom Doniphon, em O Homem que
Matou o Fascínora, que ajuda o recém-chegado Ranson
Stodard, embora saiba que este aponta para o fim da
era dos cowboys e dos pistoleiros, ou Ethan Edwards,
em Rastros de Ódio, que, à procura da sobrinha
raptada pelos comanches, tenta reconstruir a família
na qual ele não tem mais lugar.
John Ford, mas também Luchino Visconti (e Thomas Mann):
se Gustav Von Aschenbach, em Morte em Veneza,
vislumbra em Tadzio a Beleza que a arte não pode capturar
ou expressar, Howard Hughes, em O Aviador, visualiza,
nos objetos de paixão – o cinema, as mulheres e os aviões
–, a Pureza que lhe permite o risco, a ousadia (é questão
de engenharia, segundo ele – nada mais perfeito que
a matemática, nada mais cristalino que os números).
Porém, ao contrário de Aschenbach, Hughes não se enclausura
na introspecção, e sim projeta seus sonhos grandiloqüentes
para o mundo exterior, com o intuito de tomar à força
o poder, a glória e a liberdade que o meio social conservador
lhe nega. No Technicolor de duas faixas, numa América
tão romântica quanto ele, o protagonista não hesita
seja em apostar a fortuna da família no megalomaníaco
Hell’s Angels, filma mais caro da época, cuja
produção consumiu quatro anos e envolveu a maior frota
de aviões particulares do mundo, seja em namorar Hepburn,
trazendo-a, no céu, na mansão ou nos campos de golfe,
para seu isolamento, seja em montar durante décadas
avião com o único propósito de bater o recorde de velocidade,
seja em comprar a TWA a fim tanto de baratear as viagens
para o cidadão comum dentro dos EUA, quanto de estabelecer
rotas globais que cruzem o Atlântico.
As duas faixas se transformam em três quando entra em
cena Juan Trippe, presidente da Pan Am que, por intermédio
do corrupto senador Brewster, articula no Congresso
o monopólio da aviação intercontinental, a fim de barrar
a escalada da TWA de Hughes. As maquinações políticas
para aprovar o projeto de lei de Brewster (escrito,
na verdade, pelos executivos da Pan Am), bem como as
disputas comerciais delas decorrentes, coincidem com
a intensificação das fobias do jovem tycoon. Porém,
mais determinante para a descida ao inferno de Howard
Hughes é a traição de Katharine Hepburn, única pessoa
em que, de fato, ele confiou (a ponto de dividir com
ela a mesma garrafa de leite, em inusitada e tocante
declaração de amor) – enganado pela atriz, que lhe prometera
assumir a direção, a queima das roupas marca o fim da
inocência do anti-herói e o mergulho progressivo na
loucura, na paranóia e na solidão. Trata-se, tanto o
entrevero com a Pan Am quanto a separação de Hepburn,
do conflito entre o mundo idealizado pelo magnata e
a realidade objetiva, a qual ele despreza (o detalhe
de usar somente tênis) e com a qual não consegue interagir
(o medo dos germes, a surdez, o incômodo com a fama).
Há Howard Hughes demais em Howard Hughes, que se basta
a si mesmo: aceitação que busca – como se integrar,
através de Hell’s Angels, à Hollywood, para não
retornar à fábrica de brocas em Houston – passa necessariamente
por subjugar a sociedade aos seus próprios desejos e
caprichos, e não o inverso.
Scorsese aposta, em O Aviador, na onipresença
de Howard Hughes, de sorte que não há plano em que Leonardo
Di Caprio (extraordinário) não apareça. Na narrativa
não linear do filme (embora ordenada temporalmente),
o cineasta abandona o tão celebrado aprofundamento psicológico
de Táxi Driver e O Touro Indomável, o
qual contém o ranço da relação simplista entre causa
e efeito, para adotar a justaposição livre, na superfície,
da multiplicidade de temas – que não decorrem uns dos
outros, mas que se entrelaçam e se interpenetram –,
os quais proporcionam a construção dramática do anti-herói.
Como conseqüência do afresco montado, no qual partes
independentes entre si unem-se para formar o painel
completo, Martin Scorsese anula a distinção entre figura
e fundo, entre personagem e contexto: Hughes é a América,
ou pelo menos os EUA da livre-iniciativa, da livre-concorrência,
da velocidade, dos arroubos desmedidos, da juventude,
das aventuras de conquista, da inovação e do pioneirismo.
Com o nascimento, no pós-Segunda Guerra, da nação corporativa,
chega o momento do produtor independente que desafia
o studio system hollywoodiano, do apaixonado
que projeta as próprias aeronaves, retirar-se do campo
de batalha, sem antes enfrentar o circo armado por Brewster,
na comissão congressual, para acusá-lo (antecipando
a caça às bruxas do McCarthismo), ou fazer com que o
Hércules, maior avião do planeta, levante vôo, calando
a boca dos críticos, a despeito de todas as doenças
que já o afligem.
O espetáculo cinematográfico que Scorsese abraça apenas
realça, por contraste, o tom crepuscular e fúnebre de
O Aviador, enorme sinfonia, de infinitas linhas
melódicas, que se encaminha do allegro para o
adagio. Mesmo que Hughes ainda tente escapar
de seu triste destino, seja comprando a adolescente
Faith Domergue, seja pedindo Ava Gardner repetidas vezes
em casamento (e vigiando-a com 12 aparelhos de escuta),
ele prossegue rumo ao isolamento, por ser único, original
e diferente dos demais. Visionário, Howard Hughes edificou
o futuro que não lhe pertence e do qual não participará,
para um país que não necessita mais de seus sonhos,
os quais, por sua vez, estão impregnados na persona
do anti-herói, como demonstra a seqüência em que a projeção
de Hell’s Angels se funde, indissociável, ao corpo
do alucinado magnata.
Enquanto Jake La Motta, em O Touro Indomável,
afirma a Sugar Ray Robinson que, por mais que apanhe,
não vai cair, ou enquanto Bill the Butcher, em Gangues
de Nova York, prefere morrer a assistir ao surgimento
de um novo EUA, com a imigração irlandesa, Hughes, em
O Aviador, queimado e ensangüentado após a queda
do avião de espionagem em pleno teste, declara, categórico
e com orgulho: “I’m Howard Hughes, the aviator”. Ao
exaltar, com a mesma paixão e ousadia com que seu personagem
defende os seios de Jane Russell para a comissão de
censura, a glória dos derrotados, Scorsese pode bater
no peito e dizer: “I’m Martin Scorsese, the filmmaker”.
No cinema contemporâneo, o maior de todos.
Paulo Ricardo de Almeida
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