O AVIADOR
Martin Scorsese, The aviator, EUA, 2004

“A solidão engendra o original, o belo ousado e surpreendente, o poema. Mas engendra também o inverso, o desmedido, o absurdo e o ilícito”. 
Thomas Mann.

A crítica começa com afirmação perigosa: O Aviador é a obra-prima de Martin Scorsese. Na cinebiografia do magnata Howard Hughes, o diretor americano – e o adjetivo é fundamental – retrata de forma pungente e violenta a solidão atroz que se abate sobre os sonhadores, sobre os homens à margem, diferentes, que ousam e que se arriscam na busca utópica pela grandeza inalcançável. Através do cinema, das mulheres e da aviação, Hughes lança-se à caça tanto da perfeição quanto da aceitação e da segurança (mas em seus próprios termos) dentro de uma sociedade que, embora dele precise para se mover à frente, teme-o pela postura agressiva e inovadora que apresenta: personagem trágico, pois consciente da impossibilidade de se adequar ao mundo que o cerca, o anti-herói de Scorsese está condenado a viver no isolamento de sua mente obsessiva e paranóica. No entanto, ao invés de se deter na densidade psicológica do protagonista, como em Táxi Driver ou Touro Indomável, o cineasta privilegia a superfície, radicalizando o afresco narrativo já visto em Gangues de Nova York, no qual o acúmulo dos acontecimentos que envolvem o jovem tycoon serve para expressar amálgama de idéias acerca de uma América romântica, visionária e empreendedora, que acaba digerida, no caminho do futuro, pelas práticas comerciais monopolistas, pelo dirigismo corrupto do Estado e pela supremacia das grandes corporações.

Em A Dócil, o anti-herói de Dostoiévski alega não ser meeiro da felicidade, que quer sempre tudo ou nada. Howard Hughes, em O Aviador, também: transtornado pelo pavor aos germes, o anti-herói de Scorsese, trancafiado na sala de projeção onde assiste a O Proscrito (The Outlaw, faroeste sobre S-E-X-O que produz), diz que gosta do deserto pois, apesar de seco, ele é limpo. A frase, mais adiante, encontra ressonância no diálogo de Hughes com Ava Gardner, para quem nada é limpo, embora todos façam o melhor que podem. Para complexificar a teia discursiva criada pelo roteiro de John Logan, as referências à limpeza remetem à mãe do magnata, a qual lhe ensina, ainda criança, que ele não está a salvo, assim como ao plano borgiano em que o protagonista, frente a frente com o passado, observa o então menino a declarar todos os objetivos que perseguirá ao longo da vida, e os quais o agora homem de meia-idade de fato alcançou, com (ou sem) sucesso.

Não somente o deserto, como também os céus, o cinema e as mulheres (sobretudo a igualmente desajustada Katharine Hepburn), encarnam, para Howard Hughes, o ideal de pureza sempre perseguido, mas jamais encontrado, posto que significam os territórios selvagens ainda não conquistados pelo homem e, em conseqüência, propícios a empreendimentos fundadores de novas coordenadas. Scorsese mostra Hughes como o último dos pioneiros, herdeiro direto e legítimo dos americanos que, durante o século XIX, marcharam em direção ao Oeste a fim de desbravá-lo. Assim, enquanto filme que explora as fronteiras da civilização e os limites da ação individual, O Aviador deve cada plano a John Ford, cujos personagens marginais, rebeldes e insubmissos se sacrificam em prol da comunidade para que a Ordem, da qual eles mesmos terminam expulsos, possa se estabelecer: Tom Doniphon, em O Homem que Matou o Fascínora, que ajuda o recém-chegado Ranson Stodard, embora saiba que este aponta para o fim da era dos cowboys e dos pistoleiros, ou Ethan Edwards, em Rastros de Ódio, que, à procura da sobrinha raptada pelos comanches, tenta reconstruir a família na qual ele não tem mais lugar.

John Ford, mas também Luchino Visconti (e Thomas Mann): se Gustav Von Aschenbach, em Morte em Veneza, vislumbra em Tadzio a Beleza que a arte não pode capturar ou expressar, Howard Hughes, em O Aviador, visualiza, nos objetos de paixão – o cinema, as mulheres e os aviões –, a Pureza que lhe permite o risco, a ousadia (é questão de engenharia, segundo ele – nada mais perfeito que a matemática, nada mais cristalino que os números). Porém, ao contrário de Aschenbach, Hughes não se enclausura na introspecção, e sim projeta seus sonhos grandiloqüentes para o mundo exterior, com o intuito de tomar à força o poder, a glória e a liberdade que o meio social conservador lhe nega.  No Technicolor de duas faixas, numa América tão romântica quanto ele, o protagonista não hesita seja em apostar a fortuna da família no megalomaníaco Hell’s Angels, filma mais caro da época, cuja produção consumiu quatro anos e envolveu a maior frota de aviões particulares do mundo, seja em namorar Hepburn, trazendo-a, no céu, na mansão ou nos campos de golfe, para seu isolamento, seja em montar durante décadas avião com o único propósito de bater o recorde de velocidade, seja em comprar a TWA a fim tanto de baratear as viagens para o cidadão comum dentro dos EUA, quanto de estabelecer rotas globais que cruzem o Atlântico.

As duas faixas se transformam em três quando entra em cena Juan Trippe, presidente da Pan Am que, por intermédio do corrupto senador Brewster, articula no Congresso o monopólio da aviação intercontinental, a fim de barrar a escalada da TWA de Hughes. As maquinações políticas para aprovar o projeto de lei de Brewster (escrito, na verdade, pelos executivos da Pan Am), bem como as disputas comerciais delas decorrentes, coincidem com a intensificação das fobias do jovem tycoon. Porém, mais determinante para a descida ao inferno de Howard Hughes é a traição de Katharine Hepburn, única pessoa em que, de fato, ele confiou (a ponto de dividir com ela a mesma garrafa de leite, em inusitada e tocante declaração de amor) – enganado pela atriz, que lhe prometera assumir a direção, a queima das roupas marca o fim da inocência do anti-herói e o mergulho progressivo na loucura, na paranóia e na solidão. Trata-se, tanto o entrevero com a Pan Am quanto a separação de Hepburn, do conflito entre o mundo idealizado pelo magnata e a realidade objetiva, a qual ele despreza (o detalhe de usar somente tênis) e com a qual não consegue interagir (o medo dos germes, a surdez, o incômodo com a fama). Há Howard Hughes demais em Howard Hughes, que se basta a si mesmo: aceitação que busca – como se integrar, através de Hell’s Angels, à Hollywood, para não retornar à fábrica de brocas em Houston – passa necessariamente por subjugar a sociedade aos seus próprios desejos e caprichos, e não o inverso.

Scorsese aposta, em O Aviador, na onipresença de Howard Hughes, de sorte que não há plano em que Leonardo Di Caprio (extraordinário) não apareça. Na narrativa não linear do filme (embora ordenada temporalmente), o cineasta abandona o tão celebrado aprofundamento psicológico de Táxi Driver e O Touro Indomável, o qual contém o ranço da relação simplista entre causa e efeito, para adotar a justaposição livre, na superfície, da multiplicidade de temas – que não decorrem uns dos outros, mas que se entrelaçam e se interpenetram –, os quais proporcionam a construção dramática do anti-herói. Como conseqüência do afresco montado, no qual partes independentes entre si unem-se para formar o painel completo, Martin Scorsese anula a distinção entre figura e fundo, entre personagem e contexto: Hughes é a América, ou pelo menos os EUA da livre-iniciativa, da livre-concorrência, da velocidade, dos arroubos desmedidos, da juventude, das aventuras de conquista, da inovação e do pioneirismo. Com o nascimento, no pós-Segunda Guerra, da nação corporativa, chega o momento do produtor independente que desafia o studio system hollywoodiano, do apaixonado que projeta as próprias aeronaves, retirar-se do campo de batalha, sem antes enfrentar o circo armado por Brewster, na comissão congressual, para acusá-lo (antecipando a caça às bruxas do McCarthismo), ou fazer com que o Hércules, maior avião do planeta, levante vôo, calando a boca dos críticos, a despeito de todas as doenças que já o afligem.

O espetáculo cinematográfico que Scorsese abraça apenas realça, por contraste, o tom crepuscular e fúnebre de O Aviador, enorme sinfonia, de infinitas linhas melódicas, que se encaminha do allegro para o adagio. Mesmo que Hughes ainda tente escapar de seu triste destino, seja comprando a adolescente Faith Domergue, seja pedindo Ava Gardner repetidas vezes em casamento (e vigiando-a com 12 aparelhos de escuta), ele prossegue rumo ao isolamento, por ser único, original e diferente dos demais. Visionário, Howard Hughes edificou o futuro que não lhe pertence e do qual não participará, para um país que não necessita mais de seus sonhos, os quais, por sua vez, estão impregnados na persona do anti-herói, como demonstra a seqüência em que a projeção de Hell’s Angels se funde, indissociável,  ao corpo do alucinado magnata.

Enquanto Jake La Motta, em O Touro Indomável, afirma a Sugar Ray Robinson que, por mais que apanhe, não vai cair, ou enquanto Bill the Butcher, em Gangues de Nova York, prefere morrer a assistir ao surgimento de um novo EUA, com a imigração irlandesa, Hughes, em O Aviador, queimado e ensangüentado após a queda do avião de espionagem em pleno teste, declara, categórico e com orgulho: “I’m Howard Hughes, the aviator”. Ao exaltar, com a mesma paixão e ousadia com que seu personagem defende os seios de Jane Russell para a comissão de censura, a glória dos derrotados, Scorsese pode bater no peito e dizer: “I’m Martin Scorsese, the filmmaker”. No cinema contemporâneo, o maior de todos.

Paulo Ricardo de Almeida