A SENTINELA
Arnaud Desplechin, La Sentinelle, França, 1992

A aurora da década de 90 viu um mundo ligeiramente diferente daquele a que estávamos habituados por 50 anos. A queda do muro ao invés de levantar poeira, assinalou a decadência definitiva de um certo modus operandi no qual o destino do mundo era sutilmente disposto por acordos e conflitos invisíveis. Deixou tudo aparentemente mais visível, mas nem por isso mais acessível ou influenciável, ao contrário. Se na anedota contada na reunião diplomática no início de A Sentinela, sobre Churchill e Stalin dividindo entre si os países do leste europeu, dispondo do futuro de milhares de homens como meras peças de um joguete de estratégia, temos idéia do passado recente deste mundo, que parece "ter sido sonhado" por poucos homens e vivido por muitos, no desenrolar do filme percebemos um mundo agora sonhado por menos homens ainda e efetuado praticamente sem negociações.

Na guerra unipolar aquecida por adversidades a tudo aquilo que não for o estabelecido pelos países centrais, Mathias se sente perdido. Filho de diplomata que serviu na Alemanha, como adido militar na fronteira, ele é francês, mas nem tanto. Não compartilha as vicissitudes dos meios em que está inserido, seja a escola de medicina legal, seja o conluio de diplomatas conhecidos seus, que inclui sua irmã, Jean-Jacques, dono de uma efetiva agressividade fantasiada de simpatia e Bleicher, seu colega de apartamento, um cínico canalha. Não exibe os mesmos trejeitos, expectativas e aspirações de seus conterrâneos. Ele é o sem-lugar, atirado de um lado para o outro como brinquedo, na intriga de espionagem sutil, mas violenta, perpetrada por estes que não aceitam seu caminho profissional e pessoal. Mathias não sabe o que acontece à sua volta, quais as motivações daqueles franceses em busca do suposto espião russo que o havia interrogado quando da sua detenção no trem rumo a Paris. Ele é a todo tempo hostilizado. Após a viagem, ao abrir sua mala, descobre uma cabeça mumificada. Do choque e da repugnância iniciais, ele vai se apegando àquele desconhecido, se envolvendo e se preocupando cada vez mais com sua memória. Quer enterrar o morto, dar-lhe um descanso digno, quer descobrir quem era este homem que agora é o único a lhe fazer companhia, o que sofreu, como morreu. Como uma sentinela, na fronteira entre mundos – o dos vivos e o dos mortos, o dos franceses e o dos estrangeiros – sem viver propriamente, Mathias se entrega, dedicado, a uma atenção redobrada aos menores movimentos, às mais improváveis suspeitas de que algo pode estar para acontecer.

Sofrendo o seu constante não-pertencimento, as dores que varre pra baixo do tapete, as agressões disfarçadas que lhe são desferidas com regularidade, Mathias vai se isolando aos poucos, alimentando neuroses, semeando a loucura. Mas Desplechin o trata com frieza. Seco em sua mise-en-scéne, ele cria uma atmosfera dura que preenche todo o filme, deixando-nos sem nenhum espaço aconchegante para servir de abrigo. A morte caminha ao lado o tempo todo, na cabeça que Mathias disseca e investiga, nas pequenas ameaças discretas e inominadas que permeiam as relações e na sombra dos jogos velados de espionagem. O Primeiro Mundo pós-Guerra Fria não é um lugar acolhedor. Na posição de quem tudo decide acerca do restante do mundo, não deixa espaço para existências livres ou simplesmente não-adequadas aos menores detalhes previstos. Congela, paralisa, tritura.

Filme contaminado por tudo que habita suas imagens, seja o jogo de ocultamento (nunca se sabe exatamente o que está em jogo nas conversas e estratégias enigmáticas dos diplomatas-espiões, que acontecem em relances incompletos e fugidios), seja a sensação de hostilidade permanente (a fotografia que tende para o cinza, o azul e o verde, os planos descritivos, o não-envolvimento com Mathias), A Sentinela cria para o espectador um certo estado desagradável de intensa recepção das sensações emitidas pelas situações pelas quais passa o protagonista. Elegante e preciso na direção, Desplechin faz um primeiro filme intrigante e curioso, que afeta com sua emotividade controlada e mórbida e desperta o interesse para uma obra ainda inédita no circuito brasileiro.


Tatiana Monassa