A
aurora da década de 90 viu um mundo ligeiramente
diferente daquele a que estávamos habituados
por 50 anos. A queda do muro ao invés de levantar
poeira, assinalou a decadência definitiva de um
certo modus operandi no qual o destino do mundo
era sutilmente disposto por acordos e conflitos invisíveis.
Deixou tudo aparentemente mais visível, mas nem
por isso mais acessível ou influenciável,
ao contrário. Se na anedota contada na reunião
diplomática no início de A Sentinela,
sobre Churchill e Stalin dividindo entre si os países
do leste europeu, dispondo do futuro de milhares de
homens como meras peças de um joguete de estratégia,
temos idéia do passado recente deste mundo, que
parece "ter sido sonhado" por poucos homens
e vivido por muitos, no desenrolar do filme percebemos
um mundo agora sonhado por menos homens ainda e efetuado
praticamente sem negociações.
Na guerra unipolar aquecida por adversidades a tudo
aquilo que não for o estabelecido pelos países
centrais, Mathias se sente perdido. Filho de diplomata
que serviu na Alemanha, como adido militar na fronteira,
ele é francês, mas nem tanto. Não
compartilha as vicissitudes dos meios em que está
inserido, seja a escola de medicina legal, seja o conluio
de diplomatas conhecidos seus, que inclui sua irmã,
Jean-Jacques, dono de uma efetiva agressividade fantasiada
de simpatia e Bleicher, seu colega de apartamento, um
cínico canalha. Não exibe os mesmos trejeitos,
expectativas e aspirações de seus conterrâneos.
Ele é o sem-lugar, atirado de um lado para o
outro como brinquedo, na intriga de espionagem sutil,
mas violenta, perpetrada por estes que não aceitam
seu caminho profissional e pessoal. Mathias não
sabe o que acontece à sua volta, quais as motivações
daqueles franceses em busca do suposto espião
russo que o havia interrogado quando da sua detenção
no trem rumo a Paris. Ele é a todo tempo hostilizado.
Após a viagem, ao abrir sua mala, descobre uma
cabeça mumificada. Do choque e da repugnância
iniciais, ele vai se apegando àquele desconhecido,
se envolvendo e se preocupando cada vez mais com sua
memória. Quer enterrar o morto, dar-lhe um descanso
digno, quer descobrir quem era este homem que agora
é o único a lhe fazer companhia, o que
sofreu, como morreu. Como uma sentinela, na fronteira
entre mundos – o dos vivos e o dos mortos, o dos franceses
e o dos estrangeiros – sem viver propriamente, Mathias
se entrega, dedicado, a uma atenção redobrada
aos menores movimentos, às mais improváveis
suspeitas de que algo pode estar para acontecer.
Sofrendo o seu constante não-pertencimento, as
dores que varre pra baixo do tapete, as agressões
disfarçadas que lhe são desferidas com
regularidade, Mathias vai se isolando aos poucos, alimentando
neuroses, semeando a loucura. Mas Desplechin o trata
com frieza. Seco em sua mise-en-scéne, ele cria
uma atmosfera dura que preenche todo o filme, deixando-nos
sem nenhum espaço aconchegante para servir de
abrigo. A morte caminha ao lado o tempo todo, na cabeça
que Mathias disseca e investiga, nas pequenas ameaças
discretas e inominadas que permeiam as relações
e na sombra dos jogos velados de espionagem. O Primeiro
Mundo pós-Guerra Fria não é um
lugar acolhedor. Na posição de quem tudo
decide acerca do restante do mundo, não deixa
espaço para existências livres ou simplesmente
não-adequadas aos menores detalhes previstos.
Congela, paralisa, tritura.
Filme contaminado por tudo que habita suas imagens,
seja o jogo de ocultamento (nunca se sabe exatamente
o que está em jogo nas conversas e estratégias
enigmáticas dos diplomatas-espiões, que
acontecem em relances incompletos e fugidios), seja
a sensação de hostilidade permanente (a
fotografia que tende para o cinza, o azul e o verde,
os planos descritivos, o não-envolvimento com
Mathias), A Sentinela cria para o espectador
um certo estado desagradável de intensa recepção
das sensações emitidas pelas situações
pelas quais passa o protagonista. Elegante e preciso
na direção, Desplechin faz um primeiro
filme intrigante e curioso, que afeta com sua emotividade
controlada e mórbida e desperta o interesse para
uma obra ainda inédita no circuito brasileiro.
Tatiana Monassa
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