ANOS 80: ESQUIZOFRENIA DA VEZ

Há um ano atrás trabalhei um artigo que tentava dar conta de um eixo esquizofrênico nas formas, dentro do cinema nos apresentado em 2003. Na ocasião, predominava uma forte influência do cinema de Hong Kong (maior expoente sendo Tsui Hark), com diversos modos de se relacionar e responder a essas influências. 2004 foi um ano diferente em certo modo: se aconteceu uma dupla de filmes que é o ápice daquela saudável esquizofrenia, os Kill Bills de Tarantino, mesmo os filmes de ação apontaram para um caminho menos oriental, optando muitas vezes pela ação menos encenada. Mas de todas as possíveis tendências do cinema americano, sobretudo o comercial, durante o ano de 2004, uma parecia retornar constantemente para as telas: os anos 80. Uma década refletida sobretudo na forma, nas cores, na encenação, no pôr-em-cena de tantos cineastas. Mas também um interesse em rever conceitos, morais e olhares de um momento do cinema – pois é a década de 80 enquanto cinema (e americano) que está diretamente em pauta –: um sentimento revisionista.

Interessante ver, portanto, que embora essa revisão seja presa à cinematografia do período específico de um país, ela atinge em certo modo uma variante interessante de gêneros e estilos. Desde o retrabalhar de obras específicas do período, como em Show de Vizinha-Negócio Arriscado ou De Repente 30-Quero Ser Grande, até relembrar um espírito meio new age do momento, em filmes como Monster e Roubando Vidas, tendo – para além do emular de cores e culturas dos anos 80 – algo de musical, como se funcionassem num ritmo dançante-toda-vida. É preciso ver também, é claro, que se muitos destes filmes mostraram a tendência pelo repensar e o reviver aquele momento, muitos exercem também um tipo muito estranho nessa relação, quase uma nostalgia, sobretudo no filme de Gary Winnick, De Repente 30, em que se desenvolve um perigoso jogo de reflexão acerca da imagem-sociedade americana, um misto de desejo e repulsa por aquele momento. Show de Vizinha, de Luke Greenfield, lida com algumas idéias em comum com o filme de Winnick, mas Greenfield tem muito mais talento e, principalmente, visão ao transpor um sentimento para seu cinema.

O filme de Winnick escorrega nos meios de passar a dúvida, possivelmente carente de um cineasta mais talentoso. Talvez os modos de colocar o olhar em cena sejam os grandes divisores entre De Repente 30 e Show de Vizinha, com a constatação de que no segundo a relação de prazer de estar se realizando aquele filme brota por todas as imagens. É no que De Repente 30 se mostra mais relapso, a forma, que Luke Greenfield joga seu modo de pensar. E aí por mais que os filmes tenham possíveis pensamentos em comum no discurso, sendo o filme de Greenfield bem mais corajoso em todos eles, sobretudo em se expor ao risco, ao pincelar daquele mundo pessoal vibrante, descaralhado e – principalmente – musical, à entrega total a um material muito estranho para um certo cinema contemporâneo: isso tudo é cinema demais.

É neste sentido que Monster, de Patty Jenkins, se torna um filme interessante, pois embora tenha todos os problemas do mundo, ele visa uma linha de trabalho que se aproxima muito mais da de Show de Vizinha, que é a da entrega ao cinema. Monster quer falar do ser humano sem a menor sutileza, mas, incapaz de ver que a grosseria é uma sutileza, só distribui tabefes, com um recalque muito mal trabalhado – talvez o grande cineasta a trabalhar temas nervosos, e muitas vezes mesmo recalcados, foi Sam Peckinpah, um gênio ao qual Patty Jenkins possivelmente descartou (ou viu como por demais confirmador de suas próprias idéias). De um jeito ou de outro, não é sobre este aspecto que Monster vem a adentrar algum interesse, mas sim por parecer revisitar algo bem mais inusitado que todos estes outros filmes citados: o telefilme oitentista. Seu modo de direção de atores, um estilo quase caminhoneiro de filmar: sua forma parece o tempo inteiro atirar para essas produções que cultuavam uma certa poeira formal de algum valor.

São nestas vias que é bastante possível aproximar Monster e Show de Vizinha, pois optam ambos por uma aproximação com aquele período refletido num modo de encenação, de fazer crer seus cinemas. É certo que Show de Vizinha é cheio de vida e que Monster tem no máximo um sopro que o próprio filme faz questão de implodir, mas observar como Greenfield e Jenkins repensam um cinema que viveu um momento de suas histórias intensamente, e o fato de possibilitarem um próximo passo para aquelas imagens, é de muito valor.

Não se pode fugir do que seriam estes passos, é verdade. Em Monster a idéia da continuidade se dá através de um sentimento de conformismo bastante triste, especialmente por Jenkins realmente parecer acreditar nisto, de um trabalhar de imagens que só servirá a um sentimento fortemente equivocado. Show de Vizinha lida com muitas possibilidades, mas prefere não escolher nenhum caminho exato, explorando tudo que este próximo passo lhe permite ser, do contraditório ao extasiante. O que vale, acima de tudo, é não retornar a este cinema apenas para ser espelho de um momento passado, mas sim continuar andando a partir dele. Nem todos têm este talento, e mesmo que nem todos que o tenham tomem posições a serem defendidas, vale sempre a imagem.


Guilherme Martins