Raridade na história do cinema
brasileiro, que jamais fundou uma tradição de personagens
“salvadores da comunidade” e empenhados em se sacrificar
pelo bem coletivo, Xuxa veste frequentemente o figurino
deste herói. Em uma cinematografia marcada por bandidos
libertários, personagens preocupados em tirar o seu
da reta, tipos impotentes diante de obstáculos e protagonistas
de moral flexível,a estrela sempre buscou ser um referência
de valores e conduta – embora essa pedagogia muitas
vezes sirva a seus interesses (o consumo), não exatamente
ao bem comum. De qualquer forma, um mundo com Xuxa está
protegido, pois, diante do mal, ela sempre estará alerta:
com ela de olhos abertos, os baixinhos podem dormir
sem pesadelos. Xuxa encarna a vigilante da ordem, função
quase inexistente na produção brasileira, talvez porque
o ideal de justiça e organização, na produção cultural
e na cultura da sociedade, tenha pouca credibilidade
entre nós. Talvez.
Xuxa e o Tesouro da Cidade Perdida reafirma e
acentua a condição de heroína da apresentadora-atriz.
Se em dois filmes anteriores ela via duendes, já esboçando
um traço místico da bondade de sua persona, agora o
misticismo é promovido a divindade, mas sem a ruptura
alguma com a razão. Pelo contrário: Xuxa dessa vez é
cientista, e também herdeira de um deus escandinavo.
Sua missão é proteger os segredos sagrados da natureza
para evitar a sua exploração pelo capitalismo sem escrúpulos.
Não deixa de ser irônico que, para uma marca multi-uso
como Xuxa, seu discurso seja anti-capital. Mas a indústria
cultural é esperta o suficiente para incorporar tudo,
a ponto de até colocar sua maior representante como
rebelde anti-neoliberalismo.
Como defensora de certas posturas de cidadania, Xuxa
aqui cria um manifesto ecológico com efeito fabular.
Como quase todas as crianças de seu público (ao menos
no cinema) vivem em áreas urbanas, pregar a preservação
é tão bem intencionado como abstrato, pois a natureza
é mais um significado simbólico para as crianças urbanas,
e menos um dado próximo do dia a dia. No entanto, no
ainda anêmico segmento de filmes brasileiros (em quantidade
e qualidade), defender natureza é alvo certo. Raramente
se buscam questões mais próximas da vivência infantil
urbana – com suas experiências na escola, com os pais
e com os irmãos, com a imaginação e com as ações. Mesmo
em filmes mais complexos, como Menino Maluqinho
e Os Três Zuretas, volta-se a câmera para o interior
e as experiências das crianças urbanas quase não existem
no cinema (com algumas exceções, como o fantasioso Castelo
Rá-Tim-Bum).
Sendo assim, vamos à floresta.
Enquanto protege uma comunidade de selvagens sem contato
com o mundo, a protagonista passeia por marcas outras
do folclore e da cultura internacionalizada. Se a figura
de um Curupira com sotaque mineiro flerta com as raízes,
o roteiro apóia-se sobretudo em Indiana Jones e os Goonies,
sem abrir mão de um segmento cheio de piscadas para
Shakespeare (Sonhos de uma Noite de Verão). No
entanto, ignora, aparentemente, seus vizinhos, Os Trapalhões.
Pois, se algumas das chanchadas modernistas com Renato
Aragão faziam paródias rasgadas com filmes e gêneros
americanos, escancarando sua brasilidade com a auto-risada
da incapacidade de se copiar com perfeição, Xuxa
e o Tesouro da Cidade Perdida não é paródico, mas
mero pastiche de matrizes – buscando a criatividade
nessa limitação de ser igual ao modelo.
Não se pode ignorar que, em seu sexto filme em dois
anos, e após o melhor deles (Irmãos em Fé), Moacyr
Góes começa a dar, finalmente, atenção para a imagem.Há
cuidado mínimo com enquadramentos, iluminação e dinâmica
de cortes, o que dá ao filme uma cara menos rampeira.
Ainda falta muito, porém, para que estes produtores,
roteiristas e diretores mostrem a disposição de colocar
na tela imagens que estimulem o olhar infantil com mais
rigor e frescor estético. A formação do olhar se dá
desde cedo e, ao fazerem seus filmes, os realizadores
poderiam ter isso em mente. Melhorias significativas
só virão, no entanto, quando diretores mais habilidosos,
em um intervalo de seus projetos pessoais, colaborarem
com esse gênero tão mal tratado.
Cléber Eduardo
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