XUXA E O TESOURO DA CIDADE PERDIDA
Moacyr Góes, Brasil, 2004

Raridade na história do cinema brasileiro, que jamais fundou uma tradição de personagens “salvadores da comunidade” e empenhados em se sacrificar pelo bem coletivo, Xuxa veste frequentemente o figurino deste herói. Em uma cinematografia marcada por bandidos libertários, personagens preocupados em tirar o seu da reta, tipos impotentes diante de obstáculos e protagonistas de moral flexível,a estrela sempre buscou ser um referência de valores e conduta – embora essa pedagogia muitas vezes sirva a seus interesses (o consumo), não exatamente ao bem comum. De qualquer forma, um mundo com Xuxa está protegido, pois, diante do mal, ela sempre estará alerta: com ela de olhos abertos, os baixinhos podem dormir sem pesadelos. Xuxa encarna a vigilante da ordem, função quase inexistente na produção brasileira, talvez porque o ideal de justiça e organização, na produção cultural e na cultura da sociedade, tenha pouca credibilidade entre nós. Talvez.

Xuxa e o Tesouro da Cidade Perdida reafirma e acentua a condição de heroína da apresentadora-atriz. Se em dois filmes anteriores ela via duendes, já esboçando um traço místico da bondade de sua persona, agora o misticismo é promovido a divindade, mas sem a ruptura alguma com a razão. Pelo contrário: Xuxa dessa vez é cientista, e também herdeira de um deus escandinavo. Sua missão é proteger os segredos sagrados da natureza para evitar a sua exploração pelo capitalismo sem escrúpulos. Não deixa de ser irônico que, para uma marca multi-uso como Xuxa, seu discurso seja anti-capital. Mas a indústria cultural é esperta o suficiente para incorporar tudo, a ponto de até colocar sua maior representante como rebelde anti-neoliberalismo.

Como defensora de certas posturas de cidadania, Xuxa aqui cria um manifesto ecológico com efeito fabular. Como quase todas as crianças de seu público (ao menos no cinema) vivem em áreas urbanas, pregar a preservação é tão bem intencionado como abstrato, pois a natureza é mais um significado simbólico para as crianças urbanas, e menos um dado próximo do dia a dia. No entanto, no ainda anêmico segmento de filmes brasileiros (em quantidade e qualidade), defender natureza é alvo certo. Raramente se buscam questões mais próximas da vivência infantil urbana – com suas experiências na escola, com os pais e com os irmãos, com a imaginação e com as ações. Mesmo em filmes mais complexos, como Menino Maluqinho e Os Três Zuretas, volta-se a câmera para o interior e as experiências das crianças urbanas quase não existem no cinema (com algumas exceções, como o fantasioso Castelo Rá-Tim-Bum).

Sendo assim, vamos à floresta.

Enquanto protege uma comunidade de selvagens sem contato com o mundo, a protagonista passeia por marcas outras do folclore e da cultura internacionalizada. Se a figura de um Curupira com sotaque mineiro flerta com as raízes, o roteiro apóia-se sobretudo em Indiana Jones e os Goonies, sem abrir mão de um segmento cheio de piscadas para Shakespeare (Sonhos de uma Noite de Verão). No entanto, ignora, aparentemente, seus vizinhos, Os Trapalhões. Pois, se algumas das chanchadas modernistas com Renato Aragão faziam paródias rasgadas com filmes e gêneros americanos, escancarando sua brasilidade com a auto-risada da incapacidade de se copiar com perfeição, Xuxa e o Tesouro da Cidade Perdida não é paródico, mas mero pastiche de matrizes – buscando a criatividade nessa limitação de ser igual ao modelo.

Não se pode ignorar que, em seu sexto filme em dois anos, e após o melhor deles (Irmãos em Fé), Moacyr Góes começa a dar, finalmente, atenção para a imagem.Há cuidado mínimo com enquadramentos, iluminação e dinâmica de cortes, o que dá ao filme uma cara menos rampeira. Ainda falta muito, porém, para que estes produtores, roteiristas e diretores mostrem a disposição de colocar na tela imagens que estimulem o olhar infantil com mais rigor e frescor estético. A formação do olhar se dá desde cedo e, ao fazerem seus filmes, os realizadores poderiam ter isso em mente. Melhorias significativas só virão, no entanto, quando diretores mais habilidosos, em um intervalo de seus projetos pessoais, colaborarem com esse gênero tão mal tratado.  

Cléber Eduardo