Que ninguém se engane: A
Volta ao Mundo em Oitenta Dias é um filme de Jackie
Chan. Por mais que as cenas de luta sejam parcimoniosas,
mais ainda que em seus últimos filmes ocidentais, é
ele que dá cara e cor ao filme – além de ser o produtor
executivo, claro. A mesma mescla de humor e ação que
caracterizava seus filmes em Hong Kong se encontra aqui,
ainda que tenhamos uma sensível predominância do humor.
O besteirol, que já dava as caras em Project A (talvez o mais celebrado dos filmes chineses de Jackie Chan),
encontra-se maturado. Com a ajuda dos velhos capangas
de zombaria (Owen e Luke Wilson, atores que parecem
sentir o cheiro da diversão), que fazem uma participação
hilária, e de parceiros remotos como Sammo Hung (também
diretor e coreógrafo de vários de seus filmes, além
de amigo pessoal), ou inusitados como Arnold Schwarzenegger
e Macy Gray, o já cinquentão ator faz Lau Xing, morador
de um povoado chinês que vai à Inglaterra recuperar
o Buda de jade que lhe havia sido roubado. Ele se envolve
com Phileas Fogg, um inventor que pretende dar a volta
ao mundo para ganhar uma aposta.
Comparar este novo filme com a divertida versão de Michael
Anderson e sua enorme concentração de astros é bobeira,
ainda que as semelhanças sejam muitas. A versão de Jackie
Chan é nada menos do que uma atualização das velhas
aventuras da Disney (A
Ilha no Topo do Mundo ou Vinte
Mil Léguas Submarinas, de Richard Fleischer, por
exemplo), mescladas com o pastelão de um Blake Edwards
(A Corrida do Século), e apimentado com uma pequena
dose de malícia. Se o resultado fica aquém do último,
está no mesmo nível das primeiras, com o ônus de que
consegue se comunicar muito mais facilmente com a platéia
de hoje. O que, tendo visto certos remakes conservadores
recentes, não é pouco.
Na nova versão, a moeda corrente é a do referencial.
Temos uma enormidade de citações (mais uma marca inequívoca
do cinema de Jackie Chan e do cinema atual), e um nonsense
que se tornou muito mais palatável a partir das comédias
do trio Zucker-Abrahams-Zucker. Há inclusive uma citação
de Apertem os
Cintos o Piloto Sumiu na clássica cena do vôo sobre
o Atlântico. Ou, quando eles estão em um ateliê em Paris
e Phileas Fogg zomba da falta de talento desses impressionistas,
para espanto de Van Gogh. E por aí vai, tudo em ritmo
de Irmãos Marx: uma piscadela pode tirar o espectador
de uma brincadeira com algum filme ou fato histórico.
O grande momento do filme é a passagem pelo povoado
chinês. Lau Xing revela-se um dos Dez Tigres da famosa
lenda chinesa, e Sammo Hung aparece como Wong Fei-Hung,
personagem imortalizado por Jet Li na obra-prima Era Uma Vez na China (que teve quatro seqüências).
A música que ouvimos nessa hora é a mesma que permeia
os filmes da série, mas a ouvimos bem ao fundo – como
uma citação que se envergonha de sua própria obviedade,
mas que não perde sua graça. A Volta ao Mundo em 80 Dias, por sua vez, é um filme que não se envergonha
de suas próprias limitações, tirando delas sua essência,
sua razão de ser.
Sérgio Alpendre
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