Há um peculiar movimento no
cinema americano, que existe, aliás, há décadas: refazer
filmes estrangeiros para apresentá-los ao público americano.
Da refilmagem de Os Sete Samurais de Akira Kurosawa
(Sete Homens e Um Destino) à de Asas do Desejo
de Wim Wenders (Cidade dos Anjos) temos um amplo
espectro que nos permite levantar questões relativas
à relevância de um produto cultural frente a uma cultura-produto
– entre outras, a da tolerância ao estrangeiro. Mas
o que temos em O Grito, parece ainda mais estranho
e curioso: o próprio diretor e roteirista do original
(Ju-on: The Grudge) dirige a refilmagem, seguindo
um roteiro escrito por outra pessoa a partir do seu
filme. E o que parece suscitar todo esse movimento não
é a rejeição de marcantes traços culturais estrangeiros,
muito pelo contrário.
Tal como havia acontecido com O Chamado (adaptado
de The Ring), o que motiva a incorporação do
filme original de Shimizu ao conjunto da produção americana
atual é o interesse que suscitam aspectos específicos
da cultura japonesa. No caso, o terror japonês e seu
imaginário. O Japão soube configurar de forma tão eficiente
seus produtos culturais que, ao serem eventualmente
exportados (mesmo que não de forma sistemática, por
terem traços de uma cultura fechada e bastante voltada
pra si mesmo), acabaram se tornando símbolos de uma
cultura-produto. O que se consome hoje no Ocidente relativo
ao Japão, em grande parte, não são produtos culturais
genuinamente japoneses e sim produtos que levam o “selo”
da “cultura japonesa”. Isto passou a ser uma qualidade
que dá “marca” a alguns produtos.
No caso de O Grito, temos um filme de estrutura
um tanto debilitada, que incorpora em seu roteiro cenas
do original, para fazer uma colagem que ele tenta organizar
a partir de alguns argumentos explicativos, e cuja grande
atração consiste exatamente na apresentação de um imaginário
fantasmagórico japonês ao público ocidental. Se Ju-on:
The Grudge opta pela fragmentação do que seria usualmente
um “todo” narrativo, apresentando os personagens em
blocos relacionados entre si por uma linha narrativa
principal, mas desordenados no tempo e no espaço, O
Grito parece não optar por nada, amontoando suas
seqüências de forma um tanto caótica e resultando num
filme de terror barato, que só existe para viabilizar
sustos e imagens medonhas.
Mas o que talvez chame mais atenção no filme seja realmente
tudo aquilo que o configura como uma refilmagem para
o público americano. Afinal, o filme se passa no Japão
e os personagens principais são todos americanos morando
no Japão. Cabe perguntar: o que então faz de um filme
de um diretor japonês trabalhando com o imaginário japonês
em locações japonesas, um filme americano? Quais os
motores da identificação? Aceitando tal fator como algo
caro aos moldes hollywoodianos, poderíamos nos perguntar:
americanos, a despeito de toda a configuração da linguagem
cinematográfica, só se identificam com americanos? Será
esse o motivo de tanto choro pelas vítimas do 11 de
setembro e de tão pouca preocupação com as guerras deflagradas
ao redor do mundo pelo exército estadunidense? O fator
intercultural de O Grito parece se resumir a
este caráter de identificação, porque nada no filme
justifica a presença de tantos americanos envolvidos
num mesmo acontecimento, e em nenhum momento alguma
espécie de diálogo intercultural se dá propriamente.
Os fantasmas japoneses não são mostrados como um dado
sobrenatural a assombrar o campo do real, mas um fator
cultural dado. Na linha dos argumentos explicativos,
há a fala de um dos policiais à protagonista explanando
sobre a maldição que acomete os espíritos assassinados
brutalmente. Ora, será que é algo usual no Japão os
espíritos de assassinados atormentarem os vivos? Esta
“explicação” é complementada pela mal-arranjada justificativa
do massacre que origina toda a maldição: o marido mata
a mulher e o filho, por descobrir que ela estava apaixonada
por um estrangeiro e mantinha inclusive um diário onde
discorria sobre sua paixão.
Em Ju-on: The Grudge, há poucas cenas do atormentado
marido e nenhuma grande ilustração do que teria se sucedido
ali: só se sabe que o corpo da mulher foi encontrado
na casa e o menino foi dado como desaparecido. Temos,
inclusive, uma idéia clara de que é a dor inextinguível
de ambos que motiva tanto sofrimento, e não apenas um
rancor e um desejo de vingança – como dá a entender
a versão americana – pois a mulher aparece algumas vezes
sem sua fisionomia monstruosa e nada faz com aqueles
que lhe devolvem o olhar. Seu desejo é de ser vista,
de ser compreendida em sua dor, de ser libertada de
alguma forma. Por isso, Rika, a protagonista, é poupada;
ela soube olhar (o que não é perdoado pelo marido assassino).
Porque, afinal, uma história de fantasmas é uma história
sobre visibilidade. Não é à toa que o filme termina
com um close dos olhos da fantasma, que se abrem, olhando
para a câmera. Isto de fato se exacerba neste filme,
além de tudo, por ser questão de fazer uma violência
brutal cometida em família ser enxergada – de possibilitar
que todo o ódio sentido receba algum afeto. Shimizu
parece querer chamar a atenção da sociedade japonesa
para fatos de violência familiar, que de forma geral
recebem vista grossa. E isto está totalmente impresso
no trabalho com o fora de campo, um fator dado em qualquer
filme de terror/suspense, mas que aqui ganha atenção
especial. Há momentos em que nada se vê ou se escuta,
outros em que só se escuta, outros em que se vê apenas
uma parte e se escuta e ainda outros em que subitamente
se vê tudo.
Todos estes dados que atraem a atenção para o original,
no entanto, não estão presentes em O Grito. Toda
a situação criada não é explorada no sentido do humano
(seja para os fantasmas, seja para os vivos), e, portanto,
o fora de campo é utilizado apenas com a intenção de
gerar medo. O filme segue sem cuidado em construir algo
para seus personagens, seja relativo à dor, ao sofrimento
e ao ódio, seja ao medo profundo e esforço de compreensão
do que se dá. Assim, O Grito resulta vazio e
oco, sem densidade alguma. Passa como um decalque mal-engendrado
de algo que poderia, realmente, gerar algum interesse.
Tatiana Monassa
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