THE BLUES: THE ROAD TO MEMPHIS
Richard Pearce, EUA, 2003

Lendas vivas, B.B. King, Bobby Rush, Rosco Gordon e Ike Turner retornam a Memphis, no Tennessee, para concerto patrocinado pela sociedade para preservação e memória do blues. Acompanhados pelas lentes de Richard Pearce, eles são os protagonistas do nostálgico The Road to Memphis, episódio da série The Blues que, se acerta na crítica às transformações mercadológicas que extinguem, pouco a pouco, a matriz da música norte-americana (substituída pela massificação do rock and roll), peca nas conexões frágeis que estabelece entre as biografias dos personagens e a realidade sócio-política da qual emergiram, diminuindo, assim, o impacto dramático e emocional do filme.

Rosco Gordon caminha pela Bell Street, antiga ilha de prosperidade negra no Tennessee segregacionista. Outrora tomada por clubes que tocavam tanto blues quanto jazz, a Bell Street de hoje é agora preenchida por shoppings centers e redes de fast food, para olhar atônito e pessimista do blueseiro. Nas calçadas, Gordon jamais é reconhecido pelos inúmeros turistas (que, paradoxalmente, visitam a rua devido a sua importância histórica para o blues), da mesma forma que, amargo, duvida que haja alguns de seus CDs na loja visitada. A seqüência exemplifica, com contundência, a proposta de Richard Pearce em The Road to Memphis: mais do que homenagem aos artistas que forjaram a cultura dos EUA, o documentário expõe cruamente as mudanças econômicas que levam o blues da arte ao espetáculo, da música ao entretenimento massificado, de propulsor da questão racial à atração turística para consumo imediato. Fundamental, assim, torna-se o diálogo entre Ike Turner e Sam Phillips (produtor que "descobriu" Elvis Presley), evidenciando como os brancos incorporaram o blues através do rock e transformaram Memphis, de ponto de virada para a música praticada no Delta do Mississipi, em centro difusor do filho que assassina o pai a fim de lhe roubar os últimos despojos.

Não é só Rosco Gordon, mas também Bobby Rush, que transmite a derrota do blues para o ambiente de negócios generalizado que o absorve. Rush, personagem mais trágico de The Road to Memphis, soa patético em sua persistência musical, ao continuar vagando de cidade em cidade, de show em show, com roupas espalhafatosas e anacrônicas. Ele, Gordon, B.B. King e o demais que se apresentam à objetiva de Pearce são meros fantasmas, espectros os quais relembram os tempos gloriosos do blues, mas que vivem (ou antes, sobrevivem) esquecidos pelo público, no limbo dos produtos descartáveis de consumo.

Momentos, por certo, de poderosa melancolia crítica que, no entanto, acabam enfraquecidos pela inépcia do cineasta em construir a dramaturgia que deveria conectá-los às biografias dos homenageados e ao contexto político no qual eles emergiram (década de 50 para Gordon, Turner e King, e 70 para Rush). No caminho a Memphis, para o concerto que reunirá os artistas seguidos pela câmera, Pearce se perde nas subtramas e nos subtemas que preenchem a narrativa, sobretudo quanto à relevância do blues na luta contra o racismo, pois não se cria o contraste necessário entre o tema principal – a morte do blues – e seu contraponto – o período em que a música esteve mais viva. Assim, embora isoladamente tocantes, a visita de B.B. King à rádio WDIA (primeira nos EUA voltada para os negros), bem como a história acerca do show para platéia de maioria branca, ou as lembranças de Ike Turner sobre o nascimento do rock and roll (quando os brancos copiaram o blues tocado pelos negros), não alcançam o escopo emocional das vicissitudes enfrentadas no presente por Roscoe Gordon e por Bobby Rush, provocando claro desequilíbrio entre as forças dramáticas que se chocam para dar sentido ao filme.

Portanto, The Road to Memphis concentra suas qualidades em cenas ou em planos dispersos ao longo da ineficiente narrativa costurada por Richard Pearce: quando Bobby Rush, por exemplo, escuta, ao descer do ônibus, um velho hippie, tão ultrapassado quanto ele próprio, dedilhando o blues ao violão, vê-se que a raiz da música norte-americana, apesar dos pesares, ainda teima em florescer.


Paulo Ricardo de Almeida