Na
primeira seqüência de Piano Blues,
episódio para a série The Blues
feita para a PBS (Public Broadcast System)
e em exibição, no Brasil, pelo canal por
assinatura GNT, Clint Eastwood faz brevíssimo
histórico do piano. De como o instrumento surge
no início do século XVII na Itália,
a partir do cravo; de como é adotado por Bach,
Mozart e Beethoven; e, finalmente, de como continua,
na época atual, determinante para a música
norte-americana. Mais do que a mera descrição
tecnológica do aparelho, está em jogo,
para Eastwood, a maneira pela qual os artistas o utilizaram
e o utilizam: trata-se de enxergar o piano enquanto
meio de expressão através do qual músicos
e mais músicos, não apenas do blues, mas
também do jazz e do rock and roll, influenciam-se
mutuamente, construindo séries de camadas e de
redes a partir das quais se edificam a própria
identidade cultural dos EUA.
Piano Blues fala sobre memórias, sobre
músicos que se lembram de outros músicos,
sobre as influências que tiveram ao longo das
respectivas carreiras, sobre as origens do blues nos
spirituals, no boogie-woogie, no ragtime, no folk. É
o próprio Clint Eastwood quem entrevista seus
convidados, por intermédio de bate-papo informal
em que as lembranças do cineasta se misturam
às dos entrevistados, de sorte que se estabelece,
no filme, não uma investigação
objetiva acerca da História do blues, mas antes
uma busca afetiva das conexões existentes entre
os personagens, ou seja, das relações
microscópicas subjetivas que acabam por forjar
o contexto musical norte-americano, na qual o diretor
se despe da onipotência atribuída ao narrador
a fim de se colocar, a um só tempo, enquanto
simples admirador e como parte integrante do organismo
vivo em que se constitui o blues e, por conseguinte,
suas variações.
Sentado lado a lado de seus ídolos na banqueta
do piano, Clint Eastwood é o catalisador que
permite a Ray Charles, por exemplo, rememorar como,
aos três anos, na Flórida, abandonava as
brincadeiras com os irmãos para ouvir o boogie-woogie
tocado pelo vizinho, o primeiro, de fato, a lhe ensinar
as notas ao piano – e de quem nutre admiração
sincera, por não lhe ter simplesmente enxotado
de sua presença. Desse modo, com perguntas aparentemente
banais, a respeito das influências que sofreram
e das músicas que os marcaram no início,
e com a citação de diversos blueseiros
do passado, Eastwood extrai dos músicos não
palavras sobre si mesmos, mas sim acerca dos outros:
Dave Brubeck, da Califórnia, que lembra de Art
Tatum e o compara, em grandeza, a Oscar Robertson; Dr.
John, de Nova Orleans, que rende homenagem a Professor
Longhair, ou que comenta como o piano de Thelonius Monk
se assemelha ao do Delta do Mississipi.
Flórida, Califórnia, Nova Orleans, Chicago:
na viagem emotiva de Piano Blues, a despeito
das transições geográficas, interessa
a Eastwood, sobretudo, os aspectos de passagem e de
transformação da música embutidos
na jornada pelo país. Assim, a proposta do cineasta
é ver o blues enquanto matéria-prima pulsante
que não apenas dá origem à miríade
de estilos intrínsecos a ele, variantes conforme
o espaço sócio-econômico e o momento
histórico, como também propicia o nascimento
do jazz, do bebop e do rock and roll. Para Clint Eastwood,
o blues é a raiz da música e da cultura
norte-americanas, mas que, ao invés de se fixar
e de se aprofundar no solo, permanece na superfície,
mutante e movente, uma vez que cria sempre novas ligações
entre os homens e a arte, entre períodos de tempo
e contextos sociais os mais diversos, entre os músicos
de hoje e seus heróis do passado, entre aqueles
que escutam e aqueles que tocam (os quais, por sua vez,
são ouvintes dos que os precederam). Entender
o blues como a ponte, de infinitos caminhos e ainda
em construção pela sensibilidade humana,
que conecta o boogie-woogie ao jazz, o gospel ao rock
and roll, no circuito de memórias subjetivas
entrelaçadas ao longo do filme.
O clímax de Piano Blues, não por
acaso, encontra-se na seqüência em que, por
meio da montagem, Eastwood une todos os músicos
citados, cada qual executando ao instrumento seu estilo
particular: é como diz Jay McShann, que nunca
separou o blues do jazz ou do rock, uma vez que a força
da música americana – e dos EUA – está
na diversidade que a alimenta.
Paulo Ricardo de Almeida
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