DOZE HOMENS E OUTRO SEGREDO
Steven Soderbergh, Ocean's twelve, EUA, 2004

Se pinçarmos na carreira de Soderbergh uma cena definidora em relação ao seu cinema, é bem provável que ela saia de um filme sem grande expressão. Lá na primeira metade dos anos 90, quando o diretor se batia entre a vontade de exercitar estilo e o compromisso “sério” que assumira com a imagem em sexo, mentiras e videotape (deveria ele ser o porta-voz da consciência pesada da sociedade performática ou dar vazão à sua capacidade de elaborar novas formas para o velho e bom espetáculo?), o menino protagonista de O Inventor de Ilusões alimentava-se, na falta de comida, das fotografias que recortava de uma revista de culinária. No cenário pós-Depressão do filme, Soderbergh se permitiu representar a verdadeira crise que lhe interessava, não propriamente econômica, mas antes uma crise da imagem. Como ele aprofundaria em Solaris, a imagem sempre corre o risco de tomar o lugar das coisas a que faz referência. Estranha convicção para um cineasta, mas o fato é que a imagem, para Soderbergh, é uma espécie de pecado original.

sexo, mentiras e videotape, seu longa de estréia, de 1989, ganhou Cannes e foi feito no final de uma década em que o cinema americano se lançara a uma vasta reciclagem de iconografias e gêneros, impulsionado tanto pelas novas facilidades tecnológicas quanto pelo desespero nostálgico de não deixar para trás aquele imenso imaginário acumulado por décadas. O filme de Soderbergh ia contra toda essa tendência, assumindo-se, desde as letras minúsculas do título, em tom menor e rechaçando o diálogo com o passado épico do cinema. A partir de então, contudo, o cineasta engasga sucessivamente com seus próprios dilemas. Enquanto Kafka fica no meio termo dessa crise interna e é facilmente pisoteado pelo tempo, Irresistível Paixão, embora fraco, já aponta o desejo conciso de criar estilo dentro de uma matéria ficcional pulp (o filme é uma adaptação de Elmore Leonard, imediatamente posterior a Jackie Brown). Mesmo Erin Brockovich, que se apropria do alcance moral do enredo do western para encenar uma típica batalha jurídica contemporânea (indivíduos versus corporações), pode ser visto como um filme (bem-sucedido na mesma proporção em que Traffic o deixa de ser) sobre a reconstrução vitoriosa de uma imagem – a saber, a da protagonista (Julia Roberts oscarizada) erguida das profundezas da América, e prezando por autenticidade e sinceridade. Full Frontal, por outro lado, retomou essa tensão verdadeiro/falso, cara ao diretor, da pior maneira possível, refluindo no falatório entediante que perpassa o filme – além dos comentários metalingüísticos mais do que surrados.

O que o tempo mostrou, quer se queira ver ou não, foi a habilidade de Soderbergh naquilo a que num primeiro momento ele se recusou com veemência: Onze Homens e um Segredo, um remake, deixou bastante evidente que aquela é a faceta especial do diretor, sua verve realmente atraente e pulsante. E para qualquer dúvida que restasse, a resposta veio agora com a excelente continuação, que, ao incidir precisamente sobre os pontos mais fortes de Onze Homens e um Segredo, reembaralha o jogo e articula ainda melhor suas duas engrenagens principais: o charme (não só das atuações, mas também da mise-en-scène) e a fluidez das ações. Mais ou menos como a personagem de Catherine Zeta-Jones, que arranca um depoimento de Matsui (contratante de um dos roubos de Danny Ocean e cia) sussurrando ao seu ouvido – após o policial holandês ter dito que o homem era “uma pedra” –, Doze Homens e Outro Segredo é um filme sedutor na justa medida em que arranca do espectador uma entrega que ele a princípio pode se negar a oferecer – afinal, nem todos estão acostumados a ir ao cinema ver um filme de assaltos mirabolantes que, no entanto, tem as ações praticamente todas relegadas ao fora-de-quadro.

Ao escolher cuidadosamente aquilo que mostra, e mesmo assim passar a impressão de ser um filme que não está mostrando o que deveria, Doze Homens e Outro Segredo afirma que é preciso se colocar acima da linha da imagem para alcançar uma visibilidade útil, uma mira; é preciso erguer as fundações da mansão em Amsterdã, de modo que a “seta da besta” consiga atravessar a janela e atingir o alvo. Abaixo dessa linha de mira, a imagem se acha esvaziada de qualquer utilidade; contemplativa e antifuncional. Ultrapassando a linha, entretanto, a imagem se torna puramente legível; operacional e anticontemplativa (pressionado o gatilho, ocorre o corte e o roubo em si cai na elipse). Mas na imagem há sempre algo “faltando”, nunca se vê tudo, e essa é uma de suas premissas.

O filme desvia a atenção do espectador, por exemplo, para a relação pessoal entre Rusty (Brad Pitt) e Isabel (Zeta-Jones), e perde de vista seu suposto mote principal. Da mesma forma, o encontro com Matsui não tem outra função além de expor Linus (Matt Damon), que recebe uma atenção especial nesse filme, à situação em que ele testará sua quase ausente habilidade como negociador – chegando ao ponto de, em meio a uma sessão de piadas curtas, citar versos de Emily Dickinson.

Enquanto rouba algumas pinturas famosas, deixando apenas a moldura, o bando de Danny Ocean se oferece às câmeras de segurança da mansão de Night Fox – ou seja, troca-se por imagem – para conseguir realizar o golpe perfeito. Revelar a identidade dos membros do grupo se torna, contrariamente, a maneira ideal de limpar o terreno para a operação-fantasma, a única que não deixa rastros. É tudo encenação, um grande show representacional. Como entrega (literalmente de bandeja) o plano arquitetado para o roubo central de Doze Homens e Outro Segredo, o que está em aprimoramento nessa continuação é um cinema da réplica. E a natureza dessa réplica é inequívoca: o holograma que se substitui à obra de arte. Por isso o filme se constrói num presente por vezes abstrato (no que a montagem é fundamental): o presente, alguém já disse, não é tão real quanto o passado. Os crimes, enquanto estão sendo cometidos, não podem ser mostrados de forma clara, roteirizada; somente depois seus autores podem narrá-lo com alguma organização visual e seqüencial. Vemos Night Fox roubando o “ovo dourado” – que depois se revelará uma réplica – do museu de Roma somente quando ele narra sua ação a Danny e Tess. Seria uma vitória do empreendimento físico, do esforço individual e da disciplina do corpo, mas o filme sabe bem seu caminho de predileção, e concede a vitória ao trabalho em equipe, à operação (menos física do que intelectual) que se esvaiu na poeira, deu-se de forma tão fluida que imperceptível, contando com a ajuda de um homem supostamente morto, o lendário Gaspar LeMarc.

Ao final, LeMarc se revela o pai de Isabel, que o estudou incessantemente enquanto personagem de destaque da história da criminologia moderna, mas pouco o conheceu como pai. Essa personagem de Zeta-Jones, criminologista filha de um dos maiores ladrões de todos os tempos, obviamente tem importância crucial no filme. É enquadrando nela que se encerram o primeiro e o último plano do filme. Se é verdade que a origem e a legitimação do discurso criminal estão na própria imagem castradora/ameaçadora que ele sustenta em relação ao crime, cá se encontra o contorno parental que ilustra a equação. É o crime quem permite a existência da criminologia, e é a ele que esta última deveria prestar um tributo permanente. Em Doze Homens e Outro Segredo, trata-se ainda de uma modalidade especial de crime: nem só arte, nem só ciência, mas sem dúvida um pouco de cada, esse golpismo artesanal se define melhor se encarado como uma forma do pensamento – assim como ocorre com o cinema. Numa determinada cena, ainda na primeira metade do filme, Danny confessa a Rusty que não consegue parar de pensar como ladrão profissional, que ao entrar num lugar seu primeiro impulso é olhar ao redor e estudar os ângulos, ou seja, imaginar qual seria sua decupagem da ação, de que modo exploraria o espaço e o articularia a uma dinâmica de movimentos calculados em função do tempo que a operação (dizer-se-ia, a narrativa) deve levar. Doze Homens e Outro Segredo, portanto, é uma celebração do cinema – e um brinde à leveza. Em se tratando da disputa entre rivais, é também uma defesa do fair play.

Fosse Doze Homens e Outro Segredo apenas mais um filme sobre crimes perfeitos, certamente não estaríamos falando dele com tamanho entusiasmo. Mas Soderbergh escolheu um caminho diferente: onde se inseririam as pegadinhas hiper-espertas do roteiro, ele reagiu com mise-en-scène; onde a heroificação estética do crime seria levada a sério pelos personagens, ele introduziu um perspicaz senso de humor e de auto-paródia. Sobre este último ponto, aliás, cabe acrescentar que um dos momentos mais divertidos do filme se deve a uma das únicas atrizes capazes de protagonizá-lo em Hollywood: Julia Roberts, ou melhor, Tess (sua personagem no filme) fazendo-se passar por Julia Roberts, e condensando as intenções do filme. Desde seu sotaque sulino até as pernas que lhe permitiram abraçar o mundo após Uma Linda Mulher, tudo se torna alvo de paródia. Para o filme de Soderbergh, no fundo, basta um pretexto, pois o resto é uma sucessão de provocações cômicas e estilizações.

Piada com o estrelato, citação de série americana passando na TV (e dublada em italiano), diálogo estilístico com outros diretores (De Palma, Tarantino, irmãos Coen, o próprio Carl Reiner – que aqui compõe o elenco como Saul) e com outros filmes, provocações com a linguagem (os palavrões sendo censurados na primeira cena com o personagem de Don Cheadle) e com o universo do cinema como um todo (a participação de Bruce Willis tendo de aturar os “gênios” que já sabiam o desfecho de O Sexto Sentido), referências de outras artes, pseudônimo nos créditos (Peter Andrews, excelente diretor de fotografia, é o próprio Steven Soderbergh): todos os tipos de intertextualidade desfilam ao longo do filme. Longe, porém, de ser uma brincadeira para iniciados no assunto cinefilia, o filme vive independentemente das suas referências múltiplas. Nem que seja pela química irresistível do elenco.

Quando o personagem de Brad Pitt está sendo acusado de se vestir como um gigolô, é o próprio Soderbergh quem se assume um cineasta-gigolô, que negocia suas imagens prostitutas com um mundo em si mesmo expositivo e caçador de semblantes, um mundo onde há câmeras por toda e qualquer parte – e onde Doze Homens e Outro Segredo assume o papel de brincadeira de forma muito saudável.

Luiz Carlos Oliveira Jr.