Se pinçarmos na carreira de
Soderbergh uma cena definidora em relação ao seu cinema,
é bem provável que ela saia de um filme sem grande expressão.
Lá na primeira metade dos anos 90, quando o diretor
se batia entre a vontade de exercitar estilo e o compromisso
“sério” que assumira com a imagem em sexo, mentiras
e videotape (deveria ele ser o porta-voz da consciência
pesada da sociedade performática ou dar vazão à sua
capacidade de elaborar novas formas para o velho e bom
espetáculo?), o menino protagonista de O Inventor
de Ilusões alimentava-se, na falta de comida, das
fotografias que recortava de uma revista de culinária.
No cenário pós-Depressão do filme, Soderbergh se permitiu
representar a verdadeira crise que lhe interessava,
não propriamente econômica, mas antes uma crise da imagem.
Como ele aprofundaria em Solaris, a imagem sempre
corre o risco de tomar o lugar das coisas a que faz
referência. Estranha convicção para um cineasta, mas
o fato é que a imagem, para Soderbergh, é uma espécie
de pecado original.
sexo, mentiras e videotape, seu longa de estréia,
de 1989, ganhou Cannes e foi feito no final de uma década
em que o cinema americano se lançara a uma vasta reciclagem
de iconografias e gêneros, impulsionado tanto pelas
novas facilidades tecnológicas quanto pelo desespero
nostálgico de não deixar para trás aquele imenso imaginário
acumulado por décadas. O filme de Soderbergh ia contra
toda essa tendência, assumindo-se, desde as letras minúsculas
do título, em tom menor e rechaçando o diálogo com o
passado épico do cinema. A partir de então, contudo,
o cineasta engasga sucessivamente com seus próprios
dilemas. Enquanto Kafka fica no meio termo dessa
crise interna e é facilmente pisoteado pelo tempo, Irresistível
Paixão, embora fraco, já aponta o desejo conciso
de criar estilo dentro de uma matéria ficcional pulp
(o filme é uma adaptação de Elmore Leonard, imediatamente
posterior a Jackie Brown). Mesmo Erin Brockovich,
que se apropria do alcance moral do enredo do western
para encenar uma típica batalha jurídica contemporânea
(indivíduos versus corporações), pode ser visto como
um filme (bem-sucedido na mesma proporção em que Traffic
o deixa de ser) sobre a reconstrução vitoriosa de uma
imagem – a saber, a da protagonista (Julia Roberts oscarizada)
erguida das profundezas da América, e prezando por autenticidade
e sinceridade. Full Frontal, por outro lado,
retomou essa tensão verdadeiro/falso, cara ao diretor,
da pior maneira possível, refluindo no falatório entediante
que perpassa o filme – além dos comentários metalingüísticos
mais do que surrados.
O que o tempo mostrou, quer se queira ver ou não, foi
a habilidade de Soderbergh naquilo a que num primeiro
momento ele se recusou com veemência: Onze Homens
e um Segredo, um remake, deixou bastante
evidente que aquela é a faceta especial do diretor,
sua verve realmente atraente e pulsante. E para qualquer
dúvida que restasse, a resposta veio agora com a excelente
continuação, que, ao incidir precisamente sobre os pontos
mais fortes de Onze Homens e um Segredo, reembaralha
o jogo e articula ainda melhor suas duas engrenagens
principais: o charme (não só das atuações, mas também
da mise-en-scène) e a fluidez das ações. Mais
ou menos como a personagem de Catherine Zeta-Jones,
que arranca um depoimento de Matsui (contratante de
um dos roubos de Danny Ocean e cia) sussurrando ao seu
ouvido – após o policial holandês ter dito que o homem
era “uma pedra” –, Doze Homens e Outro Segredo é
um filme sedutor na justa medida em que arranca do espectador
uma entrega que ele a princípio pode se negar a oferecer
– afinal, nem todos estão acostumados a ir ao cinema
ver um filme de assaltos mirabolantes que, no entanto,
tem as ações praticamente todas relegadas ao fora-de-quadro.
Ao escolher cuidadosamente aquilo que mostra, e mesmo
assim passar a impressão de ser um filme que não está
mostrando o que deveria, Doze Homens e Outro Segredo
afirma que é preciso se colocar acima da linha da
imagem para alcançar uma visibilidade útil, uma mira;
é preciso erguer as fundações da mansão em Amsterdã,
de modo que a “seta da besta” consiga atravessar a janela
e atingir o alvo. Abaixo dessa linha de mira, a imagem
se acha esvaziada de qualquer utilidade; contemplativa
e antifuncional. Ultrapassando a linha, entretanto,
a imagem se torna puramente legível; operacional e anticontemplativa
(pressionado o gatilho, ocorre o corte e o roubo em
si cai na elipse). Mas na imagem há sempre algo “faltando”,
nunca se vê tudo, e essa é uma de suas premissas.
O filme desvia a atenção do espectador, por exemplo,
para a relação pessoal entre Rusty (Brad Pitt) e Isabel
(Zeta-Jones), e perde de vista seu suposto mote principal.
Da mesma forma, o encontro com Matsui não tem outra
função além de expor Linus (Matt Damon), que recebe
uma atenção especial nesse filme, à situação em que
ele testará sua quase ausente habilidade como negociador
– chegando ao ponto de, em meio a uma sessão de piadas
curtas, citar versos de Emily Dickinson.
Enquanto rouba algumas pinturas famosas, deixando apenas
a moldura, o bando de Danny Ocean se oferece às câmeras
de segurança da mansão de Night Fox – ou seja, troca-se
por imagem – para conseguir realizar o golpe perfeito.
Revelar a identidade dos membros do grupo se torna,
contrariamente, a maneira ideal de limpar o terreno
para a operação-fantasma, a única que não deixa rastros.
É tudo encenação, um grande show representacional. Como
entrega (literalmente de bandeja) o plano arquitetado
para o roubo central de Doze Homens e Outro Segredo,
o que está em aprimoramento nessa continuação é um cinema
da réplica. E a natureza dessa réplica é inequívoca:
o holograma que se substitui à obra de arte. Por isso
o filme se constrói num presente por vezes abstrato
(no que a montagem é fundamental): o presente, alguém
já disse, não é tão real quanto o passado. Os crimes,
enquanto estão sendo cometidos, não podem ser mostrados
de forma clara, roteirizada; somente depois seus autores
podem narrá-lo com alguma organização visual e seqüencial.
Vemos Night Fox roubando o “ovo dourado” – que depois
se revelará uma réplica – do museu de Roma somente quando
ele narra sua ação a Danny e Tess. Seria uma vitória
do empreendimento físico, do esforço individual e da
disciplina do corpo, mas o filme sabe bem seu caminho
de predileção, e concede a vitória ao trabalho em equipe,
à operação (menos física do que intelectual) que se
esvaiu na poeira, deu-se de forma tão fluida que imperceptível,
contando com a ajuda de um homem supostamente morto,
o lendário Gaspar LeMarc.
Ao final, LeMarc se revela o pai de Isabel, que o estudou
incessantemente enquanto personagem de destaque da história
da criminologia moderna, mas pouco o conheceu como pai.
Essa personagem de Zeta-Jones, criminologista filha
de um dos maiores ladrões de todos os tempos, obviamente
tem importância crucial no filme. É enquadrando nela
que se encerram o primeiro e o último plano do filme.
Se é verdade que a origem e a legitimação do discurso
criminal estão na própria imagem castradora/ameaçadora
que ele sustenta em relação ao crime, cá se encontra
o contorno parental que ilustra a equação. É o crime
quem permite a existência da criminologia, e é a ele
que esta última deveria prestar um tributo permanente.
Em Doze Homens e Outro Segredo, trata-se ainda
de uma modalidade especial de crime: nem só arte, nem
só ciência, mas sem dúvida um pouco de cada, esse golpismo
artesanal se define melhor se encarado como uma forma
do pensamento – assim como ocorre com o cinema. Numa
determinada cena, ainda na primeira metade do filme,
Danny confessa a Rusty que não consegue parar de pensar
como ladrão profissional, que ao entrar num lugar seu
primeiro impulso é olhar ao redor e estudar os ângulos,
ou seja, imaginar qual seria sua decupagem da ação,
de que modo exploraria o espaço e o articularia a uma
dinâmica de movimentos calculados em função do tempo
que a operação (dizer-se-ia, a narrativa) deve levar.
Doze Homens e Outro Segredo, portanto, é uma
celebração do cinema – e um brinde à leveza. Em se tratando
da disputa entre rivais, é também uma defesa do fair
play.
Fosse Doze Homens e Outro Segredo apenas mais
um filme sobre crimes perfeitos, certamente não estaríamos
falando dele com tamanho entusiasmo. Mas Soderbergh
escolheu um caminho diferente: onde se inseririam as
pegadinhas hiper-espertas do roteiro, ele reagiu com
mise-en-scène; onde a heroificação estética do
crime seria levada a sério pelos personagens, ele introduziu
um perspicaz senso de humor e de auto-paródia. Sobre
este último ponto, aliás, cabe acrescentar que um dos
momentos mais divertidos do filme se deve a uma das
únicas atrizes capazes de protagonizá-lo em Hollywood:
Julia Roberts, ou melhor, Tess (sua personagem no filme)
fazendo-se passar por Julia Roberts, e condensando as
intenções do filme. Desde seu sotaque sulino até as
pernas que lhe permitiram abraçar o mundo após Uma
Linda Mulher, tudo se torna alvo de paródia. Para
o filme de Soderbergh, no fundo, basta um pretexto,
pois o resto é uma sucessão de provocações cômicas e
estilizações.
Piada com o estrelato, citação de série americana passando
na TV (e dublada em italiano), diálogo estilístico com
outros diretores (De Palma, Tarantino, irmãos Coen,
o próprio Carl Reiner – que aqui compõe o elenco como
Saul) e com outros filmes, provocações com a linguagem
(os palavrões sendo censurados na primeira cena com
o personagem de Don Cheadle) e com o universo do cinema
como um todo (a participação de Bruce Willis tendo de
aturar os “gênios” que já sabiam o desfecho de O
Sexto Sentido), referências de outras artes, pseudônimo
nos créditos (Peter Andrews, excelente diretor de fotografia,
é o próprio Steven Soderbergh): todos os tipos de intertextualidade
desfilam ao longo do filme. Longe, porém, de ser uma
brincadeira para iniciados no assunto cinefilia, o filme
vive independentemente das suas referências múltiplas.
Nem que seja pela química irresistível do elenco.
Quando o personagem de Brad Pitt está sendo acusado
de se vestir como um gigolô, é o próprio Soderbergh
quem se assume um cineasta-gigolô, que negocia suas
imagens prostitutas com um mundo em si mesmo expositivo
e caçador de semblantes, um mundo onde há câmeras por
toda e qualquer parte – e onde Doze Homens e Outro
Segredo assume o papel de brincadeira de forma muito
saudável.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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