NÃO SE MOVA
Sergio Castellito, Non ti muovere, Itália/Espanha/Inglaterra, 2004

Não há meio termo em Não se Mova – em nenhum fotograma, em nenhum segundo do filme. Neste segundo trabalho de Sergio Castellito como diretor, a única regra importante é a do coração na boca, a do sentimento à flor da pele o tempo todo, sem descanso – tão “exagerado” quanto as canções românticas italianas que permeiam (e fecham) o filme, e que tanto ajudam a entrar no seu clima. Se sutilezas há em sua construção, elas estão muito bem escondidas sob uma carapaça de exagerados sentimentos, de uma filmagem que é tudo que se pode pensar a partir da expressão “over the top”. Afinal, tratamos aqui de um filme que abre num contra-plogé radicalmente vertical, que joga um olhar “dos céus” sobre os resultados de um acidente de trânsito (se é fato que no final entenderemos perfeitamente este enquadramento, no começo ele é realmente reflexo de uma forma um tanto rasgada de abrir um filme). A este plano, se seguem closes ainda mais radicais no corpo ferido da jovem que é transportada pelos corredores do hospital: ali, nesta curta, mas potentíssima sequência que abre Não se Mova, Castellito já estabelece as regras do jogo – e que se disponha a jogá-lo junto com ele quem assim quiser.

Será dentro desta mesma lógica da ausência do meio termo que ele trabalhará o resto do filme, com resultados nunca menos do que impressionantes (usando o termo, acima de tudo, no sentido de algo que causa indelével impressão). Afinal, consideremos: trata-se de um filme que se passa numa estrutura de flashbacks toda montada a partir das digressões mentais de um pai ao saber que sua filha está entre a vida e a morte na mesa de operações. Estas digressões lidam, acima de tudo, com um tema: a paixão visceral, nascida de um estupro perpetrado pelo protagonista (cena, aliás – usemos de novo o termo - igualmente impressionante), entre este homem e uma mulher que ele conhece num outro fortuito acontecimento automobilístico. A alma do filme está nesta relação (o que não é nenhum acaso, já que o coração do filme bate no compasso do seu protagonista): selvagem, sem explicações ou racionalismos, pura “pele na pele”, filmada por Castellito com uma tal simbiose entre sua câmera e os personagens e ambientes, que podemos quase sentir o cheiro deles.

A história que Castellito nos conta tem uma série de elementos do melodrama tradicional (desde a questão da “outra” que desestabiliza um casamento até a luta entre a vida e a morte de um ente querido), mas de tradicional ela tem muito pouco. A começar por um protagonista que, em nenhum momento, briga pela nossa simpatia com alguma característica “redentora”: para além de um adúltero, estamos tratando aqui de um estuprador que abandona sua mulher horas depois do nascimento da filha para fugir com sua amante. Mas o fato é que algo o redime, em relação ao olhar do filme sobre ele: justamente a sua entrega, sua incapacidade de agir de acordo com qualquer regra que não seja aquela do sentimento imediato – algo que está presente não só na relação entre ele e a amante, mas também em cenas como a do sexo com a esposa em cima da mesinha de centro cheia de conchinhas de praia (um parêntese precisa ser aberto para falar da forma como Castellito filma o sexo: sem qualquer pudor, como impulso animalesco e passional, amor transfigurado pelo instinto). Mas, se redenção há aos olhos do filme (basta ver o final), ela certamente não passa por qualquer instância de um moralismo mais rasteiro: o filme está, não restam dúvidas, de mãos dadas com seu tão imperfeito protagonista. Com este protagonista o diretor faz questão de partilhar, inclusive, sua estupefação e confusão, que tornam o filme muitas vezes tão imperfeito quanto ele – numa simbiose entre tema/forma que só o torna mais engajador, mais apaixonante.

Num filme tão sem limites, tão entregue, a forma não poderia ser outra do que a do exagero, da falta de medo de ir longe (que tanta falta faz tanto na maioria dos filmes “comportadinhos” e sob controle, quanto nos “falsos contestadores”, os “espertinhos” se considerando sempre superiores aos seus personagens – e espectadores). E é assim que Castellito trabalha com sua câmera viva, com sua fotografia de um cromatismo quase almodovariano (aliás, o filme lembra muito o cinema de Almodóvar, no seu melhor), com sua trilha sonora, com seu desenho de som absolutamente impecável. Cria alguns planos simplesmente antológicos (como a câmera que sobe na praia e revela o “recado” que o protagonista escreve para a esposa na areia; ou a despedida da personagem de Penelope Cruz do seu cachorro), todos eles sempre no limite, na linha tênue, que nunca teme em trilhar, entre o sublime e o ridículo – nenhum deles mais absurdamente belo do que aquele em que o protagonista deita-se ao lado da amada que está morrendo e tenta encontrar com seu olhar aquilo que ela vê em seus últimos suspiros de vida. O fato é que, mesmo sendo baseado num livro, Não se Mova é um filme de cineasta, muito mais do que de história – um filme de imagens e sons, não de papel, como demonstram as cenas mais simples, como a da corrida dos personagens nas escadarias do metrô: banal enquanto ação dramática, tudo menos isso enquanto filme.

É exatamente por isso, inclusive, que soa um tanto tolo diminuir o filme a uma pretensa metáfora sobre a atualidade sócio-política italiana, nos tempos de Berlusconi. Mesmo sendo fato que, ao nomear a personagem da amante Italia, Castellito tenha aberto a chance desta leitura (que, aliás, se for o caminho que se optar trilhar, precisa de muito cuidado e atenção, porque nenhum alegorismo simplório explica uma série de nuances do que se narra no filme), é preciso, por outro lado, um desejo um tanto enorme de se fechar olhos e ouvidos ao que se vê/ouve na tela e considerar este o aspecto mais importante do trabalho de Castellito. Filmes são, sim, sintomas de seu tempo, sempre – mas partir só disso para compreender um fenômeno antes de tudo audiovisual e sensorial, como Não se Mova se apresenta, é diminuir muito o poder do cinema, curvá-lo perante as forças do sociologismo mais rasteiro.

Finalmente, se Não se Mova nos revela em Castellito (uma vez que seu primeiro filme não chegou ao Brasil) um cineasta de impressionante vontade de cinema, e domínio de linguagem, o que não se pode perder de vista nem por um segundo é que uma parte considerável de sua força vem do outro chapéu que o diretor veste – o de intérprete do protagonista. Mesmo se fosse um filme menor em seu alcance e permanência (o que não é), Não se Mova, no mínimo, nos relembraria mais uma vez que Castellito é, antes de qualquer outra coisa, um dos cinco maiores atores do mundo na atualidade. Sua interpretação (tão entregue e cheia de lados como o próprio filme), por si mesma, é o tipo de evento cinematográfico raro que pede uma atenção especial – ainda mais para este filme tão apaixonante.

Eduardo Valente