Não há meio termo em Não
se Mova – em nenhum fotograma, em nenhum segundo
do filme. Neste segundo trabalho de Sergio Castellito
como diretor, a única regra importante é a do coração
na boca, a do sentimento à flor da pele o tempo todo,
sem descanso – tão “exagerado” quanto as canções românticas
italianas que permeiam (e fecham) o filme, e que tanto
ajudam a entrar no seu clima. Se sutilezas há em sua
construção, elas estão muito bem escondidas sob uma
carapaça de exagerados sentimentos, de uma filmagem
que é tudo que se pode pensar a partir da expressão
“over the top”. Afinal, tratamos aqui de um filme que
abre num contra-plogé radicalmente vertical,
que joga um olhar “dos céus” sobre os resultados de
um acidente de trânsito (se é fato que no final entenderemos
perfeitamente este enquadramento, no começo ele é realmente
reflexo de uma forma um tanto rasgada de abrir um filme).
A este plano, se seguem closes ainda mais radicais no
corpo ferido da jovem que é transportada pelos corredores
do hospital: ali, nesta curta, mas potentíssima sequência
que abre Não se Mova, Castellito já estabelece
as regras do jogo – e que se disponha a jogá-lo junto
com ele quem assim quiser.
Será dentro desta mesma lógica da ausência do meio termo
que ele trabalhará o resto do filme, com resultados
nunca menos do que impressionantes (usando o termo,
acima de tudo, no sentido de algo que causa indelével
impressão). Afinal, consideremos: trata-se de um filme
que se passa numa estrutura de flashbacks toda montada
a partir das digressões mentais de um pai ao saber que
sua filha está entre a vida e a morte na mesa de operações.
Estas digressões lidam, acima de tudo, com um tema:
a paixão visceral, nascida de um estupro perpetrado
pelo protagonista (cena, aliás – usemos de novo o termo
- igualmente impressionante), entre este homem e uma
mulher que ele conhece num outro fortuito acontecimento
automobilístico. A alma do filme está nesta relação
(o que não é nenhum acaso, já que o coração do filme
bate no compasso do seu protagonista): selvagem, sem
explicações ou racionalismos, pura “pele na pele”, filmada
por Castellito com uma tal simbiose entre sua câmera
e os personagens e ambientes, que podemos quase sentir
o cheiro deles.
A história que Castellito nos conta tem uma série de
elementos do melodrama tradicional (desde a questão
da “outra” que desestabiliza um casamento até a luta
entre a vida e a morte de um ente querido), mas de tradicional
ela tem muito pouco. A começar por um protagonista que,
em nenhum momento, briga pela nossa simpatia com alguma
característica “redentora”: para além de um adúltero,
estamos tratando aqui de um estuprador que abandona
sua mulher horas depois do nascimento da filha para
fugir com sua amante. Mas o fato é que algo o redime,
em relação ao olhar do filme sobre ele: justamente a
sua entrega, sua incapacidade de agir de acordo com
qualquer regra que não seja aquela do sentimento imediato
– algo que está presente não só na relação entre ele
e a amante, mas também em cenas como a do sexo com a
esposa em cima da mesinha de centro cheia de conchinhas
de praia (um parêntese precisa ser aberto para falar
da forma como Castellito filma o sexo: sem qualquer
pudor, como impulso animalesco e passional, amor transfigurado
pelo instinto). Mas, se redenção há aos olhos do filme
(basta ver o final), ela certamente não passa por qualquer
instância de um moralismo mais rasteiro: o filme está,
não restam dúvidas, de mãos dadas com seu tão imperfeito
protagonista. Com este protagonista o diretor faz questão
de partilhar, inclusive, sua estupefação e confusão,
que tornam o filme muitas vezes tão imperfeito quanto
ele – numa simbiose entre tema/forma que só o torna
mais engajador, mais apaixonante.
Num filme tão sem limites, tão entregue, a forma não
poderia ser outra do que a do exagero, da falta de medo
de ir longe (que tanta falta faz tanto na maioria dos
filmes “comportadinhos” e sob controle, quanto nos “falsos
contestadores”, os “espertinhos” se considerando sempre
superiores aos seus personagens – e espectadores). E
é assim que Castellito trabalha com sua câmera viva,
com sua fotografia de um cromatismo quase almodovariano
(aliás, o filme lembra muito o cinema de Almodóvar,
no seu melhor), com sua trilha sonora, com seu desenho
de som absolutamente impecável. Cria alguns planos simplesmente
antológicos (como a câmera que sobe na praia e revela
o “recado” que o protagonista escreve para a esposa
na areia; ou a despedida da personagem de Penelope Cruz
do seu cachorro), todos eles sempre no limite, na linha
tênue, que nunca teme em trilhar, entre o sublime e
o ridículo – nenhum deles mais absurdamente belo do
que aquele em que o protagonista deita-se ao lado da
amada que está morrendo e tenta encontrar com seu olhar
aquilo que ela vê em seus últimos suspiros de vida.
O fato é que, mesmo sendo baseado num livro, Não
se Mova é um filme de cineasta, muito mais do que
de história – um filme de imagens e sons, não de papel,
como demonstram as cenas mais simples, como a da corrida
dos personagens nas escadarias do metrô: banal enquanto
ação dramática, tudo menos isso enquanto filme.
É exatamente por isso, inclusive, que soa um tanto tolo
diminuir o filme a uma pretensa metáfora sobre a atualidade
sócio-política italiana, nos tempos de Berlusconi. Mesmo
sendo fato que, ao nomear a personagem da amante Italia,
Castellito tenha aberto a chance desta leitura (que,
aliás, se for o caminho que se optar trilhar, precisa
de muito cuidado e atenção, porque nenhum alegorismo
simplório explica uma série de nuances do que se narra
no filme), é preciso, por outro lado, um desejo um tanto
enorme de se fechar olhos e ouvidos ao que se vê/ouve
na tela e considerar este o aspecto mais importante
do trabalho de Castellito. Filmes são, sim, sintomas
de seu tempo, sempre – mas partir só disso para compreender
um fenômeno antes de tudo audiovisual e sensorial, como
Não se Mova se apresenta, é diminuir muito o
poder do cinema, curvá-lo perante as forças do sociologismo
mais rasteiro.
Finalmente, se Não se Mova nos revela em Castellito
(uma vez que seu primeiro filme não chegou ao Brasil)
um cineasta de impressionante vontade de cinema, e domínio
de linguagem, o que não se pode perder de vista nem
por um segundo é que uma parte considerável de sua força
vem do outro chapéu que o diretor veste – o de intérprete
do protagonista. Mesmo se fosse um filme menor em seu
alcance e permanência (o que não é), Não se Mova,
no mínimo, nos relembraria mais uma vez que Castellito
é, antes de qualquer outra coisa, um dos cinco maiores
atores do mundo na atualidade. Sua interpretação (tão
entregue e cheia de lados como o próprio filme), por
si mesma, é o tipo de evento cinematográfico raro que
pede uma atenção especial – ainda mais para este filme
tão apaixonante.
Eduardo Valente
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