A parceria entre Jorge Furtado
e Guel Arraes (desde os tempos televisivos) sempre primou
por uma tentativa clara: a de produzir produtos culturais
populares e de qualidade. Se é inegável que este Meu
Tio Matou um Cara traz todos os elementos requeridos
para um filme que se pretenda popular, infelizmente
o que mais fica da experiência de assisti-lo com os
olhos rigorosos de quem sempre admirou os resultados
do trabalho da dupla e, por isso mesmo, não espera menos
do que produtos muito cuidados, é a sensação de que
se deixou de lado a parcela da equação que diz respeito
à qualidade – e o que mais preocupa é saber se isso
é uma exceção à regra ou pode marcar uma tendência de
acomodação.
Acomodação é uma palavra importante para se entender
as ressalvas feitas ao filme – que tem sua equação completa
por outra um tanto mais complicada: desleixo. O fato
é que neste filme encontramos um Jorge Furtado bastante
acomodado na sua “zona de conforto”, repetindo sem maior
brilho tudo aquilo que sempre soubemos (e ele também)
que é seu ponto forte (a capacidade de urdir tramas
que misturem uma razoável complexidade de andamento
com simplicidade comunicativa, a escritura de boas sacadas
de diálogos e espertezas de solução de problemas na
trama), mas completamente desinteressado de ir além
disso, seja na encenação, seja mesmo em alguma novidade
que a trama nos traga. Mas, pior do que esta acomodação,
este piloto automático, é que a ela se adiciona aqui
o citado desleixo que, importando menos se produto do
processo de produção ou não, dá ao filme uma cara inegável
de algo feito às pressas, sem maiores preocupações e
cuidados com tudo de mais básico na sua encenação, sabendo
que com menos do que isso se consegue (baseando-se nos
já mencionados pontos fortes) a adesão do espectador
ao filme. O que vemos na tela parece um Jorge Furtado
feito a toque de caixa, à la Diller Trindade, onde a
certeza da comunicabilidade prévia passa por cima da
dedicação ao produto realizado – algo completamente
diferente do que vemos num Homem que Copiava,
num Lisbela e o Prisioneiro, e até mesmo num
filme tão mais barato quanto o delicioso Houve Uma
Vez Dois Verões.
A impressão que se tem assistindo a Meu Tio Matou
um Cara com atenção é que se gravou um grande primeiro
ensaio do filme, que está esperando agora que se façam
algumas correções necessárias nas falas e no encadeamento
narrativo, que se ache de fato as locações onde ele
será filmado, que se encontrem as soluções de luz e
mise-en-scène com as quais ele realmente será
feito e que os atores achem o tom (e, especialmente,
a regularidade deste tom) dos personagens. E mais: a
montagem também está esperando um corte futuro mais
atento, menos truncado na decupagem interna das sequências
e onde as duas narrativas (a romântica e a policial)
estejam melhor integradas, e a trilha sonora exata ainda
está por ser composta – essas canções que aqui ouvimos
são apenas referências da sonoridade e clima desejados
ao se compor as músicas que de fato entrarão no filme.
Só que, no meio deste processo, alguém resolveu lançar
o filme assim mesmo, porque já tinha uma data com a
distribuidora, com a gravadora que ia lançar a trilha
sonora etc.
O que resta, então, são espasmos de bons diálogos, o
reconhecimento de um ou outro momento de empatia (quase
todos por conta da presença magnética, e sub-utilizada,
de Lázaro Ramos na tela), uma boa canção na trilha (a
letra inspirada de “Soraia”). Cercando estes momentos,
um assustador excesso de falação, onde os personagens
muito mais falam do que agem para fazer a trama andar
(e o filme passa uma estranha sensação de temer profundamente
o silêncio); algumas sequências de encenação francamente
constrangedora (a festa de adolescentes que bebem guaraná
e que se comportam como crianças de 12 anos); outras
de uma absoluta falta de necessidade na tela (toda a
“contrapartida social” da ida a prisão soa tão completamente
deslocada no filme quanto a série de peripécias envolvendo
a saída desta, uma caneta de Pokemon e uma galera de
rua, num momento quase inexplicável até que entendemos
que ele está na tela só para que os personagens justifiquem
o esquecimento do endereço que o tio passa para eles
na prisão – exemplo claro de “primeira solução pensada”
que fica numa versão final do filme, apesar de deslocada
de tudo em torno dela). Tudo isso vai se amontoando
até as sequências finais, onde Furtado parece realmente
ligar um botão de “vamos resolver tudo isso aqui, que
o filme precisa terminar”, que está encarnado na sua
mais completa perfeição na maneira quase desinteressada
(do filme, dos personagens, do espectador) com que se
encena o desfecho romântico.
E o que mais entristece, para além do quase total isolamento
do núcleo Furtado/Arraes como produtores deste chamado
filme popular de qualidade, é que eles demonstram, mais
uma vez (Houve uma Vez Dois Verões já apontava
isso), o interesse pelas tramas que envolvem (seja como
personagens, seja como público), a faixa etária onde
o cinema brasileiro menos consegue comunicação e empatia:
os adolescentes, os jovens. É por isso tudo que o desejo
mesmo é torcer que Meu Tio Matou um Cara seja
mais um engasgo do que qualquer coisa: seja um projeto
que, por azar, potencializou as fraquezas (encenação,
desejo de pensar a imagem) e escondeu as potencialidades
já conhecidas do cinema de Furtado; seja, acima de tudo,
um filme onde as imposições do trabalho de mercado (a
inserção inadequada da trilha de canções – que aliás,
tem patrocinador próprio! -, a rapidez do processo de
realização – que Arraes mais do que domina, mas Furtado
aparentemente nem tanto) acabou sufocando o tempo que
o filme precisava para resultar num produto com o capricho
que sempre marcou os trabalhos da dupla. Pelo menos,
isso eu posso garantir, é o que estamos fortemente torcendo
para ter acontecido.
Eduardo Valente
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