O resultado do mais recente Festival Internacional de
Curtas Metragens do Rio de Janeiro reflete uma tendência
da produção audiovisual contemporânea
de imagens documentais, ou, como escreve o documentarista
e teórico francês Jean Comolli, de imagens
"em tensão com o real". Me refiro aos
ganhadores das categorias "Experimental" e
"O Grande Prêmio do Júri", o
mais importante do festival, onde foram premiados, respectivamente,
Man.Road.River. de Marcellvs L., e Da Janela
do Meu Quarto de Cao Guimarães, ambos de
Minas Gerais.
Não por coincidência os dois trabalhos
são feitos por artistas acostumados com o meio
das artes plásticas. Cao Guimarães transita
com grande desenvoltura entre salões e festivais
de cinema, tendo sido recentemente premiado no Festival
de Locarno com um dos mais interessantes filmes nacionais
recentes, Rua de Mão Dupla, um documentário
fruto de um desdobramento de uma obra exposta na Bienal
de São Paulo 2002. Marcellvs L., bastante mais
jovem, também freqüenta o mesmo meio; apresentou
um trabalho no último Vídeo Brasil (2003),
fez exposições em galerias e museus mineiros
e agora prepara uma exposição individual
no Paço das Artes, em São Paulo, para
2005.
Os dois filmes ganhadores do festival se relacionam
com acontecimentos e pessoas que se encontram distantes
das câmeras e que não sabem da presença
dela. São documentários expandidos, obras
que em tensão com o real forjam acontecimentos
na imagem e no real. Há, nos dois filmes, a descoberta
de um acontecimento estético de intensa potência.
Acontecimentos que aparecem porque o delicado, atento
e perspicaz olhar mediado pela câmera desses artistas
permite. Cao espera a chuva passar da janela de um quarto
de hotel em Belém, e é dessa janela que
ele vê dois meninos brincando de brigar no chão
enlameado. Um balé que Cao capta no mundo e o
transforma também, sobretudo com a introdução
da música do grupo O Grivo, presença quase
constante nos seus filmes, e da câmera lenta que
irá deslocar aquela brincadeira da realidade
introduzindo camadas de memória e lembranças;
transformando o tempo de duração das imagens,
mas também o tempo de realidade, separando-as
do presente. A câmera-lenta dessas imagens é
o que parece acontecer na trilha sonora também,
ouvimos um som de chuva que às vezes parece som
direto, mas é um pouco mais grave, às
vezes ritmado, colaborando com a transformação
da brincadeira em dança e com o efeito de suspensão
da realidade provocada pelo filme. O que vemos é
o mundo, mas descolado. Não há nesses
trabalhos nenhuma ilusão de objetividade; "trabalho
muito as imagens", diz Marcellvs L.. Neste documentário
expandido o realizador se encontra conectado a dois
pólos, um de insistente observação,
espera e atenção; em uma verdadeira pescaria
de imagens e outro, de intervenção; recorrendo
a todos os artifícios necessários para
destacar um momento qualquer e transformá-lo
em um momento singular. A brincadeira dos meninos perde
seu caráter documental, que registra um presente,
para se espalhar em uma multiplicidade de tempos; da
imagem, da memória e, claro, do registro. A alegria
dos meninos é transformada em um instante onde
a alegria tão abstrata se dá aos olhos
e ao pensamento. Não mais um momento de alegria,
mas; a alegria, que não tem essência, e
aqui aparece como pode aparecer; como acontecimento.
Man. Road. River e Da Janela do Meu Quarto
apontam para o que ainda pode o audiovisual contemporâneo,
ou seja; inventar objetos, ações e acontecimentos
sem existência real, imateriais.
Como em vários trabalhos de Cao há uma
forte tensão entre o controle que ele exerce
sobre as imagens câmera lenta, trilha sonora,
estética super-8 e o controle que as imagens
exercem sobre ele e sobre o filme. Da Janela do Meu
Quarto acaba quando os garotos param de brincar
e, correndo, se distanciam da janela de Cao, assim como
no filme de Marcellvs L., o filme vai a até o
final do que filma. No filme de Marcellvs L. esta opção
é ainda mais concentrada, por tratar-se de um
plano seqüência sem alteração
da velocidade da imagem.
Man.Road.River. é parte de uma grande
produção de vídeos; 18 até
agora, que Marcellvs L. produz e introduz em um dispositivo
de distribuição, chamado Videorizoma.
Marcellvs L. distribui cópias de seu vídeos
por correio para pessoas escolhidas aleatoriamente no
catálogo de endereços de Belo Horizonte.
Até dezembro de 2004 já havia distribuído
420 cópias em VHS. As cópias são
identificadas apenas com um número e sem remetente,
impossibilitando qualquer contato de quem as recebe
com o artista.
Man.Road.River. documenta em preto e branco um
homem que desce uma ladeira asfaltada e se aproxima
de uma poça de água. A imagem começa
com um zoom digital, uma prática recorrente
nos trabalhos de Marcellvs L.; o pixel é incorporado
à estética do vídeo trazendo um
efeito paradoxal: alta tecnologia/subversão do
bem feito. O som que ouvimos parece ser do microfone
da câmera, distante portanto do que vemos na imagem.
O efeito pixel somado a este deslocamento do som direto
provoca o estranhamento de não termos clareza
sobre o nosso lugar na imagem, sobre o lugar da câmera.
De onde vemos isso? O objeto documentado nos vê?
Em suma, a que distância nos encontramos do que
filmamos? Aqui o que ouvimos é um som da câmera
que eventualmente capta algumas palavras das pessoas
que passam perto enquanto o som dos passos do homem
ou o barulho da água não são ouvidos.
A medida que o homem se aproxima da água e
da câmera a zoom vai abrindo de modo
quase imperceptível, o plano vai ficando mais
largo, percebemos que a câmera está muito
distante do homem e que a poça dágua
é praticamente um rio. Sem corte e respeitando
o tempo real, acompanhamos a travessia deste homem que
dramaticamente continua caminhando na água como
se ela não existisse. Ele está vestido
de camisa e bermuda e em nenhum momento hesita em iniciar
a travessia que levará a água até
seu peito.
"O Acontecimento não está enganchado
na cadeia contínua dos presentes", como
diz Peter Pal-Pelbart, "ele sugere uma temporalidade
paradoxal, atópica, incorporal, sempre passada
e sempre por vir"1. A forma que
os trabalhos do VideoRizoma recuperam este tempo,
onde o acontecimento faz-se possível, é
curiosa. Diferente das freqüentes subversões
cronológicas que o cinema moderno trouxe às
narrativas, buscando um tempo crônico e não
linear, o que aqui acontece é uma linearidade
do plano-seqüência que entra em conflito
explícito com o tempo organizado em seqüências
de elipses. Se a vida é um filme, se olhar o
mundo é buscar o entretenimento que ele nos oferece,
o tempo contemporâneo não só pressupõe
a linearidade como a diversidade. É em confronto
com este tempo que os vídeos de Marcellvs L.
aparecem. A realidade é elíptica e aqui
ela é subvetida pelo plano-seqüência.
Os filmes do projeto VideoRizoma são lentos e
longos, quase manifestos contra a diversidade e a velocidade.
Voltarmos a André Bazin nos parece importante:
a defesa que o teórico francês fez do plano-seqüência
pressupunha a possibilidade de o cinema captar a realidade;
não uma realidade que se entregava nua ao cinema,
mas uma realidade misteriosa, aberta e frequentemente
indecifrável. A utilização destes
planos longos e sem cortes por Marcellvs L. parece reforçar
um olhar que se abstém de organizar o mundo com
a montagem, entretanto, é porque o próprio
estatuto da imagem muda que os filmes do diretor não
podem ser pensados apenas por esse recorte baziniano.
A câmera destes trabalhos é uma câmera
"silenciosa", que faz movimentos mínimos,
sempre sobre tripé, e que capta pessoas que não
sabem que estão na imagem. Os filmes se forjam
em uma quase-vigilância, mas ao captar os personagens
anônimos e em ações mínimas,
a imagem que aparenta vigilância de algo que existe
se transforma em produtora do que não existiria
sem ela.
A relação com as câmeras de vigilância
nesses trabalhos, se não é a intenção
do artista, também não pode ser deixada
de lado. Vemos nesses trabalhos uma imagem construída
através de câmeras que filmam sem serem
vistas, em plano único e fixo, e que, apesar
das aparências, provocam uma revitalização
de uma estética que parecia seqüestrada
pelos dispositivos de vigilância. Aqui a imagem
destaca do mundo micro-acontecimentos sem transformá-los
em bancos de dados, como fazem as câmeras de vigilância.
Aqui há um olhar que se detém onde aparentemente
nada acontece e é, também, esta atenção
ao micro, ao silencioso, à lentidão que
subverte os dispositivos utilizados pelas autoridades
e pelo capital.
Se em Bazin a transparência aproximava do real,
a multiplicação das câmeras no mundo
tornou a ausência do aparato em uma filmagem de
documentário uma prática de opacidade.
Esconder o aparato técnico, ou seja; a presença
do filme enquanto instância narradora, torna-se
possível quando o tempo é estendido, como
nos vídeos de Marcellvs L. ou no recente documentário
Domestic Violence 2, de Frederic Wiseman. É
porque há uma reversão do tempo do entretenimento,
um reposicionamento do espectador na sala e um desprezo
à diversidade, que o tempo real presente nestes
filmes acaba por suportar a transparência do aparato.
Da Janela do Meu Quarto e Man.Road.River.
apresentam intenso e interessante diálogo com
o estatuto da imagem contemporânea, com o espectador
e com tipo de demanda que as obras fazem das novas tecnologias
de produção de imagens; das micro-câmeras
de vigilância ao diálogo com o digital
imposto pelo super-8 de Cao. Parte da força deste
diálogo surge das opções por narrativas
que se dão na superfície dos objetos,
dos personagens e eventualmente na distribuição
e que, simultaneamente, procuram o audiovisual como
instrumento de documentação de acontecimentos
reveladores de um mundo em criação e movimento
onde o artista tem papel fundamental.
Uma das características desta narrativa em superfície
é o aparecimento da imagem como fruto de uma
experiência do próprio artista em relação
com o mundo. Nos dois filmes que comentamos há
um acontecimento que aparece para o artista e para a
câmera que não pode ser refeito, é
fruto de um momento singular. O que vemos não
é uma construção no tempo, um momento
que se desdobrou de um passado e se desdobrará
em um futuro, mas um instante onde alguém presencia
um acontecimento. O encantamento do espectador com esses
filmes parece também passar pelo prazer de estar
compartilhando a experiência de quem viu um homem
cruzar um rio ou duas crianças brincarem se misturando
à chuva e à lama. Para entendermos a idéia
de um tempo de superfície, podemos imaginar um
plano (como uma planície que flutua) que contém
Da Janela do Meu Quarto ao mesmo tempo em que
contém Man.Road.River. São filmes
que existem em um mesmo plano de tempo, o que não
significa que são simultâneos, nem que
um está antes ou depois do outro. Cada um deles
é um ponto em uma temporalidade que não
se organiza em sucessão de instantes, mas em
co-existência em um tempo indeterminado. Por que
isto importa? É esta imagem-tempo, esta imagem
que aparece como o tempo em estado puro, e não
como parte de um tempo que a ultrapassa, que trará
a abertura para percebermos os excessos (de beleza,
de sentido, de dor) ali presentes. O que percebemos
não é a compreensão de algo, mas
esse algo puro.
Grande parte da sedução destes trabalhos
está na opção incondicional em
não organizar através do som, da fala,
do título, qualquer um desses momentos. Não
introduzir o que acontece em uma cadeia de acontecimentos
é uma opção pela superfície
que mantém o acontecimento desejoso de outros
corpos os nossos para continuarem atualizando o
que nos é dado; os filmes, o mundo. O que há
para ser visto, para ser documentado é o que
se apresenta aqui, nesses poucos minutos, e quando as
pessoas que filmamos saem de quadro é porque
acabou e talvez aquilo nunca mais se repita. Se desejamos
o mundo, é no acontecimento que ele aparece,
nesses encontros que não dominamos, nessas misturas
em que o sentido não se fecha e nos demanda.
Voltemos aos títulos; Da Janela do Meu Quarto
e Man.Road.River., nos dois casos os autores
se abstém em dizer mais do que os filmes e do
que da situação de filmagem. A única
diferença é espacial. O título
do filme de Cao opta por falar do seu lugar de autor
durante a ação que filma, enquanto Marcellvs
L. escolhe apontar para a imagem e não para o
lugar da câmera. A diferença importa na
medida em que esses "lugares" são intercambiáveis,
ou seja, tanto o trabalho de Cao quanto o vídeo
de Marcellvs L. estão apontando nas duas direções;
o que olha e o que é olhado, é entre esses
dois pólos que os títulos transitam. É
sobre esses pólos que os filmes falam, sobre
quem vê o observador e sobre quem é
visto; controle e descontrole sobre o que é olhado.
Me permito então esta liberdade de quase misturar
os dois filmes para desenvolver algumas idéias
sobre esse lugar do artista em relação
ao que é filmado. Primeiramente me parece que
o fato de estas obras receberem o destaque que agora
recebem não está desligado de uma procura
contemporânea por imagens e mediações
entre homem e natureza que sejam maquínicas,
através de computadores ou câmeras, mas
que não se reduzam à simples duplicação
do mundo conhecido ou à substituição
da realidade por um mundo virtual. Nos dois vídeos
que estamos trabalhando, a imagem se faz porque há
uma mediação maquínica entre artista
e mundo, mas é um mundo real que aparece, que
não é duplo da realidade nem pura virtualidade,
e mais; sem a medição, sem essa experiência
com o fato e a máquina, simultaneamente, não
haveria nem o acontecimento, nem a experiência
estética, seja para o autor, seja para o espectador.
Uma das características da imagem contemporânea
para pensadores como o italiano Gianni Vattimo, Gilles
Deleuze ou o francês Serge Daney é o fato
de não podermos pensar a realidade independente
da presença destas imagens. Vattimo em 1989 escreve;
"Se temos uma idéia da realidade, esta,
não pode ser entendida como um dado objetivo
que se situe a um nível inferior, para lá
das imagens que nos dão os media"2,
enquanto o filósofo francês Gilles Deleuze,
em carta a Serge Daney, aponta para o mesmo estatuto
da imagem: "Não mais: o que há para
ver por trás da imagem? Nem: como ver a própria
imagem? Mas: como se inserir nela, como deslizar agora
sobre outras imagens, já que o fundo da imagem
é sempre já uma imagem, e o olho vazio
é uma lente de contato?"3.
Se a imagem tradicionalmente foi imagem de algo, hoje
ela é este algo; tão parte do mundo quanto
a natureza. Como se as imagens pudessem existir independentes
da ação humana. As imagens tornam-se assim
objetos que podem se tornar novas imagens. Se as imagens
são os objetos a serem filmados, fotografados,
que realidade elas tem sem a intervenção
humana, do artista, no caso?
É então com esta "erosão no
princípio de realidade" que Da Janela
do Meu Quarto e Man.Road.River. lidam. A
maior aposta destas produções talvez seja
forjar, através da experiência estética
mediada por dispositivos eletrônicos, o aparecimento,
mesmo que fugidio, de algo que nos ultrapassa a beleza,
o estranho, o insólito mas que ao mesmo tempo
está no mundo, está no que nos cerca,
é parte do que vivemos.
Cezar Migliorin
1.
Peter Pal-Pelbart, Vida Capital: Ensaios de biopolítica.
Ed. Iluminuras, 2003.
2. Gianni Vattimo, A sociedade transparente.
Edições 70, 1989.
3. Gilles Deleuze: "Carta a Serge
Daney: Otimismo, Pessimismo e Viagem" in
Conversações. Editora 34, 1992.
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