Cada filme latino-americano
que ecoa pelo mercado internacional, com maior ou menor
barulho, tende a colocar sempre uma questão extra-especificidade
da obra (mesmo sem ter essa intenção): por uma questão
econômica e política, sempre se tenta especular, muitas
vezes tateando no escuro, sobre a identidade audiovisual
desse grupo de países (a América Latina). Nesse esforço
intelectual, é preciso admitir as demandas em pauta
como parte do jogo: as cinematografias periféricas não
se impõem na vitrine da butique das imagens sem levar
em conta qual o lugar reservado para elas. E é sobre
isso que, quando simpósios sobre o tema Cinema Latino
Americano são realizados, tanto se discute: que tipo
de cinema latino-americano o resto do mundo quer ver?
Certamente, não há um único – não se pode igualar Cidade
de Deus e O
Filho da Noiva.
Mas certamente existem filmes que, na escolha dos temas
e de seus tratamentos, pensam-se de forma mais ampla,
para além da autoralidade e da particularidade das questões.
As próprias operações de produção modelam essas características.
Tomemos o exemplo de Machuca.
Parece mais ou menos óbvio que, sendo a produção fruto
de uma sociedade com empresas de outros países (Inglaterra,
Espanha), seu internacionalismo dita certos procedimentos
– ou pelo menos aprova apenas certos procedimentos,
aqueles dentro do que se pode mostrar. O maior deles
é uma domesticação dos conflitos, sempre buscando deixar
o espectador confortável, reconhecendo-se como parte
do “time do bem”, sem jamais questionar sua própria
postura – exatamente o contrário do que propõem O
Invasor e Cronicamente Inviável, para citar duas
exceções muito diferentes entre si, ambos apoiados em
uma crueldade que, antes de ser tema, está também e
principalmente na forma: na exposição-denúncia de uma
verdade sem panos quentes, sem a disposição de tornar
tudo mais digerível.
Voltando a Machuca.
Garoto branquelo e gorduchinho, com traços de ascendência
européia e sinais de padrão classe-média, aproxima-se
de garoto moreno e magro, com traços de ascendência
indígena e sinais de padrão-pobreza. A amizade entre
eles constrói uma escada entre os dois andares da pirâmide
social, proporcionada pela política igualitária de um
colégio religioso de direção britânica (o projeto catequisador-iluminista
europeu agindo na selvageria de classes da América Latina).
Ambos serão mal vistos e mal tratados pelos colegas,
que conservam uma ordem baseada no contraste. Os pequenos
reacionários não aprovam a conexão entre o não-conectável.
Esse racha na escola, sem chance de conciliação, reproduz
em menor escala a dicotomia político-ideológica da sociedade
chilena em 1973 (a tensão entre os defensores e os agressores
do regime de esquerda comandado por Salvador Allende,
em crise). O protagonista branco e burguês propõe, com
sua aproximação do menino moreno e favelado e como compensação
para a radicalização do separatismo de classe, uma política
de boa vizinhança para abrandar os efeitos das diferenças
entre ele e o amigo (entre a classe dele e a do amigo).
Propõe assim a anestesia dos conflitos gerados pela
desigualdade. Propõe ainda um analgésico para consciências
culpadas, que age pouco sobre o suposto beneficiado
pelo abraço social. Propõe também uma mudança individual
como atenuante para a impossibilidade da transformação
estrutural.
Mas o projeto de transformação é inviável, assim como
a política de boa vizinhança, quando os valores de classe
insistem em vir à tona. Diante da explicitação das diferenças,
burguês e pobre são lembrados de suas condições (opostas
e em conflito): o garoto almofadinha recebe o “outro”
em sua casa, compartilha com ele os excessos de uma
festinha burguesa, empresta seu tênis caro, mas, no
primeiro conflito de interesses (em torno de sua bicicleta,
ali uma simbologia), reproduz o discurso reacionário
do círculo onde foi criado. Volta a se colocar como
burguês quando, posto na parede por um militar, lá na
favela onde o amigo e sua família levam tiros, safanões
e pontapés, decide tirar o seu da reta para se salvar.
Nesse sentido, o da inviabilização da construção da
ponte para conectar os dois andares da pirâmide social,
a figura de uma garota, esquerdista por necessidade
e não por boa consciência, é fundamental para a manter
aceso os conflitos e diferenças. A mocinha também é
moradora da favela. Se é ela o motivo dos suspiros do
protagonista burguês, também é ela que o lembra de sua
posição, que demarca sem meias palavras as fronteiras
sociais, que incita a tensão na convivência entre as
diferenças, recusando-se a colocar panos quentes. Sua
crença na transformação pelo embate e pela pressão,
sem deixar de lado o pragmatismo da sobrevivência, tem
como lado contrário seu tio, coadjuvante no limite da
figuração, alcoólatra, figura negativa, apesar ou porque
fala com a consciência histórica: não crê em transformação
alguma e conhece na pele o imobilismo. Não é por acaso
que os ricos são brancos, que os pobres são morenos,
que pesa sobre aquela circunstância, em última instância,
uma lógica de exploração secular. Ao final de Machuca,
quando o abismo volta a ser escancarado pelo golpe militar,
esse personagem impotente, angustiado e agressivo por
conta de sua consciência, será a voz da verdade: o imobilismo
continuará.
Se o pacto do apaziguamento social não se cumpre, por
culpa de forças reacionárias civis e militares (mais
civis que militares), o efeito desse fracasso é a cisão
e o confronto. Machuca
afirma-se quase o tempo inteiro, portanto, como um luto
pelo fracasso do acordo social – acordo esse cujas bases
são dadas pela classe dominante e não pela pressão da
classe dominada. Cabe ao colégio pago abrir as portas
para quem não pode pagar, cabe ao menino branco e burguês
estender a mão para o moreno pobre, cabe às elites fazer
as reformas para se evitar uma revolução ou uma crise.
É com esse discurso ideológico que Machuca
constrói sua dramaturgia humanista. As mudanças estão
na mão das elites – não da organização popular. É uma
visão.
Havendo o fracasso da conciliação, tema principal do
diretor Andrés Wood, é preciso encontrar as razões dele.
A significação política de cada figura humana, umas
mais, outras menos, nos revelará quais são as bactérias
do organismo social - e quais são os anti-corpos. Todos
giram em torno da vivência do protagonista. Entre as
bactérias, localizamos a mãe adúltera e materialista,
o amante rico e velho dela, os colegas de pele clara
na escola, o namorado fascistóide da irmã, os pais avessos
à política igualitária do colégio – todos caricaturas
em maior ou menor grau. Entre os anti-corpos, além do
menino (em formação como tal), há o pai progressista
(e desperdiçado pelo filme) e o padre domesticador (civilizador
europeu).
Mesmo tentando relativizar o empobrecimento humano e
o significado maniqueísta impostos pelos estereótipos
criados pelo simbolismo político-social dos personagens,
que são etiquetados rapidamente (progressistas de um
lado, reacionários de outro), Machuca
não disfarça o esquematismo dessa operação de acúmulo
de significados para alguns dos indivíduos mais valorizados
pelo roteiro e pela montagem. A ambigüidade de alguns
seres, como a mãe e o protagonista (em primeiro plano),
ganham setas indicativas e fosforecentes para serem
entendidas como tal.
Andrés Wood está claramente empenhado em articular opções
narrativas que buscam atenuar o desconforto derivado
dos conflitos vividos por personagens e pelo país –
com a música “amolece-coração e pesa-consciência” sobretudo,
mas também com a atmosfera de brincadeira de criança,
que dá ar lúdico para o drama pessoal e coletivo colocado
pelo diretor.
Chegamos aqui à uma encruzilhada. Se a valorização,
em momentos distintos, dessas situações lúdicas é anestésica,
cabe reconhecer que estas são também mais livres, desvinculadas
das algemas colocadas no filme pelas etiquetas sociais.
Nessas passagens, o protagonista, o amigo e sua paquera
são indivíduos, não apenas setas indicativas. A imagem
escapa da pedagogia dramática e política, a significação
prévia é deixada de lado para os personagens ganharem
um pouco de emancipação. Andres Wood assume assim sua
dívida com Truffaut (o de Os
Incompreendidos) e ignora temporariamente a herança
de Louis Malle (o de Adeus Meninos). A vida fala mais alto,
temporariamente, que a visão sobre a sociedade.
A câmera de Wood é discreta, movimenta-se sem se fazer
notar, está atenta ao espaço dos personagens, sem adotar
o descritivismo. A luz muda conforme o ambiente, mas,
obedecendo ao esquematismo do roteiro, cai na dicotomia
quando dá uma geral na favela: na primeira aparição,
o ambiente está dourado (cheio de luz e calor). Momento
Allende. Na aparição já próxima ao final, surge cinzenta,
com as cores retiradas (fria e nebulosa). Momento golpe
militar. Esse tatibitate coloca o filme dentro do modelo
de arte pedagógica e de neo-esquerda que atende uma
demanda por “olhares de bom coração e cheios de diplomacia”.
Machuca é
mais um colete em forma de lamento contra o risco do
conflito, da dor dilacerante, do trauma não cicatrizável
em duas horas de terapia social. Talvez seja o limite
para se participar do fluxo oficial das manifestações
audiovisuais.
Cléber Eduardo
|