DESVENTURAS EM SÉRIE
Brad Silberling, Lemony Snicket's A series of unfortunate events, EUA, 2004

O que marca os livros da série de Lemony Snicket (que, nos EUA, já estão na décima-primeira aventura, sendo que este filme mistura elementos de três deles) é justamente a tentativa de retomar a magia dos contos-de-fada, inclusive pelo seu lado mais “escuro”, mas sempre com um olhar inegavelmente sabedor de toda a tradição e remodelagem do mesmo ao longo dos anos (séculos, até), principalmente com sua popularização pela via do cinema. Uma marca dos livros (mantida aqui no filme) é justamente um suposto aviso, evidentemente sarcástico, que adverte o leitor/espectador para o fato de que, se ele busca apenas “mais uma estória de elfos fofinhos”, deve ir buscar em outro lugar (chegando mesmo a dizer, lá pelos vinte minutos de filme, que “ainda há tempo para o espectador sair da sala e ir ver um outro filme”). Pois a adaptação que Brad Silberling aqui dirige retira justamente o seu melhor e o seu pior desta tentativa sempre auto-consciente de remeter a uma outra maneira de olhar o que hoje se constitui o gênero do filme infantil.

O melhor do filme é justamente a sua crença na possibilidade de criar um universo intensamente mágico e fascinante, onde a imaginação do espectador possa funcionar em conjunto com a das três crianças que protagonizam o filme. Trabalhando com uma equipe que tem, por exemplo, Barry Sonnenfeld (A Família Addams, Homens de Preto) como produtor, e colaboradores constantes de um cineasta como Tim Burton na fotografia e direção de arte (Emmanoel Lubezcki e Colleen Atwood, que trabalharam juntos, por exemplo, em A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça – para passar uma idéia do tipo de atmosfera que são capazes de criar), a grande sacada de Silberling é apostar na criação deste universo, ao mesmo tempo atemporal e sem distinção geográfica precisa, onde o quesito do maravilhamento visual (e sonoro – o cuidado com a trilha e com os diálogos é impressionante) é considerado central, até mesmo em relação à narrativa do filme. Ver um filme infantil onde clima e sonho parecem valer mais do que moralismos e golpes de roteiro (isso, apesar do desfecho um tanto lacrimoso – quase em desacordo com o que vem antes), é sempre uma experiência de inegável prazer.

No entanto, o que não se pode negar é que em muitos momentos, o que é criação de clima se torna um certo excesso auto-indulgente onde o filme parece mais fascinado com sua própria carpintaria criativa do que o espectador pode estar. Há uma série de planos e trocas de diálogos onde se cruza a tênue fronteira entre a autêntica surpresa e fascínio e uma sensação de que o filme parece dizer, mais do que o necessário: “olhem para mim, eu sou tão especial e diferente, tão excêntrico e novidadeiro!” Se há uma encarnação em cena desta faceta do filme, ela é a atuação de Jim Carrey: em momentos (especialmente quando representa o falso assistente do Tio Morty, Stephano), ele é engajador e divertido; em outros (em especial, no primeiro ato, quando se apresenta o Conde Olaf), ele parece simplesmente estar testando todas as suas capacidades histriônicas e camaleônicas, num papel muito mais exibido do que a serviço do filme. O mesmo vale para a personagem da irmã mais nova, cujo recurso de ter seus grunhidos pré-linguagem falada “traduzidos” por legendas parece genial nas primeiras inserções, e depois vai sendo usado cada vez mais como um truque fácil de risada ou de tirar um “aaaah, que fofinho!” da parte da platéia.

Mas, é preciso admitir que, qualquer possível má vontade à parte, os primeiros momentos superam os segundos, ou pelo menos são mais fortes do que estes – e o filme, na maior parte, consegue o encantamento. É de se notar que Silberling tem uma curiosa carreira, na qual seja no seu filme mais “sério” (o muito subestimado Vida que Segue), seja no seu esforço infantil anterior (Gasparzinho), a temática da morte e da dificuldade de lidar com ela para os que continuam vivos parece onipresente (seu outro filme, não por acaso, é a adaptação de Asas do Desejo, Cidade dos Anjos). Não é diferente neste Desventuras em Série, onde a perda de entes queridos é tema recorrente – o que explica ainda mais um clima bastante pesado que o filme tenta atingir (e que, claramente, já vinha dos livros originais). Sua grande qualidade é não renegar esta parcela escura, tão presente nos contos-de-fada, e conseguir mesclá-la com uma trama também cheia de adoráveis brincadeiras (na qual as participações de Billy Connolly e Timothy Spall talvez sejam os grandes momentos), e de eventuais referências bem mais adultas do que infantis (como é o caso de toda a questão que envolve a noção de atuação/encenação e a figura do vilão, o Conde Olaf). Se pode-se dizer que Desventuras em Série promete ainda mais do que consegue cumprir, é principalmente porque o filme realmente promete muito – mas, talvez, se um segundo filme da série for feito, encontre-se uma unidade mais coesa de andamento que potencialize suas qualidades e diminua estes eventuais problemas.

Eduardo Valente