O que marca os livros da série
de Lemony Snicket (que, nos EUA, já estão na décima-primeira
aventura, sendo que este filme mistura elementos de
três deles) é justamente a tentativa de retomar a magia
dos contos-de-fada, inclusive pelo seu lado mais “escuro”,
mas sempre com um olhar inegavelmente sabedor de toda
a tradição e remodelagem do mesmo ao longo dos anos
(séculos, até), principalmente com sua popularização
pela via do cinema. Uma marca dos livros (mantida aqui
no filme) é justamente um suposto aviso, evidentemente
sarcástico, que adverte o leitor/espectador para o fato
de que, se ele busca apenas “mais uma estória de elfos
fofinhos”, deve ir buscar em outro lugar (chegando mesmo
a dizer, lá pelos vinte minutos de filme, que “ainda
há tempo para o espectador sair da sala e ir ver um
outro filme”). Pois a adaptação que Brad Silberling
aqui dirige retira justamente o seu melhor e o seu pior
desta tentativa sempre auto-consciente de remeter a
uma outra maneira de olhar o que hoje se constitui o
gênero do filme infantil.
O melhor do filme é justamente a sua crença na possibilidade
de criar um universo intensamente mágico e fascinante,
onde a imaginação do espectador possa funcionar em conjunto
com a das três crianças que protagonizam o filme. Trabalhando
com uma equipe que tem, por exemplo, Barry Sonnenfeld
(A Família Addams, Homens de Preto) como
produtor, e colaboradores constantes de um cineasta
como Tim Burton na fotografia e direção de arte (Emmanoel
Lubezcki e Colleen Atwood, que trabalharam juntos, por
exemplo, em A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça –
para passar uma idéia do tipo de atmosfera que são capazes
de criar), a grande sacada de Silberling é apostar na
criação deste universo, ao mesmo tempo atemporal e sem
distinção geográfica precisa, onde o quesito do maravilhamento
visual (e sonoro – o cuidado com a trilha e com os diálogos
é impressionante) é considerado central, até mesmo em
relação à narrativa do filme. Ver um filme infantil
onde clima e sonho parecem valer mais do que moralismos
e golpes de roteiro (isso, apesar do desfecho um tanto
lacrimoso – quase em desacordo com o que vem antes),
é sempre uma experiência de inegável prazer.
No entanto, o que não se pode negar é que em muitos
momentos, o que é criação de clima se torna um certo
excesso auto-indulgente onde o filme parece mais fascinado
com sua própria carpintaria criativa do que o espectador
pode estar. Há uma série de planos e trocas de diálogos
onde se cruza a tênue fronteira entre a autêntica surpresa
e fascínio e uma sensação de que o filme parece dizer,
mais do que o necessário: “olhem para mim, eu sou tão
especial e diferente, tão excêntrico e novidadeiro!”
Se há uma encarnação em cena desta faceta do filme,
ela é a atuação de Jim Carrey: em momentos (especialmente
quando representa o falso assistente do Tio Morty, Stephano),
ele é engajador e divertido; em outros (em especial,
no primeiro ato, quando se apresenta o Conde Olaf),
ele parece simplesmente estar testando todas as suas
capacidades histriônicas e camaleônicas, num papel muito
mais exibido do que a serviço do filme. O mesmo vale
para a personagem da irmã mais nova, cujo recurso de
ter seus grunhidos pré-linguagem falada “traduzidos”
por legendas parece genial nas primeiras inserções,
e depois vai sendo usado cada vez mais como um truque
fácil de risada ou de tirar um “aaaah, que fofinho!”
da parte da platéia.
Mas, é preciso admitir que, qualquer possível má vontade
à parte, os primeiros momentos superam os segundos,
ou pelo menos são mais fortes do que estes – e o filme,
na maior parte, consegue o encantamento. É de se notar
que Silberling tem uma curiosa carreira, na qual seja
no seu filme mais “sério” (o muito subestimado Vida
que Segue), seja no seu esforço infantil anterior
(Gasparzinho), a temática da morte e da dificuldade
de lidar com ela para os que continuam vivos parece
onipresente (seu outro filme, não por acaso, é a adaptação
de Asas do Desejo, Cidade dos Anjos).
Não é diferente neste Desventuras em Série, onde
a perda de entes queridos é tema recorrente – o que
explica ainda mais um clima bastante pesado que o filme
tenta atingir (e que, claramente, já vinha dos livros
originais). Sua grande qualidade é não renegar esta
parcela escura, tão presente nos contos-de-fada, e conseguir
mesclá-la com uma trama também cheia de adoráveis brincadeiras
(na qual as participações de Billy Connolly e Timothy
Spall talvez sejam os grandes momentos), e de eventuais
referências bem mais adultas do que infantis (como é
o caso de toda a questão que envolve a noção de atuação/encenação
e a figura do vilão, o Conde Olaf). Se pode-se dizer
que Desventuras em Série promete ainda mais do
que consegue cumprir, é principalmente porque o filme
realmente promete muito – mas, talvez, se um segundo
filme da série for feito, encontre-se uma unidade mais
coesa de andamento que potencialize suas qualidades
e diminua estes eventuais problemas.
Eduardo Valente
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