No cinema, já disse Jean
Louis Schefer, o mais decisivo não é o
movimento, a mobilidade geral do mundo, "mas a
inquietude acrescida a esse movimento" (cf. L’Homme
ordinaire du cinéma, livro publicado na França
em 1980). Mais do que espectadores dos objetos que se
movem, somos conhecedores de sua morte premeditada pela
imagem. É um pouco como a chama de uma vela,
que desfruta tal brilho e tal intensidade, mas que em
algum momento, consumido seu suporte, se apaga. Essa
chama pode muito bem ser aquela com que brinca Fisalina
(Leonor Baldaque, doce e bela como sempre), protagonista
da terceira e última parte de Inquietude:
ela passa seus "dedos de ouro" sobre a chama
da vela, tomando intimidade com a natureza - através
de um dos "quatro elementos fundamentais"
- e prenunciando seu próprio destino, que é
a desaparição. O que fica claro no filme
de Manoel de Oliveira, contudo, é que a desaparição
implica necessariamente uma contrapartida, ou seja,
a aparição de alguma outra coisa no lugar
daquilo que se foi. Sai tristeza, entra felicidade -
e a recíproca é verdadeira. O que sumiu,
por sua vez, também não se resume ao vazio:
quem desaparece de um pólo, emerge no outro.
Fisalina desaparece para uma parte do mundo (a saber,
a aldeia a que pertencia), mas surge inteira para seu
novo habitat, junto à relva, junto aos rios (que
são a melhor expressão do fluxo, da vida
que se refaz constantemente ao invés de se imobilizar).
Da mesma forma, o pai insiste com o filho para que este
se suicide, já nos primeiros minutos de filme,
pois essa é a única forma de se imortalizar
(sair da vida e entrar na História). Na ótica
do pai, cientista ultrapassado pela própria ciência,
somente saindo da vida no auge da notoriedade, e antes
do esquecimento, seu filho poderá eternizar-se.
A ciência vive do amanhã, mas os cientistas
morrem um dia, ou enfrentam suas limitações
- e as de suas teorias - mesmo em vida.
Apesar de começar sob
o peso amargo (e visto de forma tragicômica) do
esquecimento, Inquietude aos poucos se revela
um fascinado cultivo da memória. Ou, valorizando
seu potencial filosófico, o filme constitui um
excelente ensaio sobre a duração (dos
corpos, dos sentimentos, do cinema, da vida). São
três histórias com perfeita ductilidade
entre si, uma puxando a outra e confrontando diversas
camadas (não apenas narrativas, mas também
fotográficas e cenográficas). Ao início
e ao fim encontram-se os lamentos dos esquecidos (o
velho cientista, a antiga mãe do rio), mas no
meio existe a revelação - na esteira da
tentativa sempre frustrada de engessar o amor, de reter
sua virtual transformação - de que é
preciso preencher o tempo com ações, de
modo a fazer do próprio presente a eternidade
(inalcançável enquanto meta idealizada).
Ritualizados ou não, os gestos - que, em última
análise, criam o tempo (porquanto dão
sua impressão) - devem mover a vida para frente,
apreender a passagem do tempo como um acúmulo
de tesouros pessoais, a memória sendo uma espécie
de caixa de ferramentas do presente. É talvez
por isso que, jovial e elegante, o nonagenário
Manoel de Oliveira aparece esbanjando vivacidade ao
protagonizar uma dança (acompanhado, naturalmente),
ratificando a idéia de que somos tão mais
vivos quanto mais soubermos aproveitar o tempo.
Como nos melhores momentos de
Ozu, Inquietude consegue expor o emocional de
seus personagens através de um rico jogo visual
que, repetindo um mesmo enquadramento num mesmo local,
revela sutilmente, por exemplo, a ausência de
um objeto cuja anterior permanência física
no cenário traduzia uma presença outra,
impalpável (felicidade, amor, amizade, paixão...).
Através dessa ausência exterior, detalhe
factício, percebemos a mudança de um estado
de alma. "C’est un détail", diz Suzy
ao olhar para o ramo de flores que fará justamente
esse percurso cenográfico descrito acima: das
mãos dela para o cenário, dali para não
se sabe onde. Suzy é a prostituta interpretada
por Leonor Silveira (com um rosto a meio caminho entre
a mais melancólica Greta Garbo e a mais diabolicamente
sedutora femme fatale). A "pobre Suzy",
como repete sempre que pode o personagem de Diogo Dória,
apaixonado por ela - e dominado por uma angústia
que vem do desejo de desenvolver uma relação
duradoura com uma mulher para quem o amor é vivido
na contramão da estabilidade. O mistério
em pessoa, Suzy não pode ser dele por mais de
uma noite, não pode ser retida. Há uma
ressonância, em Inquietude, da trilogia
dos "amores frustrados" que Manoel de Oliveira
começou com Benilde, ou a Virgem Mãe
(1975), continuou com Amor de Perdição
(1978) e fechou em 1981 com a obra-prima Francisca
(que marca o início de sua parceria com a escritora
Agustina Bessa-Luís, autora de boa parte dos
roteiros recentes de Oliveira e presente em Inquietude
através de A Mãe de um Rio,
peça literária de que foi tirada a inspiração
para a terceira parte do filme). Ao menos do ponto de
vista masculino, as histórias do meio e do fim
são crônicas de amores perdidos, terminando
com a desolação da figura sentimentalmente
lesada no processo (o rapaz que antes se declarara a
Fisalina badalando os sinos desesperadamente, Diogo
Dória imerso na penumbra e apoiado fragilmente
à sua escrivaninha).
A tática de subtração
que Oliveira desenvolve ao longo da sua carreira, muito
bem expressa em Inquietude (planos longos, pouca
movimentação de câmera, poucos planos
fechados, profusão de detalhes, sutilezas de
mise-en-scène), é diferente de
um maneirismo par défaut, de um excessivo
retraimento que leva o cineasta a somente (re)encontrar
seu estilo uma vez abolida a tentação
de exercitá-lo barrocamente. Em Manoel de Oliveira,
a questão é outra, pois o conhecimento
de quem acompanhou de dentro as diversas fases da história
do cinema não repercute em sofrimento. Ele filma
com a sabedoria puncionada de uma idade avançada
da imagem, mas sem a angústia de quem pensa que
tudo já foi filmado e que a cada nova imagem
é necessário passar por uma verdadeira
dor de parto. No seu modo de encenar, há simultaneamente
uma absurda complexidade de dispositivo e uma primitividade
griffithiana pré-Intolerância. Em
cada filme de Oliveira, a afirmação de
que o cinema está sempre se descobrindo - e sempre
se mantendo um enigma fronteiriço entre diversas
formas de arte, de vida e de pensamento. Inquietude,
não por outro motivo, vai da tentativa de desvendar
as forças da natureza (os cientistas lá
do início) à conquista de um misturar-se
a ela (a jovem Fisalina, que se torna "mãe
de um rio", este tendo brotado praticamente de
seus pés). Entre morte e vida, passado e presente,
gesto e fala, natureza e artifício... cinema.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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