Não deixa de ser um tanto fascinante
o processo pelo qual passou a série baseada no bonequinho
assassino Chucky, desde sua estréia em 1988 com o primeiro
Brinquedo Assassino, de Todd Holland: trata-se
de caso quase único de troca radical de registro de
gênero dentro de uma “franquia cinematográfica”, onde
toma-se para si mesmo o direito de fazer sua própria
paródia (pode-se argumentar que a série de filmes de
Freddy Krueger também incorporou elementos paródicos,
mas nunca, neste caso, abandonou-se de todo o registro
do horror/suspense). Se “puristas de Chucky” houvessem
(espero sinceramente que não), poderiam estes reclamar
que a série estava perdendo a sua “alma” (com trocadilho
com a odisséia do personagem). No entanto, há um fato
pouco sabido para quem não conhece melhor os envolvidos
com a série: o mesmo Don Mancini que estréia na direção
neste novo filme é o criador do personagem, e roteirista
de todos os outros filmes da série. Ou seja: não se
trata, de maneira alguma, de uma criação de um autor
desvirtuada pelo sistema produtivo, mas exatamente o
oposto disso – um autor que percebe que o caminho de
sua maior criação (sim, porque, goste-se ou não dos
filmes, é inegável que Chucky é uma figura de referência
no imaginário coletivo do cinema de terror moderno)
leva necessariamente a uma incorporação de elementos
auto-paródicos, abraçando com alegria esta possibilidade.
Neste sentido, este O Filho de Chucky é, de fato,
uma continuação de seu antecessor, A Noiva de Chucky,
sendo que os dois em conjunto formam quase uma dupla
à parte dos três filmes anteriores (como a própria mudança
de lógica dos títulos comprova) – onde note-se que as
duas continuações anteriores de Brinquedo Assassino
pareciam quase paródias involuntárias (o que, tendo
em vista as inclinações atuais de Mancini, talvez precise
ser revisto no que se refere ao quesito “involuntário”).
Só que neste novo filme pode-se dizer que, mesmo em
suas referências, Mancini dá um passo adiante em relação
ao filme anterior (de Ronny Yu): se aquele podia ser
entendido como uma paródia que incorporava elementos
de clássicos do horror (como a referência do título
à A Noiva de Frankenstein deixa bem claro) para
brincar com a relação destes filmes com estes personagens
“de brinquedo”, aqui Mancini presta sua homenagem mais
direta não apenas ao horror clássico, mas principalmente
à sua vertente mais assumidamente “tosca”. Não por acaso,
ao colocar em cena um personagem com dificuldades de
definição quanto à sua sexualidade, ele o nomeia Glen
(e, em sua versão feminina, Glenda): referência direta
a um dos clássicos de Ed Wood, cineasta-referência maior
para tudo que diz respeito ao cinema trash (usando-se
o termo com todas as ressalvas quanto às intenções reais
de Wood, em nada relacionadas ao gênero que se estruturou
com este nome depois).
É por isso que O Filho de Chucky é, antes de
tudo, um filme sem vergonhas: nenhuma piada é de mau
gosto o suficiente para não ser encenada, nenhum efeito
visual é tosco o suficiente que deva ser evitado, nenhum
senso de “ridículo” precisa ser respeitado. Visto desta
forma, entendemos perfeitamente a presença no elenco,
em participação especial, de John Waters: mais que apenas
uma homenagem a outro nome essencial do cinema-lixo
(este aqui, sim, já na vertente auto-consciente – ainda
que com motivações um tanto radicais, especialmente
nos anos 70), sua presença demonstra o desejo do filme
incorporar um pouco (ainda que em chave bem mais inofensiva)
do humor iconoclástico e desrespeitoso deste cineasta.
Isso pode ser percebido, especialmente, no retrato do
meio de produção hollywoodiano que o filme pinta, onde
não sobra pedra sobre pedra em algumas das mais ácidas
piadas vistas em muito tempo (por exemplo: sobre o casting
do papel principal do filme Holy Mary!, filme-bíblico
sobre a Virgem Maria que, dentro da história, o rapper
Redman irá dirigir, este faz apenas uma exigência:
“she’s gotta be hot!” – “ela tem que ser gostosa!”).
Neste registro demolidor de uma Hollywood completamente
grotesca e “de segundo escalão” que o filme faz, é preciso
destacar-se em especial a auto-paródia radical que Jennifer
Tilly opera. Interpretando a si mesma, não satisfeita
em rir de sua própria imagem (há uma enormidade
de piadas com sua luta com a balança; ou sobre sua voz,
digamos, peculiar), ela atira para todos os lados no
seu auto-retrato como uma “ex-celebridade” desesperada
por qualquer oportunidade de voltar às luzes da ribalta
– e, no embalo, vai sobrando para um monte de gente,
como nas referências jocosíssimas ao seu papel de lésbica,
em dupla com Gina Gershon, no filme dos irmãos Wachowski,
Bound. É por isso tudo que, nos seus melhores
momentos, é uma delícia assistir a O Filho de Chucky
– afinal como resistir a um filme que começa com créditos
mostrando uma corrida de espermatozóides para fecundar
o filho de um boneco, ou cuja primeira sequência, típica
de um slasher movie, revela-se como um pesadelo,
só que ao invés da vítima, um pesadelo do assassino
- sendo que este é um boneco, e o assustador seria uma
linda menininha loira.
Dito isso, é preciso concordar que o filme é altamente
irregular, e que, uma vez que assume que sua trama não
faz mesmo muito sentido (e nisso perde alguns lances
bastante perturbadores sobre o personagem do filho de
Chucky – genuinamente estranho, mesmo em chave cômica),
sendo apenas uma desculpa para o desfile de one-liners
(algumas ótimas, como o trocadilho entre “violence”
e “violins”, onde Chucky tenta convencer o filho que
violência não é uma coisa ruim), acaba ficando à mercê
do nível eventual das piadas. Que, quando acertam o
alvo (que vai, além de Hollywood, a uma paródia muito
aguda dos “viciados em recuperação”, chegando às
chacotas com as responsabilidades do que seria educar
uma criança no mundo de hoje), são momentos realmente
raros de comédia “do mal” – mas que, quando erram, acabam
criando um inevitável tédio ali pelo metade do filme.
Fiquemos, porém, com os bons momentos que, se não conseguem
por si mesmos colocar o filme no alto patamar recente
da comédia “mal-criada” americana (pensemos em Falando
de Sexo, Papai Noel às Avessas, irmãos Farrelly,
Will Ferrell-Ben Stiller), sem dúvida não relegam o
filme ao desinteresse que a série Chucky teria se ainda
se levasse a sério.
Eduardo Valente
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