O FILHO DE CHUCKY
Don Mancini, Seed of Chucky, EUA, 2004

Não deixa de ser um tanto fascinante o processo pelo qual passou a série baseada no bonequinho assassino Chucky, desde sua estréia em 1988 com o primeiro Brinquedo Assassino, de Todd Holland: trata-se de caso quase único de troca radical de registro de gênero dentro de uma “franquia cinematográfica”, onde toma-se para si mesmo o direito de fazer sua própria paródia (pode-se argumentar que a série de filmes de Freddy Krueger também incorporou elementos paródicos, mas nunca, neste caso, abandonou-se de todo o registro do horror/suspense). Se “puristas de Chucky” houvessem (espero sinceramente que não), poderiam estes reclamar que a série estava perdendo a sua “alma” (com trocadilho com a odisséia do personagem). No entanto, há um fato pouco sabido para quem não conhece melhor os envolvidos com a série: o mesmo Don Mancini que estréia na direção neste novo filme é o criador do personagem, e roteirista de todos os outros filmes da série. Ou seja: não se trata, de maneira alguma, de uma criação de um autor desvirtuada pelo sistema produtivo, mas exatamente o oposto disso – um autor que percebe que o caminho de sua maior criação (sim, porque, goste-se ou não dos filmes, é inegável que Chucky é uma figura de referência no imaginário coletivo do cinema de terror moderno) leva necessariamente a uma incorporação de elementos auto-paródicos, abraçando com alegria esta possibilidade.

Neste sentido, este O Filho de Chucky é, de fato, uma continuação de seu antecessor, A Noiva de Chucky, sendo que os dois em conjunto formam quase uma dupla à parte dos três filmes anteriores (como a própria mudança de lógica dos títulos comprova) – onde note-se que as duas continuações anteriores de Brinquedo Assassino pareciam quase paródias involuntárias (o que, tendo em vista as inclinações atuais de Mancini, talvez precise ser revisto no que se refere ao quesito “involuntário”). Só que neste novo filme pode-se dizer que, mesmo em suas referências, Mancini dá um passo adiante em relação ao filme anterior (de Ronny Yu): se aquele podia ser entendido como uma paródia que incorporava elementos de clássicos do horror (como a referência do título à A Noiva de Frankenstein deixa bem claro) para brincar com a relação destes filmes com estes personagens “de brinquedo”, aqui Mancini presta sua homenagem mais direta não apenas ao horror clássico, mas principalmente à sua vertente mais assumidamente “tosca”. Não por acaso, ao colocar em cena um personagem com dificuldades de definição quanto à sua sexualidade, ele o nomeia Glen (e, em sua versão feminina, Glenda): referência direta a um dos clássicos de Ed Wood, cineasta-referência maior para tudo que diz respeito ao cinema trash (usando-se o termo com todas as ressalvas quanto às intenções reais de Wood, em nada relacionadas ao gênero que se estruturou com este nome depois).

É por isso que O Filho de Chucky é, antes de tudo, um filme sem vergonhas: nenhuma piada é de mau gosto o suficiente para não ser encenada, nenhum efeito visual é tosco o suficiente que deva ser evitado, nenhum senso de “ridículo” precisa ser respeitado. Visto desta forma, entendemos perfeitamente a presença no elenco, em participação especial, de John Waters: mais que apenas uma homenagem a outro nome essencial do cinema-lixo (este aqui, sim, já na vertente auto-consciente – ainda que com motivações um tanto radicais, especialmente nos anos 70), sua presença demonstra o desejo do filme incorporar um pouco (ainda que em chave bem mais inofensiva) do humor iconoclástico e desrespeitoso deste cineasta. Isso pode ser percebido, especialmente, no retrato do meio de produção hollywoodiano que o filme pinta, onde não sobra pedra sobre pedra em algumas das mais ácidas piadas vistas em muito tempo (por exemplo: sobre o casting do papel principal do filme Holy Mary!, filme-bíblico sobre a Virgem Maria que, dentro da história, o rapper Redman irá dirigir, este faz apenas uma exigência: “she’s gotta be hot!” – “ela tem que ser gostosa!”).

Neste registro demolidor de uma Hollywood completamente grotesca e “de segundo escalão” que o filme faz, é preciso destacar-se em especial a auto-paródia radical que Jennifer Tilly opera. Interpretando a si mesma, não satisfeita em rir de sua própria imagem (há uma enormidade de piadas com sua luta com a balança; ou sobre sua voz, digamos, peculiar), ela atira para todos os lados no seu auto-retrato como uma “ex-celebridade” desesperada por qualquer oportunidade de voltar às luzes da ribalta – e, no embalo, vai sobrando para um monte de gente, como nas referências jocosíssimas ao seu papel de lésbica, em dupla com Gina Gershon, no filme dos irmãos Wachowski, Bound. É por isso tudo que, nos seus melhores momentos, é uma delícia assistir a O Filho de Chucky – afinal como resistir a um filme que começa com créditos mostrando uma corrida de espermatozóides para fecundar o filho de um boneco, ou cuja primeira sequência, típica de um slasher movie, revela-se como um pesadelo, só que ao invés da vítima, um pesadelo do assassino - sendo que este é um boneco, e o assustador seria uma linda menininha loira.

Dito isso, é preciso concordar que o filme é altamente irregular, e que, uma vez que assume que sua trama não faz mesmo muito sentido (e nisso perde alguns lances bastante perturbadores sobre o personagem do filho de Chucky – genuinamente estranho, mesmo em chave cômica), sendo apenas uma desculpa para o desfile de one-liners (algumas ótimas, como o trocadilho entre “violence” e “violins”, onde Chucky tenta convencer o filho que violência não é uma coisa ruim), acaba ficando à mercê do nível eventual das piadas. Que, quando acertam o alvo (que vai, além de Hollywood, a uma paródia muito aguda dos “viciados em recuperação”, chegando às chacotas com as responsabilidades do que seria educar uma criança no mundo de hoje), são momentos realmente raros de comédia “do mal” – mas que, quando erram, acabam criando um inevitável tédio ali pelo metade do filme. Fiquemos, porém, com os bons momentos que, se não conseguem por si mesmos colocar o filme no alto patamar recente da comédia “mal-criada” americana (pensemos em Falando de Sexo, Papai Noel às Avessas, irmãos Farrelly, Will Ferrell-Ben Stiller), sem dúvida não relegam o filme ao desinteresse que a série Chucky teria se ainda se levasse a sério.

Eduardo Valente