EDUKATORS
Hans Weingartner, Die fetten jahre sind vorbei, Alemanha, 2004

Segundo seus próprios preceitos, Edukators seria, antes de tudo, um filme político – um retrato de geração oferecido por ela mesma, no calor da hora; um registro no tempo do que significaria ser “jovem” no início do século XXI e lidar com o desejo de querer “mudar as coisas”. Nesse sentido, o filme estabelece um diálogo profícuo com dois filmes de Bernardo Bertolucci: Antes da Revolução (de 1968, segundo filme do então jovem cineasta), e principalmente com o seu filme mais recente (e também em cartaz), Os Sonhadores. O interessante é que, embora em sua gênese Edukators esteja muito mais próximo como projeto do que deveria ser o sentimento do mundo de Antes da Revolução (calor da hora, juventude, etc), na verdade ele acaba soando muito mais próximo e irmanado ao filme de um Bertolucci já mais velho, como é o caso de Os Sonhadores.

É muito curioso perceber este “envelhecimento precoce” de uma juventude contemporânea, e tentar entender um pouco como ele se dá. Porque o fato é que, se no que se refere a ideais ditos “revolucionários” (o termo abunda nos três filmes) não se pode olhar o mundo hoje sem passar pelos anos 60, também é verdade que um dos mais fortes efeitos-ressaca desta década é uma combinação um tanto mal resolvida (principalmente porque paradoxal em princípio) entre nostalgia e negação. O que equivale dizer que toda a energia dos anos 60 parece ter deixado como efeito uma sensação de que os jovens nunca foram tão “significativos” como então (daí a nostalgia), mas também de que eles “perderam para a realidade, dada sua ingenuidade” (daí a negação).

Esta negação nostálgica é melhor compreendida (embora não justificada) nos filmes de autores que viveram na pele a sensação desta ressaca (como vemos no próprio filme que Bertolucci hoje nos apresenta, ou num Invasões Bárbaras), mas soa tão mais assustadora quando surge reencarnada nos filmes de uma juventude contemporânea, tomada como se fosse uma vivência própria também desta geração, como um “dado final”, uma leitura única possível daquele momento (ou, como tal, no mínimo parte do inconsciente coletivo). E é por isso que quando vemos Edukators, pensamos com muito mais mal-estar ainda no filme de Bertolucci: porque Edukators soa como um filme “de velho”, só que é feito por um jovem – e como um retrato de sua própria geração (lembremos de novo de Antes da Revolução, semelhante no impulso e muito distinto no resultado).

Para confirmar esta aproximação de enfoque do jovem alemão com o Bertolucci tardio, basta que reparemos em algumas características: primeiro (por ser mais sintomático), partamos do título dos filmes. O que fica claro na impressionante semelhança entre os títulos do novo filme de Bertolucci e este filme de Weingartner (que seria muito maior ainda, caso o distribuidor brasileiro não tivesse optado por não traduzir a expressão que o nomeia no mercado internacional) é um conceito através do qual se enxerga seus personagens não como indivíduos, mas como parte de um grupo. Ou seja, antes de figuras com subjetividades a serem construídas, tratam-se de metonímias representativas do todo de um “estado de espírito” de suas respectivas épocas. Através dos “sonhadores” de lá, ou dos “educadores” daqui, o que os diretores tentam fazer, indisfarçadamente, é um cinema de crônica sócio-política onde tudo possa ser explicado-entendido a partir destes exemplos de caso. Não há espaço, portanto, para a “confusão” da qual se compõe uma determinada pessoa – tão somente para um tipo de compreensão que é mais típica do estudo científico (sociológico, no caso).

Que não se pense que estamos afirmando aqui que os personagens não são, em ambos os filmes, eventualmente confusos em suas opções – no entanto, esta confusão não contamina nunca a narrativa, o ponto de vista, o diretor. Esta confusão é parte dos sintomas que se deseja diagnosticar nestas juventudes (sem clareza das suas idéias e de suas ações), mas nunca se torna parte integrante e essencial do próprio ato de narrar por parte dos filmes: pelo contrário, as idéias e entendimentos dos diretores são bem claros, estando bem acima dos seus personagens – que surgem então como pequenos organismos vivos, como que dispostos e aumentados grotescamente em microscópios. Pensemos, então, a título de comparação, em Antes da Revolução (ou ainda em Terra em Transe ou em Memórias do Subdesenvolvimento) – filmes nos quais, cada um à sua maneira, deixava-se ver sempre o impulso criador que ligava, umbilicalmente, diretor e personagem, mundo e narrativa.

Pensemos então (para irmos mais diretamente ao filme aqui em pauta) na forma grosseiramente banal com que Weingartner coloca na narrativa do seu filme as questões emocionais: a rasteira apresentação dos personagens, a criação quase amadora de um McGuffin para tirar um deles de cena e aproximar os outros (“vou para Barcelona e já volto”), o quase ridículo clichê da “paixonite” (uma cena de despertar romântico enquanto se pinta uma casa é de um kitsch inaceitável), o grotesco estabelecimento do conflito “corno-casal apaixonado”. Tudo é, uma vez mais, banal: parece seguir à risca um manual ruim de roteiros, de escritura de cenas e sequências de acontecimentos para conflitos emocionais. Acima de tudo, não parece haver qualquer alma ou real interesse do diretor por o que aqueles sentimentos e sensações provocam em cada um dos personagens em cena: o impulso sexual é inexistente em qualquer momento, a câmera filma cada uma das cenas com uma completa ausência de rigor ou conceito de mise-en-scène – na base do “vai como for”, “desde que esteja balançando e na mão (portanto, “jovem”), tá valendo”. Fica então a pergunta: se o diretor claramente não tem o menor interesse por aquilo tudo, porque então nós teríamos?

Porque, para Weingatner, toda esta trama é quase um estorvo no filme, uma desculpa para conseguir a identificação da platéia (ele leu em algum manual que a platéia só se identifica com dilemas românticos), e tratar do que realmente importa para ele: a validade ou não de “ideais revolucionários” para a juventude de hoje, os dilemas da contemporaneidade, e o confronto com os ideais (é lógico) da geração dos anos 60. Para a discussão chegar aí, porém, ele precisa também de uma apresentação inacreditavelmente tatibitate: a cena de ação “revolucionária” filmada com câmera na mão e rock pesado nas alturas (ai ai); a oposição da pobre garçonete oprimida pelos clientes-burgueses-malvados que a humilham e maltratam (nem dando licença para ela andar com sua bandeja!); chegando até uma cena de suposto “interesse romântico” na trama, onde acaba emergindo um constrangedor diálogo sobre política – que não soa jamais como um diálogo de personagens, e sim como uma fraca troca de textos de crônicas publicadas em jornal de grêmio estudantil.

E é só então, depois de uma hora e vinte deste desfilar de obviedades, e do mais completo tédio, que Weingartner chega ao ponto que o interessa: o confronto de gerações e ideais revolucionários, que se dá a partir do involuntário seqüestro do burguês pelos “educadores”. Ali, a mudança do filme é tão radical que chega a lembrar a estrutura dos filmes de um Apichatpong Weerasethakul, com sua divisão desconcertante em duas partes distintas (só que, aqui, ao invés do mistério e do fascínio da primeira parte dos filmes do tailandês, o espectador está tomado pelo mais profundo tédio ao passar para a “segunda parte”). O que é inegável é que, se existe alguma força em Edukators, ela só se instaura no filme a partir da entrada em cena do personagem de Hardenberg.

A partir dali, com a ida para a cabana nas montanhas, o filme consegue ao menos articular alguma cena de interesse aqui e ali (como a do jogo de cartas, em especial), consegue criar alguma real noção de personagens e de relações entre eles. Claro que milagres não acontecem (afinal o filme pode até ter mudado, mas o diretor não), então continuamos com uma mise-en-scène quase inexistente como conceito (continua valendo o “qualquer imagem serve”) e, como descobrimos no epílogo final de volta à cidade, continuamos com personagens-fantoches, representações de classe e teses de baixo calão sobre relações sócio-geracionais. A partir destas, vamos da aparente sugestão de um passeio nas montanhas como solução para os conflitos geracionais e inter-classes (o que teria até o seu lado de interesse, se o filme acreditasse nas relações entre os personagens), a um cinismo final, sintomático como a “descrença início-de-século” do discurso dos “educadores” – e sua revolução pelo rearranjamento de móveis.

A única certeza com que saímos do cinema é que a mais deplorável constatação sobre o estado de coisas do mundo hoje não vem das idéias colocadas pelo filme, e sim por sua própria forma e narrativa – que incorporam de tal maneira a seu discurso uma banalidade de raciocínio conformista (olha o Bertolucci aí de novo!), e principalmente de tamanho desinteresse na sua realização, que só nos resta acreditar que a revolução não é mais possível nem como ideal utópico. Pois se é fato que para a arte revolucionária deve equivaler forma revolucionária, Edukators não deixa dúvida: é arte reacionária como poucas.

Eduardo Valente