Segundo seus próprios preceitos,
Edukators seria, antes de tudo, um filme político
– um retrato de geração oferecido por ela mesma, no
calor da hora; um registro no tempo do que significaria
ser “jovem” no início do século XXI e lidar com o desejo
de querer “mudar as coisas”. Nesse sentido, o filme
estabelece um diálogo profícuo com dois filmes de Bernardo
Bertolucci: Antes da Revolução (de 1968, segundo
filme do então jovem cineasta), e principalmente com
o seu filme mais recente (e também em cartaz), Os
Sonhadores. O interessante é que, embora em sua
gênese Edukators esteja muito mais próximo como
projeto do que deveria ser o sentimento do mundo de
Antes da Revolução (calor da hora, juventude,
etc), na verdade ele acaba soando muito mais próximo
e irmanado ao filme de um Bertolucci já mais velho,
como é o caso de Os Sonhadores.
É muito curioso perceber este “envelhecimento precoce”
de uma juventude contemporânea, e tentar entender um
pouco como ele se dá. Porque o fato é que, se no que
se refere a ideais ditos “revolucionários” (o termo
abunda nos três filmes) não se pode olhar o mundo hoje
sem passar pelos anos 60, também é verdade que um dos
mais fortes efeitos-ressaca desta década é uma combinação
um tanto mal resolvida (principalmente porque paradoxal
em princípio) entre nostalgia e negação. O que equivale
dizer que toda a energia dos anos 60 parece ter deixado
como efeito uma sensação de que os jovens nunca foram
tão “significativos” como então (daí a nostalgia), mas
também de que eles “perderam para a realidade, dada
sua ingenuidade” (daí a negação).
Esta negação nostálgica é melhor compreendida (embora
não justificada) nos filmes de autores que viveram na
pele a sensação desta ressaca (como vemos no próprio
filme que Bertolucci hoje nos apresenta, ou num Invasões
Bárbaras), mas soa tão mais assustadora quando surge
reencarnada nos filmes de uma juventude contemporânea,
tomada como se fosse uma vivência própria também desta
geração, como um “dado final”, uma leitura única possível
daquele momento (ou, como tal, no mínimo parte do inconsciente
coletivo). E é por isso que quando vemos Edukators,
pensamos com muito mais mal-estar ainda no filme de
Bertolucci: porque Edukators soa como um filme
“de velho”, só que é feito por um jovem – e como um
retrato de sua própria geração (lembremos de novo de
Antes da Revolução, semelhante no impulso e muito
distinto no resultado).
Para confirmar esta aproximação de enfoque do jovem
alemão com o Bertolucci tardio, basta que reparemos
em algumas características: primeiro (por ser mais sintomático),
partamos do título dos filmes. O que fica claro na impressionante
semelhança entre os títulos do novo filme de Bertolucci
e este filme de Weingartner (que seria muito maior ainda,
caso o distribuidor brasileiro não tivesse optado por
não traduzir a expressão que o nomeia no mercado internacional)
é um conceito através do qual se enxerga seus personagens
não como indivíduos, mas como parte de um grupo. Ou
seja, antes de figuras com subjetividades a serem construídas,
tratam-se de metonímias representativas do todo de um
“estado de espírito” de suas respectivas épocas. Através
dos “sonhadores” de lá, ou dos “educadores” daqui, o
que os diretores tentam fazer, indisfarçadamente, é
um cinema de crônica sócio-política onde tudo possa
ser explicado-entendido a partir destes exemplos de
caso. Não há espaço, portanto, para a “confusão” da
qual se compõe uma determinada pessoa – tão somente
para um tipo de compreensão que é mais típica do estudo
científico (sociológico, no caso).
Que não se pense que estamos afirmando aqui que os personagens
não são, em ambos os filmes, eventualmente confusos
em suas opções – no entanto, esta confusão não contamina
nunca a narrativa, o ponto de vista, o diretor. Esta
confusão é parte dos sintomas que se deseja diagnosticar
nestas juventudes (sem clareza das suas idéias e de
suas ações), mas nunca se torna parte integrante e essencial
do próprio ato de narrar por parte dos filmes: pelo
contrário, as idéias e entendimentos dos diretores são
bem claros, estando bem acima dos seus personagens –
que surgem então como pequenos organismos vivos, como
que dispostos e aumentados grotescamente em microscópios.
Pensemos, então, a título de comparação, em Antes
da Revolução (ou ainda em Terra em Transe
ou em Memórias do Subdesenvolvimento) – filmes
nos quais, cada um à sua maneira, deixava-se ver sempre
o impulso criador que ligava, umbilicalmente, diretor
e personagem, mundo e narrativa.
Pensemos então (para irmos mais diretamente ao filme
aqui em pauta) na forma grosseiramente banal com que
Weingartner coloca na narrativa do seu filme as questões
emocionais: a rasteira apresentação dos personagens,
a criação quase amadora de um McGuffin para tirar um
deles de cena e aproximar os outros (“vou para Barcelona
e já volto”), o quase ridículo clichê da “paixonite”
(uma cena de despertar romântico enquanto se pinta uma
casa é de um kitsch inaceitável), o grotesco
estabelecimento do conflito “corno-casal apaixonado”.
Tudo é, uma vez mais, banal: parece seguir à risca um
manual ruim de roteiros, de escritura de cenas e sequências
de acontecimentos para conflitos emocionais. Acima de
tudo, não parece haver qualquer alma ou real interesse
do diretor por o que aqueles sentimentos e sensações
provocam em cada um dos personagens em cena: o impulso
sexual é inexistente em qualquer momento, a câmera filma
cada uma das cenas com uma completa ausência de rigor
ou conceito de mise-en-scène – na base do “vai
como for”, “desde que esteja balançando e na mão (portanto,
“jovem”), tá valendo”. Fica então a pergunta: se o diretor
claramente não tem o menor interesse por aquilo tudo,
porque então nós teríamos?
Porque, para Weingatner, toda esta trama é quase um
estorvo no filme, uma desculpa para conseguir a identificação
da platéia (ele leu em algum manual que a platéia só
se identifica com dilemas românticos), e tratar do que
realmente importa para ele: a validade ou não de “ideais
revolucionários” para a juventude de hoje, os dilemas
da contemporaneidade, e o confronto com os ideais (é
lógico) da geração dos anos 60. Para a discussão chegar
aí, porém, ele precisa também de uma apresentação inacreditavelmente
tatibitate: a cena de ação “revolucionária” filmada
com câmera na mão e rock pesado nas alturas (ai ai);
a oposição da pobre garçonete oprimida pelos clientes-burgueses-malvados
que a humilham e maltratam (nem dando licença para ela
andar com sua bandeja!); chegando até uma cena de suposto
“interesse romântico” na trama, onde acaba emergindo
um constrangedor diálogo sobre política – que não soa
jamais como um diálogo de personagens, e sim como uma
fraca troca de textos de crônicas publicadas em jornal
de grêmio estudantil.
E é só então, depois de uma hora e vinte deste desfilar
de obviedades, e do mais completo tédio, que Weingartner
chega ao ponto que o interessa: o confronto de gerações
e ideais revolucionários, que se dá a partir do involuntário
seqüestro do burguês pelos “educadores”. Ali, a mudança
do filme é tão radical que chega a lembrar a estrutura
dos filmes de um Apichatpong Weerasethakul, com sua
divisão desconcertante em duas partes distintas (só
que, aqui, ao invés do mistério e do fascínio da primeira
parte dos filmes do tailandês, o espectador está tomado
pelo mais profundo tédio ao passar para a “segunda parte”).
O que é inegável é que, se existe alguma força em Edukators,
ela só se instaura no filme a partir da entrada em cena
do personagem de Hardenberg.
A partir dali, com a ida para a cabana nas montanhas,
o filme consegue ao menos articular alguma cena de interesse
aqui e ali (como a do jogo de cartas, em especial),
consegue criar alguma real noção de personagens e de
relações entre eles. Claro que milagres não acontecem
(afinal o filme pode até ter mudado, mas o diretor não),
então continuamos com uma mise-en-scène quase
inexistente como conceito (continua valendo o “qualquer
imagem serve”) e, como descobrimos no epílogo final
de volta à cidade, continuamos com personagens-fantoches,
representações de classe e teses de baixo calão sobre
relações sócio-geracionais. A partir destas, vamos da
aparente sugestão de um passeio nas montanhas como solução
para os conflitos geracionais e inter-classes (o que
teria até o seu lado de interesse, se o filme acreditasse
nas relações entre os personagens), a um cinismo final,
sintomático como a “descrença início-de-século” do discurso
dos “educadores” – e sua revolução pelo rearranjamento
de móveis.
A única certeza com que saímos do cinema é que a mais
deplorável constatação sobre o estado de coisas do mundo
hoje não vem das idéias colocadas pelo filme, e sim
por sua própria forma e narrativa – que incorporam de
tal maneira a seu discurso uma banalidade de raciocínio
conformista (olha o Bertolucci aí de novo!), e principalmente
de tamanho desinteresse na sua realização, que só nos
resta acreditar que a revolução não é mais possível
nem como ideal utópico. Pois se é fato que para a arte
revolucionária deve equivaler forma revolucionária,
Edukators não deixa dúvida: é arte reacionária
como poucas.
Eduardo Valente
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