O
título é uma pergunta que surge sempre
diante de mostras ou festivais de curtas: qual é
o estatuto do curta-metragem brasileiro? Que função
ele tem? Quem o vê? A que objetivos ele serve?
Exprime-se alguma coisa com ele? A rigor, cada filme
demanda uma resposta muito particular e própria
a cada uma dessas questões. Mas, da mesma forma,
um juízo de conjunto se faz necessário,
em parte porque são todos exibidos juntos, mas
principalmente porque geralmente são produzidos
da mesma forma por patrocínios ou rendas
estatais, municipais, estaduais ou federais e,
se não todos, diversos deles respondem a preocupações
geracionais. A própria pergunta deve ser colocada
de forma precisa: não "O curta-metragem
brasileiro vive?", mas "O curta-metragem brasileiro
respira?", porque se os projetores de 35mm, 16mm
e vídeo (digital, beta ou VHS) atestam que lá
está alguma coisa, nada garante que aquelas imagens
de fato resistem a algum tipo de expressão vital
para além do exercício ou do simples fazer
o quem, convenhamos, num país como o Brasil,
já é um mérito, e não um
mérito pequeno. Mas um filme não acaba
na sua feitura: há um conjunto amplo de significados
que ele evoca, de formas de que ele se apropria ou constrói,
de experiências que ele partilha. Uma vez feito,
ele entra no terreno comum e precisa mostrar seu valor
próprio. Esse primeiro curta dará um grande
realizador? O talento se confirmará nos trabalhos
seguintes? O que aconteceu com o trajeto desse cineasta,
que antes parecia tão interessante? Em dez tópicos,
uma crônica-relatório de uma seleção
específica num festival específico de
cinema, na qual se toca em alguns dos pontos que afetam
o curta-metragem brasileiro.
1) Por que Quero Ser Jack White (diretor Charly
Braun) e O Astista Contra o Caba do Mal (diretor
Halder Gomes) parecem tão cheios de vigor diante
de quase toda a produção de curta-metragens
exibida na Curta Cinema? Apesar da narrativa bem cuidada,
da temática pop e do ritmo ágil, não
são filmes que saiam das soluções
estéticas fáceis para existir (certas
situações previsíveis, câmera
em fast forward ou cortes "espertos").
Ainda assim, vistos no bojo da produção
exibida, caracterizam-se facilmente como alguns dos
15 ou 20 melhores curtas-metragens do ano. Em Quero
Ser Jack White, o fácil-demais-de-se-gostar
não deve esconder as qualidades menos óbvias
do filme: a naturalidade dos atores nas cenas de sexo
ou fora delas, ou a maneira como se constrói
a relação de cada adolescente com a casa
e com a mãe. Em O Astista..., um filme
também emocional (só que com o cinema)
guiado pelo humor, são evocadas as sessões
de filmes de Kung Fu em salas improvisadas com material
que dá sempre defeito e com público ativo,
falando, brigando, entrando e saindo da sala. Humor
muitas vezes fácil, mas ainda assim um dado sentimental
forte de amor por um tipo de ritual hoje extinto, mas
também pelo dialeto nordestino, do qual foi graciosamente
distribuído um pequeno "glossário"
para se entender o filme ao começo da sessão.
2) O advento da câmera digital facilita uma série
de novas utilizações da imagem, muitas
vezes para o lado lúdico. Allan Sieber, em mais
uma de suas incursões fora do terreno da animação,
fez Superstição, em que uma equipe
de filmagem no banco de trás do carro de Paulo
César Pereio acompanha, com a família
do ator, e registra a prova viva da mitológica
história de que segundo Pereio "a contra-mão
é uma superstição". A câmera
pode filmar momentos prosaicos num carro ou uma conversa
conceitual entre pai e filho, como em Imprescindíveis
de Carlos Magno e numa espécie de spin-off não
autorizado dele, Meu Nome é Paulo Leminski
de Cezar Migliorin. Nos dois últimos, o mesmo
projeto: o pai por trás da câmera pede
ao filho que recite algo glorioso em arte ou política,
e o que retorna é excremencial do ponto de vista
da cultura de massa ou fisiológico. Em chave
mais especulativa, duas crianças brigando na
lama, tomadas de uma janela num prédio ao lado,
pode se transformar pela abstração do
som em uma imagem-síntese da vida (Da Janela
do Meu Quarto de Cao Guimarães). Se a aplicação
do vídeo às fases mais corriqueiras da
vida é apaixonante e designa quiçá
um caminho novo a ser tomado pelo cinema, os projetos
não chegam a assumir um estatuto propriamente
novo, remetendo à blague (no caso do filme de
Sieber), ao choque de contrários um pouco fácil
demais (Magno e Migliorin), ou a uma separação
um pouco aviltante entre sujeito filmante e objeto filmado,
que o título faz questão de frisar (Guimarães).
Em todo caso, são todos situações
de destaque dentro de uma produção que
não está exatamente transbordando de idéias
novas.
3) De longe, um dos mais estimulantes filmes (usamos
esta palavra indefinidamente tanto para filmes mesmo,
peças tomadas em película, ou para vídeos,
de suporte magnético ou digital) exibidos na
Curta Cinema, e certamente a maior revelação,
foi Man.Road.River., de Marcellus. Utilizando
o preto e branco para transformar a paisagem em conceito,
o filme encena em um único plano (e um movimento,
um lentíssimo zoom out, lá com uns 2/3
de filme transcorrido) o caminhar de uma silhueta negra
que atravessa um rio (nascido de uma enchente?) que
passa por uma estrada. Aqui, não é mais
uma metáfora que aparece da abstração
da imagem, mas a imagem com um fim em si mesmo, elaborada
com uma precisão notável, e que vai colocando
Belo Horizonte (que no ano passado já fez na
mesma mostra a também muito bacana sessão
do coletivo A Teia) no ponto alto do cenário
experimental brasileiro.
4) Para seguir nos "gêneros" destacados
para prêmio da Curta Cinema que, convém
lembrar e parabenizar, agora é festival competitivo
, "ficção", "experimental",
" documentário" e "animação",
o único filme de animação que atingiu
de fato uma estatura maior foi Desirella, de
Carlos Eduardo Nogueira. Aproveitando o culto da imagem
física vendida em todos os lugares como a garantia
da felicidade, o filme cria uma personagem entre o horrível
e o maravilhoso, verdadeira máquina que substitui
o lugar do corpo. Só que o corpo começa
a se vingar quando é tratado como máquina,
e ao mesmo tempo em que Desirella brilha nos
outdoors que divulgam a capa de uma revista masculina,
a verdadeira estrela quebra as duas pernas correndo
atrás de seu remedinho anestesiante e sangra
até o fim. Mas o que poderia apenas ser uma historinha
sádica de ressentimento contra essas figuras
que existem aos montes assume uma dimensão mais
interessante quando som e imagem se casam com o universo
de glamour da personagem, tentando "entender"
a partir dos signos evocados a opção pelos
exemplos mais superficiais de felicidade. Essa imagem
que pesquisa a (própria) imagem acaba com um
aspecto freqüente e muitas vezes desagradável
da animação: uma certa ingenuidade de
encenação que se rebate como ingenuidade
de visão de mundo. Nesse quesito, vale lembrar
de A Moça Que Dançou Depois de Morte,
de Ítalo Cajuíno, enésima utilização
do cordel como estrutura dramática de curta-metragem,
mas aqui impressionantemente bem cuidado.
5) De documentários, alguns adoráveis
(Paola, sobre uma travesti que vive num minúsculo
município da Paraíba, ou Êxito
d'Rua, sobre um coletivo de hip-hop, conscientização
política e organização social),
mas um panorama bastante fraco em relação
aos últimos anos. Os filmes de sempre sobre religião,
mais um filme sobre a morte de Glauber Rocha, nostálgicas
rememorações de outrora e até agigantadas
reportagens estilizadas sobre heavy metal ou
jogadores de futebol... Em todo caso, dois se destacam,
e curiosamente ambos de Pernambuco, e ambos com uma
aproximação mais brincalhona em relação
aos preceitos documentários: O Homem da Mata
e A Figueira do Inferno. Em O Homem da Mata,
de Antônio Carrilho Souza Leão, faz delirar
o universo de um homem, José Borba da Silva,
canavieiro, em artista multi-tarefa e guardião
da floresta. Borba vira o super-herói Jack da
mesma forma como anda pelas matas, e a ficção
nasce da exacerbação do documentário.
Em A Figueira do Inferno, membros e agregados
do coletivo Telephone Colorido fazem um autêntico
filme-experiência sobre a famosa planta trombeta
(entre outros mil nomes), famosa tanto por propriedades
medicinais e xamanistas quanto pelas propriedades alucinógenas.
O manuseio das entrevistas é extraordinário:
a palavra científica assume o mesmo estatuto
que o discurso místico ou tradicional, o livro
fala, o pajé fala, a equipe vira cobaia de sua
própria expedição. Se a sessão
especial dedicada à produção do
Telephone Colorido deixou um tanto a desejar (sendo
Noninonino e Copo de Leite os únicos
inéditos bacanas da safra de filmes do coletivo),
esse filme redime tranqüilamente o grupo. Entre
os documentários tradicionais, menção
para The Big Boy Show, de Lenadro Petersen e
Claudio Dager, que consegue instalar com criatividade
o ritmo de seu biografado dentro do formato restrito
da reportagem biográfica.
6) De filmes parasitários o inferno está
cheio? Em todo caso, há de se distinguir entre
dois tipos de filmes parasitários: aqueles que
desejam apenas ser homenagens e aqueles que acreditam
tanto em seus amores que acham que a graça do
mundo é repetir tudo a esmo. Na primeira categoria,
está o dulcíssimo Veludo & Cacos
de Vidro, de Marco Martins, uma homenagem vertiginosa
aos primeiros filmes de Rogério Sganzerla
principalmente a A Mulher de Todos e a Helena
Ignez, a própria mulher de todos , com
dois atores impagáveis, Renato Turnes e a estonteante
Julie Christe, e uma espécie de estudo pop-crítico
da sedução pelas frases e atitudes dos
personagens sganzerlianos. No segundo modelo, Sexo
com Objetos Inanimados e uma fixação
um tanto óbvia pelo universo de Cães
de Aluguel: piadinhas e tortura dão o tom,
como se uma série de filmes iguais nunca tivesse
sido feita e repetida à exaustão ao redor
do mundo e hoje não fosse uma coisa tão
batida e previsível quanto filmes com Robin Willilams.
7) No Festival Brasileiro de Cinema Universitário
desse ano, já pudemos ver A Lâmpada
e a Flor, de Pablo Ferreira, que dividiu as atenções
e os prêmios com Nossos Parabéns ao
Freitas, de Felipe Marcondes Sant'Angelo, inaceitavelmente
fora da mostra. Em A Lâmpada e a Flor,
uma situação de beira de estrada e um
toque mágico são o ponto de partida para
a construção de um universo de delicadeza
mesmo quando só parece existir crueldade ao redor.
Sem qualquer excesso narrativo ou cenográfico,
o filme nos instala na vida de quatro personagens que
vivem na estrada para, com doçura, tirar a mulher
do jugo de um aproveitador para colocá-la nas
mãos de um humilde apaixonado. A modéstia
do filme é seu grande trunfo: a aparente simplicidade
de todo o filme só intensifica o clímax
final, em que a lâmpada acende de novo e o realismo
mágico pode existir sem musiquinha lacrimejante
ou o açúcar costumeiro. Está mais
para Ferreri do que para Garcia Marquez. Notáveis
as atuações de Camila Mota e Francisco
Gaspar. Ainda no terreno das atuações,
menção para André Deca, do filme
Momento Trágico, que carrega nas costas
com naturalidade impressionante um filme óbvio
na premissa e na condução. Surge para
o cinema um ator cômico que é bom quando
fala e quando ouve.
8) Copan, de Bernardo Spinelli, toma o prédio
homônimo, um dos marcos arquiteturais de São
Paulo, como o ponto de partida para um ensaio inconclusivo
e apaixonante sobre espaço público, habitabilidade,
capitalismo, linhas retas e amizade, e como tudo isso
se junta às propostas da arquitetura. Dois rapazes
partilham a mesma amiga/namorada, e os três partem
numa busca pela compreensão do espaço
e pela compreensão de viver nesse espaço
em diversas tentativas. Copan lembra um bocado
certos procedimentos de Godard em A Chinesa ou
em Masculino-Feminino, na maneira como se insinua
sobre um objeto de conhecimento de todas as formas possíveis
(depoimentos, textos off, leituras in)
mas quer acima de tudo trazer discussões muito
mais do que fechá-las. Ainda enragé
paulista, Veja & Ouça Maria
Baderna no Brasil, de André Francioli, é
a confirmação inequívoca de um
talento em rebeldia tanto política quanto formal.
Aproveitando uma infame capa da revista "Veja"
sobre o MST em que se lia "A tática da baderna",
o filme delira sobre o conceito de baderna e faz uma
genealogia selvagem do termo, fazendo um percurso não
só da verdadeira dançarina que ostentava
esse nome, mas também de como o nome se descolou
da pessoa e passou a designar comportamentos de rebeldia
intolerável desde a época do integralismo,
até chegar ao conservadorismo interesseiro da
"Veja". Um filme de pegada, na melhor tradição
do udigrudi nacional de um cinema agressivo em
sua forma, e rebelde consigo mesmo antes de tudo.
9) Pelo segundo ano consecutivo, Kléber Mendonça
Filho realiza um dos filmes mais decisivos do ano. Vinil
Verde conta em fotografias e narração
off uma espécie de conto de fadas macabro,
em que a mãe presenteia a filha com um disco
proibido de ser tocado e a filha, sem atender ao pedido
da mãe, toca o disco, com conseqüências
imprevisíveis. Mas o filme não é
apenas uma historinha de terror, como outros exibidos
no festival (os tolos Formigas e Oculto,
este último em parte redimido por um evocativo
rosto de atriz, cortesia de Mitzi Evelyn). Se há
um sentimento de suspense que paira pelo filme inteiro,
Vinil Verde sabe ser mais do que apenas a encenação
de algo assustador. Há primeiramente o texto
de narração, que causa estranhamento só
ao retirar os artigos e as preposições
da fala corrente, atribuindo um tom soturno às
frases doces e poéticas faladas por um narrador
de voz delicadamente grave. E há o final, que
ao invés de remeter a um caminho óbvio,
retrabalha todo o sentido do filme e joga o imaginário
do terror para a vida corrente, fazendo do susto uma
espécie de etapa necessária do crescimento.
10) Como última nota triste dessa cobertura,
a performance das sessões cariocas. Mesmo que
alguns filmes tenham interesse relativo (Cordeiro
de Deus pelo roteiro, Wragda pela música),
só um filme chega a um nível rigoroso
de articulação conceitual-estética:
O Nome Dele (O Clóvis), dos colegas de
redação Felipe Bragança e Marina
Meliande. O resto varia do exercício correto
em terreno já conhecido (ID) ao cinema
anêmico sobre pintura (Maria Leontina),
e passa por dois trabalhos de curta-metragistas que
já deram sensíveis contribuições
ao cinema brasileiro, mas que aqui parecem exercitar
os aspectos mais daninhos de suas estéticas:
Asfixia, de Roberval Duarte, utiliza a circularidade
para falar de paranóia urbana e acaba transformando-se
num filme de Philippe Barcinski; Mora na Filosofia,
de Gustavo Acioli, ao juntar trechos de diálogos
de Platão (A República, O Banquete)
com cenas fortes do que se convenciona chamar de "realidade
social brasileira", aproxima seu cinema da contestação
acomodada de um Sérgio Bianchi. O Nome Dele
(O Clóvis), através de pequenos fragmentos
na vida de um guardinha municipal e de uma lógica
do plano bastante rigorosa, faz da imagem um objeto
lírico possante e pouco comum, tão mais
bonito porque absolutamente lacônico. Os intertítulos,
que de alguma forma truncavam e sobressignificavam as
imagens do primeiro curta do casal (Por Dentro de
uma Gota d'Água), aqui conseguem uma concisão
em que não competem e nem complementam a imagem,
mas dão uma lógica rítmica ao filme
e aumentam seu grau de sugestão. Visão
salvadora, que de alguma forma compensa o investimento
e a esperança na produção curta-metragista
conterrânea.
(Viagem feita, parcial e rápida, como não
poderia deixar de ser na situação (muitos
filmes, pouco tempo), mas uma observação
que se faz necessária: Quimera, de Eryk
Rocha, não consta desse texto porque sua visão
não pode ser completa por motivos de força
maior. Guarda-se, entretanto, lembrança muito
forte do trabalho de som no filme.)
Ruy Gardnier
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