BISCOITOS COLORIDOS
Coleção Doris Day: Confidências à Meia-Noite, Volta Meu Amor e Não Me Mandem Flores

Pillow Talk, de Michael Gordon, EUA, 1959
Lover Come Back, de Delbert Mann, EUA, 1961
Send Me No Flowers, de Norman Jewison, EUA, 1964


No filme Abaixo ao Amor (Down With Love, 2003), de Peyton Reed, é travada uma guerra dos sexos centrada nos personagens de Ewan McGregor e Renée Zellweger. Todo o pano de fundo, desde as cores do cenário até a trilha sonora e os recursos gráficos (split-screen, "cortinas" na passagem de cenas, abertura feita em animação), foi cuidadosamente decalcado de um conjunto bem específico de filmes realizados entre um período breve, mais ou menos do final dos anos 50 até a primeira metade dos 60. São comédias românticas leves, em tom frívolo e provocador, trazendo no elenco uma dupla como Doris Day e Rock Hudson, cujo primeiro encontro se dá no filme que serviu de inspiração principal para Reed, isto é, o clássico Confidências à Meia-Noite. A própria Zellweger conscientemente encarna padrões de comportamento da personagem de Doris Day. Mas há também, em Abaixo ao Amor, elementos de um outro filme, Volta Meu Amor. Esses dois filmes, assim como um terceiro, Não Me Mandem Flores, foram lançados em DVD na Coleção Doris Day, da Universal.

Embora o título da coleção cite apenas a Doris Day, os três filmes contam, é claro, com Rock Hudson e com o essencial Tony Randall, sempre dono das melhores tiradas. Os filmes pertencem a um período em que a era dourada de Hollywood já entrava em declínio, com o desgaste do sistema dos grandes estúdios. Enquanto a maior parte dos realizadores abandonava os estúdios e encontrava de vez as ruas e as locações "reais", esses filmes aqui em questão, contudo, arrumavam um novo pretexto para lidar com cenários falsos e com o artifício "em si" – o que não significou negligenciar as filmagens a céu aberto, que estão lá presentes. Fingindo-se alheio a qualquer desbotamento de uma imagem que, saia ela dos estúdios ou das ruas, mostra-se excessiva e inevitavelmente controlada, esse gênero tratou de assinar um atestado de saúde para essa imagem. Além de um marcante trabalho cenográfico e fotográfico com as cores e de um uso freqüente da movimentação intensa dentro do plano, causando uma constante impressão de mundo em transformação, os filmes contaram com um arcabouço infalível para a garantia do sucesso dessa imagem: diálogos irresistíveis, frutos de roteiros ágeis e extremamente funcionais e, principalmente, da química evidente entre os atores do elenco (o trio Hudson/Day/Randall se repetirá não por acaso). Mas na verdade há, sim, uma consciência de crise do imaginário sustentado pela sociedade americana (portanto, pelo cinema hollywoodiano) até então. As tramas colocam em xeque a produção de imagem ou, mais ainda, a crença na imagem e/ou no discurso a ela associado. O químico que é prêmio Nobel, em Volta Meu Amor, realiza o gesto definidor quanto a isso: um biscoito com sabor de menta que equivale a três doses de Martini, e que custa não mais que dez centavos. "Realizei o sonho de todo americano: uma droga de dez centavos", ele diz. Na aparência, um biscoito; na essência, um composto inebriante.

Os filmes jogam o tempo todo com as aparências enganadoras, mas o fazem apenas para afirmar, posteriormente, a indissolúvel união entre interioridade e exterioridade. Ao se apaixonar pelo homem que Hudson finge ser em Confidências à Meia-Noite ou em Volta Meu Amor, Day está se apaixonando, no fundo, pelo homem que ele é. Da mesma forma que Brad (Hudson) pede para Jan (Day) re-decorar o seu apartamento de modo que este se torne um lugar onde ela gostaria de morar, na parte final de Confidências à Meia-Noite. A conquista, assim sendo, começa pelas coisas exteriores, que estão na superfície ou à volta, mas diz respeito unicamente a uma configuração interior (no coração, mais especificamente).

Confidências à Meia-Noite e Volta Meu Amor se assemelham bastante, não apenas pela estrutura do roteiro, que põe Hudson na posição de cafajeste que se redime ao final, mas também pela evidência última de que são comédias sobre os mecanismos internos envolvidos na construção de uma imagem. Jan Morrow, a personagem de Doris Day em Confidências à Meia-Noite, é uma decoradora de interiores, e seu apartamento é montado pelo filme como espaço claramente artificial, com direito a janela que dá vista panorâmica da cidade em trompe l’oeil e tudo. Em Volta Meu Amor, Jerry Webster e Carol Templeton são publicitários que usam meios diametralmente opostos para conquistar seus clientes. Decoração e publicidade, vale dizer, são duas formas de lidar com as superfícies. Como Filipe Furtado salientou em sua crítica a Abaixo ao Amor, o filme se resolve na superficialidade porque esta é a forma de melhor se relacionar com uma trama em que o que está em jogo, na maior parte das vezes, é a tentativa (não raro fracassada) de construir uma imagem.

Day vive em ambos os filmes a figura da mulher bem-sucedida profissionalmente e solteirona, enquanto Hudson faz o conquistador que cada dia está com uma mulher diferente. De um lado e de outro, dois clichês de homem e mulher do século XX, cada qual dentro de uma fôrma tipológica muito bem apresentada. Se tudo acaba em casamento, é para ir direto ao ápice do happy end de comédia romântica. Os filmes estão longe da contenção no visual e nas confusões entre os personagens, portanto nada mais justo que finais "atravessados" (no sentido de que parecem muito mais imposições narrativas do que decorrências naturais dos eventos). Na lógica dos opostos que se atraem, Day e Hudson se descobrem feitos um para o outro e não titubeiam em aderir ao casamento, ainda que acidentalmente num primeiro momento (Volta Meu Amor). É como se eles estivessem esperando por isso desde sempre, mesmo que não se dessem conta – uma tremenda provocação à independência feminina, marca mor do século passado, e ao eterno espírito caçador do homem, que aqui aparece mais infantilizado que nunca.

Provocação, aliás, é a palavra-chave nesses filmes. Várias manias e obsessões da sociedade na época são alvos fáceis de piadas. Confidencias à Meia-Noite usa e abusa desse tipo de humor, tendo como pivôs os personagens de Tony Randall e de Thelma Ritter, sempre agudos nos seus comentários. (Ritter, como empregada – e conselheira – de Jan, praticamente dá continuidade à sua personagem de Janela Indiscreta; Randall, por sua vez, segue o tom de auto-paródia que ele repetirá em Volta Meu Amor e Não Me Mandem Flores.) Confidencias à Meia-Noite já parte de uma conurbação de linhas telefônicas que, por si só, representa uma crítica bem-humorada à proliferação das grandes metrópoles, a exemplo de Nova York, eterna cidade-palco de comédias românticas. Jan e Brad dividem um mesmo número de telefone, e antipatizam profundamente, uma vez que ela não tolera o monopólio dele sobre a linha, sempre sendo requisitado por suas inúmeras amantes, para as quais ele canta sempre a mesma canção, apenas mudando os nomes. Eles entram num acordo, proposto por Jan, de cada um usar a linha por meia-hora, alternadamente. Mas Brad quebra o acordo e Jan aciona o advogado Jonathan, personagem de Randall. Interessado em Jan e, como sempre, melhor amigo de Brad, Jonathan rende as melhores piadas. Como quando ele joga uma cantada para Jan e ela diz que acha que não o ama, ao que ele argumenta "Como você vai saber? O amor não é uma opinião, é uma reação química, e nós nunca nos beijamos". Eles então se beijam, mas não parece rolar clima, e Jonathan reage sem perder o entusiasmo: "O primeiro foguete também não atingiu a lua. Saímos para jantar e tentamos nova contagem regressiva".

Ao reconhecer a voz de Jan, e a partir das descrições de Jonathan, Brad descobre quem ela é pessoalmente, e resolve aplicar-lhe uma lição: passa-se por um texano ingênuo e começa a conquistá-la aos poucos, para comprovar sua tese de que Jan é apenas uma mulher mal-amada. São hilárias as cenas em que ele liga para ela como o texano, chamando-a para sair, e depois liga de novo como Brad, dizendo que ouviu a conversa e que aquele texano não passa de um impostor. Assim como é também hilária a reação de Jonathan ao saber que ela sai com um texano: "Que golpe para minha psique, ser trocado por um caubói!" – os próprios ícones de virilidade do cinema americano são empacotados junto à excessiva influência que este vinha recebendo da psicanálise e entregues sob forma de piada.

Não só a psicanálise e a medicina, mas toda a visão teleológica da ciência como geradora do sentido futuro da humanidade é ridicularizada nos três filmes, do que a expressão mais engraçada está no obstetra que se maravilha ao pensar que Hudson pode estar grávido (e ele apenas havia se escondido no consultório do médico para não ser visto por Day). A obsessão com as pílulas e os novos remédios está presente em Não Me Mandem Flores, filme em que Hudson é um hipocondríaco que ouve uma conversa do seu médico ao telefone e conclui, pensando tratar-se dele a conversa, que está com os dias contados. A seqüência inicial é uma sucessão de vinhetas publicitárias que anunciam todo tipo de remédio, atormentando o sono de Hudson. À diferença dos outros dois, Não Me Mandem Flores é um autêntico filme de recasamento (e é bastante curioso ver Norman Jewison, que posteriormente faz filmes violentos como No Calor da Noite e Rollerball, dirigindo uma comédia light). Quando o filme começa, os personagens de Doris Day e Rock Hudson formam um casal perfeitamente integrado ao american way of life, com a Nova York dos arranha-céus sendo trocada pelo subúrbio das casinhas iguais. A "morte iminente" fará com que Hudson tente, no entanto, arrumar o homem ideal para cuidar de Day após seu falecimento. As idas e vindas do roteiro apenas os levam, obviamente, para a reconciliação no final. Os três filmes, por sinal, apontam as diferenças entre ele e ela (e entre os sexos, de maneira geral) somente para causar um conflito que será harmonizado pelo que há de mais institucional na relação homem-mulher, ou seja, o casamento.

Volta Meu Amor põe Rock Hudson na mesma posição de Confidencias à Meia-Noite: encarnar um personagem para ludibriar Doris Day. E a armadilha do destino é igualmente repetida: ele se apaixona, e depois que ela descobre a farsa é preciso dar uma prova de amor verdadeiro. Se Confidencias à Meia-Noite já parecia bastante consciente de sua verdadeira construção se dar no interior da imagem, Volta Meu Amor leva a coisa ainda mais adiante. Ao decorar apartamentos, Jan compunha a própria cenografia do filme, tingindo a tela de forma auto-reflexiva e criativa. Em Volta Meu Amor, Jerry Webster (Hudson), o publicitário rival de Carol Templeton (Day), lança a campanha de um produto que não existe, o tal Vip. A imagem publicitária, nesse caso, precede o próprio produto; a ordem é invertida: primeiro vende-se o produto, depois este é inventado. Randall, que faz um dos sócios da empresa, fica desesperado com os pedidos que não param de chegar, ao passo que Jerry se entusiasma: "Essa campanha é revolucionária!". A imagem – e seu conseqüente poder de convencimento –, portanto, nasce de um contato superficial, sem que haja a necessidade de um objeto real para gerá-la. Essa imagem sem origem no real, esses signos que não se trocam por sentido – e cujo valor é intrínseco, pode ser consumido desde sua forma imaterial – são o que hoje automaticamente se associa à chamada "cultura dos simulacros". De suma importância para a apreensão dessa idéia são os personagens secundários, que aparecem rápida e casualmente em Volta Meu Amor: os dois homens que calham de sempre ver Jerry em situações em que aparentemente ele é o rei das mulheres (quando na verdade está em cena um jogo de tapeação); as camareiras do motel que presenciam a discussão entre Carol e Jerry, acordando e se descobrindo recém-casados (os biscoitinhos coloridos lhes despertaram os desejos mais íntimos), e pensam se tratar de um despreparo por parte da noiva; o já citado obstetra que cisma com a gravidez de Jerry. Em suma, para o olhar passageiro, corresponde uma imagem falsa. Volta Meu Amor curiosa e ironicamente aponta para a necessidade de se olhar detidamente para a imagem.

Os filmes contidos nessa Coleção Doris Day permitem a fruição de uma imagem em processo de se refletir como imagem. O fato de que esses filmes ocuparam um período curto da história do cinema prova que essa imagem era mesmo a expressão de uma instabilidade. Talvez por isso, por terem consciência de que expressavam uma transição e, assim sendo, por não se preocuparem com sua permanência enquanto gênero, esses filmes se lançaram a uma deliciosa despretensão, que ainda hoje ecoa em comédias interessantes como Legalmente Loira 2, cujos roteiristas não à toa são os mesmos de Abaixo ao Amor.


Luiz Carlos Oliveira Jr.


(DVD Universal)