ALEXANDRE
Oliver Stone, Alexander, EUA/Inglaterra/Alemanha/Holanda, 2004

Diferentemente do que o título sugere, Alexandre não parece ter nada a ver com a tendência mais habitual das cinebiografias recentes, a de “revelar o homem por trás do vulto histórico”. Em vez disso, é um filme justamente de composição de mito. Tudo nele se constrói, na verdade, como uma operação de “publique-se a lenda”, e até incorpora uma certa consciência disso (nos longos monólogos de Anthony Hopkins) – mas nada que chegue a fazer dele um exercício de discussão da escrita mitopoiética.

Nesse sentido, duas cenas são emblemáticas para comprovar esse tom. A primeira é a do Alexandre menino com o cavalo Bucéfalo. Ora, é uma operação clássica a de usar a infância como espelho profético da fase adulta. Na seqüência, devidamente alimentada por outras anteriores (que já exploravam premonitoriamente, por exemplo, a homossexualidade do personagem), o menino é estabelecido como, ao mesmo tempo, destemido e predestinado, iluminado por um traço de celebração que o une aos céus e à divindade: o cavalo o aceita porque ele é O Grande.

A outra cena é a da impressionante batalha no deserto. Nela, destaca-se a montagem, embora quase que apenas como execução. Ali, a filmagem, diferentemente da recente safra dos “filmes de batalhas ancestrais” em que Alexandre se inclui (junto a Coração Valente, O Senhor dos Anéis, Tróia etc.), privilegia o caos, a falta de coerência da batalha. E justamente esse traço, que poderia distingui-lo como espetáculo, faz dele menos singular: a ave que o acompanhará igualmente marca sua potência em ato como monarca escolhido pela conspiração cósmica, assim como a eficiência militar que supera a lógica e o provável. Alexandre tem uma coragem que ultrapassa qualquer limite. É um mito, não um homem.

E isso está em todos os traços do filme – da música etérea do grego Vangelis à interpretação performática dos atores. Tudo conspira para extrair o personagem de sua normalidade carnal. A carne, para ele, é a carne que assombra os deuses gregos: a sensualidade, a batalha, a disputa, mas nunca o conflito dramático. Porque ele é o personagem central da história e sabe disso. Alexandre não é humano, ele é apenas objeto de sua própria mitologia.

Pois não deixa de ser um exercício interessante comparar o filme com aquele que é o espelho principal da operação feita por Oliver Stone, Napoleon (1927), de Abel Gance. Também o filme francês parte de uma construção profética da infância, com o menino Napoleão Bonaparte a ver a ilha de Elba premonitoriamente em sua aula de geografia, e comandando meninos em uma batalha de trenós. Mas o filme de Gance utiliza seus elementos míticos de maneira absolutamente antagônica a Stone: tudo que é conotação e mitopoiese em Napoleon está ligado à realização como espetáculo da história. Filme de exibição exigente, de longuíssima metragem (são 330 minutos na edição especial restaurada para reexibição em 2000, semelhante à original, ou, no mínimo, 235 minutos na restauração anterior, no começo dos anos 90, e que se tornou a edição internacional em DVD), com uma projeção que é realização em si – ao utilizar três telas em diálogo e composição, o filme se utiliza de Bonaparte e de seu mito para se fazer cinema.

O contrário faz Stone, que se utiliza de recursos do cinema popular/espetacular americano para compor o mito de seu Alexandre, a matriz essencial de vários dos heróis posteriores (porque ele mesmo é já matizado pela figura de Aquiles, o que o próprio filme insiste em lembrar a cada momento). Em toda essa operação, o que falta ao filme é sutileza. A seqüência da batalha contra os elefantes recorre, por exemplo, a uma conversão sensorial: Alexandre, derrotado, vê o mundo por filtros vermelhos, operação de semiologia primária. Stone recorre a uma operação tradicional da publicidade: o estabelecimento prévio do sentido. Diferentemente de Gance, que tem uma ligação afetiva, mas parece não ter ligação psicológica com seu personagem, no sentido em que o usa mais do que se dá a ele, Stone quer dizer algo por Alexandre: dá, então, a voz a ele e a si mesmo, ditando o que quer que se entenda de sua história.

É uma operação habitual do cineasta, que faz juízo de valor dos soldados americanos no Vietnã, em Platoon, e dos personagens de Assassinos por Natureza. Mas o posicionamento nunca havia sido tão extremo: Stone quer provar que Alexandre não só foi um grande líder (o que, aliás, prescinde de prova, diz a historiografia), como também foi um incompreendido.

A própria metaforização, extremamente atual, do líder cuja ação imperialista (ou imperial) é justificada por sua luta para levar a democracia aos quatro cantos do mundo, toma o corpo do filme mais do que a própria ação dramática. Alexandre não é Bush e, mais importante, Bush não é Alexandre, mas quem quiser ver um como o outro não poderá ser criticado por isso. Até porque ambos usam os mesmos métodos. E Stone também.

Seu cinema é de batalha. Move-se como um exército a serviço de um movimento, ou melhor, de uma movimentação, já que esse modismo é mantido não por um conceito-chave e sim por um performatismo de mercado, de um cinema que se alimenta da conversão em realismo/naturalismo de histórias que, tradicionalmente, seriam narradas em tom fantasioso. Isso acontece em Tróia, que desdiviniza seus acontecimentos até o último segundo, ou até mesmo em O Senhor dos Anéis, absolutamente estruturado em universo do irreal: todos esses filmes mostram-se obcecados por mostrar como a construção de um universo fantástico pode ser movida por uma construção destes “de fato”. O flerte de Stone é mais sério, nesse sentido, porque, assim como em Coração Valente, ele trabalha com um personagem histórico.

De volta a Gance, a comparação inevitável do uso dos pássaros por ele e por Stone é curiosa. Moderno, apesar de fundador, o diretor francês usa um pássaro-câmera e, mais que isso, um pássaro-tela. A observação feita pelo alto, em Napoleon, é um recurso simbólico do poder do cineasta. O pássaro de Stone, em vez disso, é performatismo puro, com um valor simbólico a priori: a natureza conspira por Alexandre, ela quer testemunhá-lo, porque ele é também uma força natural.

Alexandre Werneck