Diferentemente do que o título
sugere, Alexandre
não parece ter nada a ver com a tendência mais habitual
das cinebiografias recentes, a de “revelar o homem por
trás do vulto histórico”. Em vez disso, é um filme justamente
de composição de mito. Tudo nele se constrói, na verdade,
como uma operação de “publique-se a lenda”, e até incorpora
uma certa consciência disso (nos longos monólogos de
Anthony Hopkins) – mas nada que chegue a fazer dele
um exercício de discussão da escrita mitopoiética.
Nesse sentido, duas cenas são emblemáticas para comprovar
esse tom. A primeira é a do Alexandre menino com o cavalo
Bucéfalo. Ora, é uma operação clássica a de usar a infância
como espelho profético da fase adulta. Na seqüência,
devidamente alimentada por outras anteriores (que já
exploravam premonitoriamente, por exemplo, a homossexualidade
do personagem), o menino é estabelecido como, ao mesmo
tempo, destemido e predestinado, iluminado por um traço
de celebração que o une aos céus e à divindade: o cavalo
o aceita porque ele é O Grande.
A outra cena é a da impressionante batalha no deserto.
Nela, destaca-se a montagem, embora quase que apenas
como execução. Ali, a filmagem, diferentemente da recente
safra dos “filmes de batalhas ancestrais” em que Alexandre
se inclui (junto a Coração
Valente, O Senhor dos Anéis, Tróia etc.), privilegia o caos, a falta de coerência da batalha. E
justamente esse traço, que poderia distingui-lo como
espetáculo, faz dele menos singular: a ave que o acompanhará
igualmente marca sua potência em ato como monarca escolhido
pela conspiração cósmica, assim como a eficiência militar
que supera a lógica e o provável. Alexandre tem uma
coragem que ultrapassa qualquer limite. É um mito, não
um homem.
E isso está em todos os traços do filme – da música
etérea do grego Vangelis à interpretação performática
dos atores. Tudo conspira para extrair o personagem
de sua normalidade carnal. A carne, para ele, é a carne
que assombra os deuses gregos: a sensualidade, a batalha,
a disputa, mas nunca o conflito dramático. Porque ele
é o personagem central da história e sabe disso. Alexandre
não é humano, ele é apenas objeto de sua própria mitologia.
Pois não deixa de ser um exercício interessante comparar
o filme com aquele que é o espelho principal da operação
feita por Oliver Stone, Napoleon
(1927), de Abel Gance. Também o filme francês parte
de uma construção profética da infância, com o menino
Napoleão Bonaparte a ver a ilha de Elba premonitoriamente
em sua aula de geografia, e comandando meninos em uma
batalha de trenós. Mas o filme de Gance utiliza seus
elementos míticos de maneira absolutamente antagônica
a Stone: tudo que é conotação e mitopoiese em Napoleon está ligado à realização como
espetáculo da história. Filme de exibição exigente,
de longuíssima metragem (são 330 minutos na edição especial
restaurada para reexibição em 2000, semelhante à original,
ou, no mínimo, 235 minutos na restauração anterior,
no começo dos anos 90, e que se tornou a edição internacional
em DVD), com uma projeção que é realização em si – ao
utilizar três telas em diálogo e composição, o filme
se utiliza de Bonaparte e de seu mito para se fazer
cinema.
O contrário faz Stone, que se utiliza de recursos do
cinema popular/espetacular americano para compor o mito
de seu Alexandre, a matriz essencial de vários dos heróis
posteriores (porque ele mesmo é já matizado pela figura
de Aquiles, o que o próprio filme insiste em lembrar
a cada momento). Em toda essa operação, o que falta
ao filme é sutileza. A seqüência da batalha contra os
elefantes recorre, por exemplo, a uma conversão sensorial:
Alexandre, derrotado, vê o mundo por filtros vermelhos,
operação de semiologia primária. Stone recorre a uma
operação tradicional da publicidade: o estabelecimento
prévio do sentido. Diferentemente de Gance, que tem
uma ligação afetiva, mas parece não ter ligação psicológica
com seu personagem, no sentido em que o usa mais do
que se dá a ele, Stone quer dizer algo por Alexandre:
dá, então, a voz a ele e a si mesmo, ditando o que quer
que se entenda de sua história.
É uma operação habitual do cineasta, que faz juízo de
valor dos soldados americanos no Vietnã, em Platoon, e dos personagens de Assassinos
por Natureza. Mas o posicionamento nunca havia sido
tão extremo: Stone quer provar que Alexandre não só
foi um grande líder (o que, aliás, prescinde de prova,
diz a historiografia), como também foi um incompreendido.
A própria metaforização, extremamente atual, do líder
cuja ação imperialista (ou imperial) é justificada por
sua luta para levar a democracia aos quatro cantos do
mundo, toma o corpo do filme mais do que a própria ação
dramática. Alexandre não é Bush e, mais importante,
Bush não é Alexandre, mas quem quiser ver um como o
outro não poderá ser criticado por isso. Até porque
ambos usam os mesmos métodos. E Stone também.
Seu cinema é de batalha. Move-se como um exército a
serviço de um movimento, ou melhor, de uma movimentação,
já que esse modismo é mantido não por um conceito-chave
e sim por um performatismo de mercado, de um cinema
que se alimenta da conversão em realismo/naturalismo
de histórias que, tradicionalmente, seriam narradas
em tom fantasioso. Isso acontece em Tróia,
que desdiviniza seus acontecimentos até o último segundo,
ou até mesmo em O Senhor dos Anéis, absolutamente estruturado em universo do irreal:
todos esses filmes mostram-se obcecados por mostrar
como a construção de um universo fantástico pode ser
movida por uma construção destes “de fato”. O flerte
de Stone é mais sério, nesse sentido, porque, assim
como em Coração Valente, ele trabalha com um personagem
histórico.
De volta a Gance, a comparação inevitável do uso dos
pássaros por ele e por Stone é curiosa. Moderno, apesar
de fundador, o diretor francês usa um pássaro-câmera
e, mais que isso, um pássaro-tela. A observação feita
pelo alto, em Napoleon,
é um recurso simbólico do poder do cineasta. O pássaro
de Stone, em vez disso, é performatismo puro, com um
valor simbólico a priori: a natureza conspira por Alexandre, ela quer testemunhá-lo,
porque ele é também uma força natural.
Alexandre Werneck
|