Depoimentos de Jean Renoir:
A FRANÇA TEM UMA MISSÃO?
Qual é a sua atitude
para com a nação? Você se sente
membro, se sente solidário com a comunidade nacional?
Você acha que existem
- se bem que dispersados pelos acontecimentos da História
- os elementos de uma verdadeira comunidade francesa
? Deve-se continuar a França?
Deve a França
de 1938 mostrar à Europa e ao mundo - como
nas épocas mais gloriosas de sua História
- o caminho do progresso humano?
Permita-me que em minha resposta
eu me coloque do ponto de vista cinematográfico,
pois o cinema também pode e deve ser pensado
do ponto de vista nacional.
Não apenas eu julgo que
sou um membro desta nação, que sou solidário
com a comunidade nacional, mas tenho absoluta certeza
de que, fora desta comunidade, eu mesmo seria incapaz
de produzir um filme decente. Essa é uma das
razões pelas quais recuso (a menos que seja para
uma viagem de estudo ou para um trabalho curto determinado)
me expatriar e ir filmar na América.
À sua segunda pergunta,
respondo afirmando que os elementos de uma verdadeira
comunidade francesa existem, e nessa comunidade faço
resolutamente entrarem os estrangeiros que nos trazem
seus braços e seus cérebros, contanto,
naturalmente, que sua instalação aqui
constitua uma verdadeira doação deles
mesmos, e não tenha nada a ver com o turismo
ocioso ou o interesse passageiro. Para mim, o importante
não é a raça. Sou resolutamente
anti-racista. Só o solo é importante.
Vemos exemplos disso todos os dias e em toda parte em
torno de nós. As grandes lebres que são
trazidas da Tchecoslováquia para repovoar nossos
campos de caça, em algumas gerações
tornam-se lebres francesas. Todos os caçadores
sabem bem disso. O indivíduo que pisa o solo
de nosso país, que come francês, que respira
francês, que pensa francês torna-se rapidamente
um francês. Se não ele, pelo menos sua
descendência. A França continuará
contra tudo e contra todos, e isso porque seu solo é
forte.
À sua terceira pergunta,
respondo afirmando que a França não deve,
e aliás não pode, deixar de mostrar ao
mundo o caminho do progresso. Pode haver eclipses, porém
mais cedo ou mais tarde ela retomará a tocha.
Isso está em sua natureza; isso também
vem do solo. Aqueles que lutam contra o destino revolucionário
da França lutam (sem desconfiar disso, façamos
votos) contra a própria França e, conseqüentemente,
são maus franceses.
Eu lhe disse que pensava em
tudo isso do ponto de vista do cinema. É porque
estou convencido de que para nós, franceses,
a única maneira de fazer filmes internacionais,
e de tocar o coração dos homens de outros
países, é fazer filmes resolutamente franceses
e concebidos na direção do gênio
de nosso chão. Aliás, o verdadeiro nacionalismo
não é aquele que consiste em gritar "Abaixo
os estrangeiros", mas aquele que consiste em sentir-se
solidário com os outros homens que habitam a
França. E de tanto amar nossos compatriotas,
acabaremos amando também os outros cidadãos
do mundo. Esse é um caminho para o verdadeiro
internacionalismo.
Aí estão, caros
companheiros, as poucas observações rápidas
que me foram inspiradas por suas perguntas.
Sobretudo, não vejam
nisso pretensões em afirmar grandes teorias,
mas o desejo de contar amigavelmente a nossos companheiros,
já que eles têm a gentileza de se interessarem
por isso, o que me acontece de ter na cabeça.
(Les Cahiers de la jeunesse
nš12, 15 de julho de 1938. Publicado em O Passado Vivo,
Ed. Nova Fronteira. Tradução de Raquel
Ramalhete)
JEAN RENOIR FALA DE A GRANDE
ILUSÃO
Nos disseram que A
Grande Ilusão nasceu de uma troca de roteiros
entre você e [Julien] Duvivier. Inicialmente,
ele deveria fazer A Grande Ilusão e você
Camaradas (La Belle Equipe, dirigido por
Duvivier em 1936).
Não. A coisa se passou
dessa forma: eu trabalhava com [Charles] Spaak. Nós
estávamos prestes a escrever algum trabalho,
provavelmente Bas-Fonds (filmado em 1936); e
nós trocamos algumas idéias sobre Camaradas.
É possível até que nós tenhamos
começado juntos a imaginar a história
de Camaradas: é possível, eu não
me lembro mais exatamente. Em todo caso, nós
falávamos do filme. Depois eu e Spaak pensamos
que deveríamos apresentar o roteiro a Duvivier,
porque seria uma história ótima para ele!
Estava exatamente em seu domínio. Duvivier, em
seguida, modificou o roteiro, digeriu-o e o reescreveu
com Spaak. Mas nunca pensamos o filme para que eu o
dirigisse.
Quanto a A Grande Ilusão,
a origem desse filme é uma história que
me contou um camarada de guerra que, na época
da guerra, se chamava Subtenente Pinsard, mais tarde
Capitão Pinsard, e, quando filmei Toni e ele
comandava a base de Istres, General Pinsard. E o general
Pinsard tinha realmente sido um herói de guerra,
um sujeito que desapareceu sete, oito vezes, e um homem
por quem eu tinha um reconhecimento cego, porque quando
eu mesmo estava na aviação tirando fotos
- o que significa que eu ficava num avião que
não era rápido e tampouco era bem defendido
-, muitas vezes eu era atacado pelos alemães;
e se eu nunca fui abatido, era porque um avião
de caça da esquadrilha vizinha chegava sempre
e abatia o avião alemão. E era Pinsard,
na maioria das vezes!
Eu estava filmando Toni, então,
e havia aviões que voavam acima de nós
o tempo todo. O produtor Pierre Gaut me disse: "Vamos
ver o comandante." E eu me deparo com Pinsard!
Nós nos reencontramos
e isso me lembrou suas histórias de desaparecimento.
Eu disse a Pinsard: "Então, meu velho, me
conte suas histórias de desaparecimento. Eu poderia
fazer um filme sobre elas." Assim, ele me contou
histórias, que eu coloquei no papel, que não
têm nada a ver com o filme que voc6es conhecem,
mas que eram um ponto de partida indispensável.
É preciso sempre alguma coisa que te excita na
base de tudo, uma espécie de picada; é
preciso uma agulhada de incentivo.
E essa agulhada foram meus encontros
com Pinsard. Então, eu escrevi um roteiro...
enfim, eu escrevi uma história, e quando essa
história estava um pouquinho digerida, eu apresentei
a Spaak, e disse: "Meu velho, preciso de ajuda.
Você vai fazer um roteiro disso aqui. Eu acho
que tem uma boa história aqui dentro." Ele
concordou, ele achou muito bom e ele reescreveu o filme
comigo. E, depois disso, nós apresentamos o roteiro
ao produtor que tinha feito Bas-Fonds, que não
achou o projeto nada bom. Finalmente, nós andamos
por toda Paris. Felizmente [Jean] Gabin adorava o tema;
e, além do mais, nós éramos ótimos
amigos. Foi assim que eu filmei A Grande Ilusão,
graças a Gabin.
Gabin e eu fomos há inumeráveis
gabinetes, escritórios, tanto franceses, italianos,
americanos, todos eles. Todos recusaram. Eles nos diziam:
"Ah! Uma história de guerra, que coisa,
etc. Além do mais, isso levanta uma série
de questões muito delicadas, não vale
a pena fazer isso não..."
Finalmente, nós encontramos
um rapaz que, na minha opinião, mostrou um talento
enorme em tudo isso e nos ajudou formidavelmente. Ele
se chamava Albert Kinkéwitch e era o assistente,
o secretário geral, o faz-tudo enfim de um financista,
Rolmer, que sonhava em trabalhar com produções
cinematográficas. Ele já tinha talvez
colocado um pouco de dinheiro em filmes, isso eu não
sei. De qualquer forma, Kinkéwitch, que se interessava
muito por cinema, mas não estava no ramo, e Rolmer,
que também não estava, fizeram A Grande
Ilusão e, tenho certeza, unicamente porque eles
não estavam no ramo. Todos os profissionais estavam
contra essa história.
Todos os especialistas em distribuição,
as pessoas que era realmente grandes nomes nos assuntos
comerciais do cinema, todos repeliram esse roteiro cheios
de horror. Eu só pude fazer o filme graças
ao apoio de Gabin.
Desde o lançamento
foi um grande sucesso?
Desde o lançamento, ele
decolou...
Você mesmo não
tinha sido prisioneiro durante a guerra?
Não. Eu rodei esse filme
a partir de depoimentos, entre os quais os de Pinsard
e os de muitos prisioneiros que eu entrevistei. O que
me ajuda muito é o fato de que meu primeiro emprego
na vida foi ser oficial de cavalaria e que, conseqüentemente,
eu poderia adivinhar quais seriam as reações
das pessoas, então eu conhecia bem o estado de
espírito [desses ambientes de prisão],
em certas circunstâncias.
Da mesma forma, os exteriores
não foram filmados na Alemanha. Foram rodados
na Alsácia, em certas partes da Alsácia
extremamente influenciadas pelos alemães durante
o período que se seguiu à guerra de 1870.
Por exemplo, os bairros, as casernas nas quais filmamos,
eram casernas de artilharia construídas por Guilherme
II; era na Alta Königsberg. São edificações
de influência absolutamente alemã.
(Cahiers du Cinéma nš78,
dezembro de 1957. Trecho de entrevista concedida por
Jean Renoir a Jacques Rivette e François Truffaut.
Tradução de Ruy Gardnier)
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