A Grande Ilusão
de Jean Renoir, La Grande Ilusion, 1937, França

Depoimentos de Jean Renoir:


A FRANÇA TEM UMA MISSÃO?

Qual é a sua atitude para com a nação? Você se sente membro, se sente solidário com a comunidade nacional?

Você acha que existem - se bem que dispersados pelos acontecimentos da História - os elementos de uma verdadeira comunidade francesa ? Deve-se continuar a França?

Deve a França de 1938 mostrar à Europa e ao mundo - como nas épocas mais gloriosas de sua História - o caminho do progresso humano?

Permita-me que em minha resposta eu me coloque do ponto de vista cinematográfico, pois o cinema também pode e deve ser pensado do ponto de vista nacional.

Não apenas eu julgo que sou um membro desta nação, que sou solidário com a comunidade nacional, mas tenho absoluta certeza de que, fora desta comunidade, eu mesmo seria incapaz de produzir um filme decente. Essa é uma das razões pelas quais recuso (a menos que seja para uma viagem de estudo ou para um trabalho curto determinado) me expatriar e ir filmar na América.

À sua segunda pergunta, respondo afirmando que os elementos de uma verdadeira comunidade francesa existem, e nessa comunidade faço resolutamente entrarem os estrangeiros que nos trazem seus braços e seus cérebros, contanto, naturalmente, que sua instalação aqui constitua uma verdadeira doação deles mesmos, e não tenha nada a ver com o turismo ocioso ou o interesse passageiro. Para mim, o importante não é a raça. Sou resolutamente anti-racista. Só o solo é importante. Vemos exemplos disso todos os dias e em toda parte em torno de nós. As grandes lebres que são trazidas da Tchecoslováquia para repovoar nossos campos de caça, em algumas gerações tornam-se lebres francesas. Todos os caçadores sabem bem disso. O indivíduo que pisa o solo de nosso país, que come francês, que respira francês, que pensa francês torna-se rapidamente um francês. Se não ele, pelo menos sua descendência. A França continuará contra tudo e contra todos, e isso porque seu solo é forte.

À sua terceira pergunta, respondo afirmando que a França não deve, e aliás não pode, deixar de mostrar ao mundo o caminho do progresso. Pode haver eclipses, porém mais cedo ou mais tarde ela retomará a tocha. Isso está em sua natureza; isso também vem do solo. Aqueles que lutam contra o destino revolucionário da França lutam (sem desconfiar disso, façamos votos) contra a própria França e, conseqüentemente, são maus franceses.

Eu lhe disse que pensava em tudo isso do ponto de vista do cinema. É porque estou convencido de que para nós, franceses, a única maneira de fazer filmes internacionais, e de tocar o coração dos homens de outros países, é fazer filmes resolutamente franceses e concebidos na direção do gênio de nosso chão. Aliás, o verdadeiro nacionalismo não é aquele que consiste em gritar "Abaixo os estrangeiros", mas aquele que consiste em sentir-se solidário com os outros homens que habitam a França. E de tanto amar nossos compatriotas, acabaremos amando também os outros cidadãos do mundo. Esse é um caminho para o verdadeiro internacionalismo.

Aí estão, caros companheiros, as poucas observações rápidas que me foram inspiradas por suas perguntas.

Sobretudo, não vejam nisso pretensões em afirmar grandes teorias, mas o desejo de contar amigavelmente a nossos companheiros, já que eles têm a gentileza de se interessarem por isso, o que me acontece de ter na cabeça.

(Les Cahiers de la jeunesse nš12, 15 de julho de 1938. Publicado em O Passado Vivo, Ed. Nova Fronteira. Tradução de Raquel Ramalhete)

 

JEAN RENOIR FALA DE A GRANDE ILUSÃO

Nos disseram que A Grande Ilusão nasceu de uma troca de roteiros entre você e [Julien] Duvivier. Inicialmente, ele deveria fazer A Grande Ilusão e você Camaradas (La Belle Equipe, dirigido por Duvivier em 1936).

Não. A coisa se passou dessa forma: eu trabalhava com [Charles] Spaak. Nós estávamos prestes a escrever algum trabalho, provavelmente Bas-Fonds (filmado em 1936); e nós trocamos algumas idéias sobre Camaradas. É possível até que nós tenhamos começado juntos a imaginar a história de Camaradas: é possível, eu não me lembro mais exatamente. Em todo caso, nós falávamos do filme. Depois eu e Spaak pensamos que deveríamos apresentar o roteiro a Duvivier, porque seria uma história ótima para ele! Estava exatamente em seu domínio. Duvivier, em seguida, modificou o roteiro, digeriu-o e o reescreveu com Spaak. Mas nunca pensamos o filme para que eu o dirigisse.

Quanto a A Grande Ilusão, a origem desse filme é uma história que me contou um camarada de guerra que, na época da guerra, se chamava Subtenente Pinsard, mais tarde Capitão Pinsard, e, quando filmei Toni e ele comandava a base de Istres, General Pinsard. E o general Pinsard tinha realmente sido um herói de guerra, um sujeito que desapareceu sete, oito vezes, e um homem por quem eu tinha um reconhecimento cego, porque quando eu mesmo estava na aviação tirando fotos - o que significa que eu ficava num avião que não era rápido e tampouco era bem defendido -, muitas vezes eu era atacado pelos alemães; e se eu nunca fui abatido, era porque um avião de caça da esquadrilha vizinha chegava sempre e abatia o avião alemão. E era Pinsard, na maioria das vezes!

Eu estava filmando Toni, então, e havia aviões que voavam acima de nós o tempo todo. O produtor Pierre Gaut me disse: "Vamos ver o comandante." E eu me deparo com Pinsard!

Nós nos reencontramos e isso me lembrou suas histórias de desaparecimento. Eu disse a Pinsard: "Então, meu velho, me conte suas histórias de desaparecimento. Eu poderia fazer um filme sobre elas." Assim, ele me contou histórias, que eu coloquei no papel, que não têm nada a ver com o filme que voc6es conhecem, mas que eram um ponto de partida indispensável. É preciso sempre alguma coisa que te excita na base de tudo, uma espécie de picada; é preciso uma agulhada de incentivo.

E essa agulhada foram meus encontros com Pinsard. Então, eu escrevi um roteiro... enfim, eu escrevi uma história, e quando essa história estava um pouquinho digerida, eu apresentei a Spaak, e disse: "Meu velho, preciso de ajuda. Você vai fazer um roteiro disso aqui. Eu acho que tem uma boa história aqui dentro." Ele concordou, ele achou muito bom e ele reescreveu o filme comigo. E, depois disso, nós apresentamos o roteiro ao produtor que tinha feito Bas-Fonds, que não achou o projeto nada bom. Finalmente, nós andamos por toda Paris. Felizmente [Jean] Gabin adorava o tema; e, além do mais, nós éramos ótimos amigos. Foi assim que eu filmei A Grande Ilusão, graças a Gabin.

Gabin e eu fomos há inumeráveis gabinetes, escritórios, tanto franceses, italianos, americanos, todos eles. Todos recusaram. Eles nos diziam: "Ah! Uma história de guerra, que coisa, etc. Além do mais, isso levanta uma série de questões muito delicadas, não vale a pena fazer isso não..."

Finalmente, nós encontramos um rapaz que, na minha opinião, mostrou um talento enorme em tudo isso e nos ajudou formidavelmente. Ele se chamava Albert Kinkéwitch e era o assistente, o secretário geral, o faz-tudo enfim de um financista, Rolmer, que sonhava em trabalhar com produções cinematográficas. Ele já tinha talvez colocado um pouco de dinheiro em filmes, isso eu não sei. De qualquer forma, Kinkéwitch, que se interessava muito por cinema, mas não estava no ramo, e Rolmer, que também não estava, fizeram A Grande Ilusão e, tenho certeza, unicamente porque eles não estavam no ramo. Todos os profissionais estavam contra essa história.

Todos os especialistas em distribuição, as pessoas que era realmente grandes nomes nos assuntos comerciais do cinema, todos repeliram esse roteiro cheios de horror. Eu só pude fazer o filme graças ao apoio de Gabin.

Desde o lançamento foi um grande sucesso?

Desde o lançamento, ele decolou...

Você mesmo não tinha sido prisioneiro durante a guerra?

Não. Eu rodei esse filme a partir de depoimentos, entre os quais os de Pinsard e os de muitos prisioneiros que eu entrevistei. O que me ajuda muito é o fato de que meu primeiro emprego na vida foi ser oficial de cavalaria e que, conseqüentemente, eu poderia adivinhar quais seriam as reações das pessoas, então eu conhecia bem o estado de espírito [desses ambientes de prisão], em certas circunstâncias.

Da mesma forma, os exteriores não foram filmados na Alemanha. Foram rodados na Alsácia, em certas partes da Alsácia extremamente influenciadas pelos alemães durante o período que se seguiu à guerra de 1870. Por exemplo, os bairros, as casernas nas quais filmamos, eram casernas de artilharia construídas por Guilherme II; era na Alta Königsberg. São edificações de influência absolutamente alemã.

(Cahiers du Cinéma nš78, dezembro de 1957. Trecho de entrevista concedida por Jean Renoir a Jacques Rivette e François Truffaut. Tradução de Ruy Gardnier)