Existe uma primeira e essencial
pista do que há de errado com o filme de Lifshitz já
no seu título: admitidamente inspirado pela canção de
Lou Reed, ele nos cria uma chave interpretativa inconfundível,
que por si mesma categoriza os personagens para nós
– aqueles que vêm do “lado selvagem”, ou seria melhor,
os “marginais”. Ou seja, por mais que tudo que o diretor
tente fazer seja o movimento de dar a estes personagens
uma vida própria independente, esta vida mesma está
o tempo todo sob a sombra enorme projetada por esta
torre de significados: A Marginalidade. Quando sabemos
que os três personagens principais do filme formam um
triângulo amoroso a partir de um transexual, um imigrante
russo ilegal e um jovem michê de origem árabe, a coisa
toda piora: a simples descrição do trio não poderia
soar mais “clichê” das “imagens da marginalidade contemporânea”.
Pois é deste engessamento prévio que o filme jamais
conseguirá escapar de todo.
É verdade que ele tenta, e como tenta – seja pela fotografia
(sempre) sutil e cheia de nuances de Agnès Godard, seja
pela montagem/estrutura narrativa que tentam impor ao
filme um fluxo um tanto livre de temporalidade. No entanto,
mesmo estes dois elementos ganham um outro clichê, oposto
mas complementar ao do “retrato de classe”: o da “tentativa
de filme sensível que não se rende aos clichês”. Ou
seja, toda negação de uma narrativa estruturada mais
classicamente, toda a insistência nos enquadramentos
incomuns e movimentos de câmera inesperados, todas as
seqüências de cenas “sem conexão”, com o desejo de dar
ao filme frescor e novidade, não conseguem (quase) nunca
passar da sensação de uma fria tentativa de não ser
óbvio, de ser “único” – e nesta tentativa mesma, resultam
exatamente desta forma.
Lifschitz defende que não faz um filme “sobre a transexualidade”
e sim “com transexualidade”, mas é difícil levar a sério
suas palavras num filme que abre com um número musical
que, guardadas as devidas proporções, está mais perto
de um clipe de seqüência de créditos do James Bond (com
uma letra que expõe todos os dilemas do “ser transexual”
enquanto a câmera corre pelos rostos de uma série deles
ouvindo um que canta). Não é uma seqüência sem beleza,
como aliás também não é o filme. Mas simplesmente ela
desmonta todo o discurso do diretor – assim
como as cenas seguintes, onde ele fecha o circuito
que vai do geral ao particular (vemos cenas de transexuais
à beira da estrada onde passam os clientes, até que,
depois de alguns minutos “documentais”, é destacada
nossa protagonista). Nesta passagem se explicita a utilização
de Stéphanie (o nome dela) como representante de um
universo, de sua dimensão verdadeiramente metonímica,
e nisso se perde toda e qualquer crença na sua individualização.
Claro, é difícil se opor ao discurso aparentemente pró-tolerância
de Lado Selvagem
– mas há que se ver como ele é montado. Seu elogio de
uma “nova família” montada pelos laços de afetividade,
em oposição àquela cosanguínea e tradicional, empalidece,
em seu esquematismo, quando pensamos em filmes como
Madame Satã ou Tudo Sobre Minha Mãe – onde estas afirmações são feitas não pelo martelar
numa tecla de marginalismo, e sim pela (esta sim, tolerante)
inserção automática destas figuras contestadoras das
normas regentes em narrativas independentes. O que acontece
é que a afirmação que Lado Selvagem parece fazer em todos os seus fotogramas, especialmente
no final (algo do tipo: “somos todos seres humanos”),
para além de seu forte potencial “preaching to the perverted”
(ou seja, no meio onde o filme circula, quem se dispõe
a vê-lo já concorda de saída), tem um lado ainda mais
escuro: soa simplesmente preconceituoso, porque quem
acredita nisso mesmo, sabe que é algo que não se precisa
teorizar e provar, e sim admitir como dado anterior
a qualquer proposição (como nos filmes de Almodóvar
e Ainouz). Dar validade à idéia de que se precisa afirmar
a importância de “serem humanos” é naturalizar e internalizar
no filme o preconceito que o cerca – é tornar os personagens,
mesmo com todas as nuances narrativas/formais buscadas,
pouco mais do que títeres de uma tese a ser provada.
O que é uma pena, porque no filme de Lipshitz há muito
de que desejamos gostar (um possível trabalho com o
significado de “ser homem” hoje, o jogo com os corpos
e seus desejos), mas pouco que ele deixe tão livre quanto
deveria se sentir quem habita no “lado selvagem”.
Eduardo Valente
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