LADO SELVAGEM
Sebastien Lipschitz, Wild side, França, 2004

Existe uma primeira e essencial pista do que há de errado com o filme de Lifshitz já no seu título: admitidamente inspirado pela canção de Lou Reed, ele nos cria uma chave interpretativa inconfundível, que por si mesma categoriza os personagens para nós – aqueles que vêm do “lado selvagem”, ou seria melhor, os “marginais”. Ou seja, por mais que tudo que o diretor tente fazer seja o movimento de dar a estes personagens uma vida própria independente, esta vida mesma está o tempo todo sob a sombra enorme projetada por esta torre de significados: A Marginalidade. Quando sabemos que os três personagens principais do filme formam um triângulo amoroso a partir de um transexual, um imigrante russo ilegal e um jovem michê de origem árabe, a coisa toda piora: a simples descrição do trio não poderia soar mais “clichê” das “imagens da marginalidade contemporânea”. Pois é deste engessamento prévio que o filme jamais conseguirá escapar de todo.

É verdade que ele tenta, e como tenta – seja pela fotografia (sempre) sutil e cheia de nuances de Agnès Godard, seja pela montagem/estrutura narrativa que tentam impor ao filme um fluxo um tanto livre de temporalidade. No entanto, mesmo estes dois elementos ganham um outro clichê, oposto mas complementar ao do “retrato de classe”: o da “tentativa de filme sensível que não se rende aos clichês”. Ou seja, toda negação de uma narrativa estruturada mais classicamente, toda a insistência nos enquadramentos incomuns e movimentos de câmera inesperados, todas as seqüências de cenas “sem conexão”, com o desejo de dar ao filme frescor e novidade, não conseguem (quase) nunca passar da sensação de uma fria tentativa de não ser óbvio, de ser “único” – e nesta tentativa mesma, resultam exatamente desta forma.

Lifschitz defende que não faz um filme “sobre a transexualidade” e sim “com transexualidade”, mas é difícil levar a sério suas palavras num filme que abre com um número musical que, guardadas as devidas proporções, está mais perto de um clipe de seqüência de créditos do James Bond (com uma letra que expõe todos os dilemas do “ser transexual” enquanto a câmera corre pelos rostos de uma série deles ouvindo um que canta). Não é uma seqüência sem beleza, como aliás também não é o filme. Mas simplesmente ela desmonta todo o discurso do diretor – assim  como as cenas seguintes, onde ele fecha o circuito que vai do geral ao particular (vemos cenas de transexuais à beira da estrada onde passam os clientes, até que, depois de alguns minutos “documentais”, é destacada nossa protagonista). Nesta passagem se explicita a utilização de Stéphanie (o nome dela) como representante de um universo, de sua dimensão verdadeiramente metonímica, e nisso se perde toda e qualquer crença na sua individualização.

Claro, é difícil se opor ao discurso aparentemente pró-tolerância de Lado Selvagem – mas há que se ver como ele é montado. Seu elogio de uma “nova família” montada pelos laços de afetividade, em oposição àquela cosanguínea e tradicional, empalidece, em seu esquematismo, quando pensamos em filmes como Madame Satã ou Tudo Sobre Minha Mãe – onde estas afirmações são feitas não pelo martelar numa tecla de marginalismo, e sim pela (esta sim, tolerante) inserção automática destas figuras contestadoras das normas regentes em narrativas independentes. O que acontece é que a afirmação que Lado Selvagem parece fazer em todos os seus fotogramas, especialmente no final (algo do tipo: “somos todos seres humanos”), para além de seu forte potencial “preaching to the perverted” (ou seja, no meio onde o filme circula, quem se dispõe a vê-lo já concorda de saída), tem um lado ainda mais escuro: soa simplesmente preconceituoso, porque quem acredita nisso mesmo, sabe que é algo que não se precisa teorizar e provar, e sim admitir como dado anterior a qualquer proposição (como nos filmes de Almodóvar e Ainouz). Dar validade à idéia de que se precisa afirmar a importância de “serem humanos” é naturalizar e internalizar no filme o preconceito que o cerca – é tornar os personagens, mesmo com todas as nuances narrativas/formais buscadas, pouco mais do que títeres de uma tese a ser provada. O que é uma pena, porque no filme de Lipshitz há muito de que desejamos gostar (um possível trabalho com o significado de “ser homem” hoje, o jogo com os corpos e seus desejos), mas pouco que ele deixe tão livre quanto deveria se sentir quem habita no “lado selvagem”.

Eduardo Valente