Os sentidos da superfície
"O filme com história está acabando
e não é mais de interesse para um diretor
sério. Há um novo público, eu soube,
com menos de trinta anos e interessado em experiência
abstrata. Eu desafio qualquer um a me dizer sobre o
que Blow up (1966), Julieta dos Espíritos
(1965), A Guerra Acabou (1966) e os filmes dos
Beatles são."
William Friedkin, 1967
Se Viver e Morrer em Los Angeles é
o grande filme da carreira de William Friedkin é
porque o premia com a melhor base para explorar os seus
talentos superficiais. O filme não tem nenhum
personagem, nenhuma história, e qualquer ressonância
temática é derivada justamente do vazio
que existe dentro dele. Francis Vogner comentou no Cine
Imperfeito, a respeito do último – e injustiçado
– trabalho de Friedkin, Caçado, que os
protagonistas do diretor ilustram a idéia do
herói vazio no cinema moderno que Rogério
Sganzerla desenvolveu quando critico como poucos. Neste
sentido, Viver e Morrer em Los Angeles é
um mergulho de impressionante radicalidade. Todo o trabalho
de Friedkin é usado para esvaziar o seu filme
até que não haja nada, mas alguns corpos,
móveis e locações filtrados através
do brilhante trabalho de câmera de Robby Muller.
Friedkin explica que aproveitou que o gancho da trama
envolve falsificadores de dinheiro para construir seu
filme a partir de uma idéia de um mundo falso,
onde nada é genuíno. Viver e Morrer
em Los Angeles, por conta disso, é o mais
estilizado dos filmes de William Friedkin: quando a
câmera de Muller adentra o apartamento de um funcionário
do falsificador, podemos ver o prazer fetichista com
que o cineasta contempla cada elemento, cada objeto
em cena. Há um prazer especial em tudo que é
falso: da trama vagabunda e os clichês que a acompanham,
das relações entre os supostos personagens,
das perfumarias de câmera e montagem que o cineasta
aplica aqui e ali. Friedkin é, dos nomes mais
famosos da geração do cinema americano
dos anos 70, o único verdadeiro não-cinéfilo,
e nós estamos num terreno muito mais interessante
por isso. Não há aqui nenhum traço
da nostalgia por velhas imagens de gênero que
vez ou outra prejudicam até os trabalhos dos
sujeitos mais talentosos (Carpenter, De Palma). Quando
o agente federal aparece numa delegacia vagabunda de
filme B para falar com o chefe, nunca sentimos como
se Friedkin estivesse nos dando uma piscadela com a
familiaridade da situação. Pelo contrário,
o fato do cenário parecer todo errado (uma raridade
no cinema de Friedkin) só reflete o desinteresse
do diretor pela cena, que só está lá
para justificar a grande perseguição de
carros mais adiante. É uma cena individualmente
ruim, mas que contribui com o tom geral do filme de
uma forma que uma cena melhor talvez não o fizesse.
O clichê da situação só interessa
a Friedkin na medida em que ajuda a construir o mundo
falso sobre o qual seu filme versa. É curioso
como foi preciso um cineasta que não é
cinéfilo, e que não tem interesse especial
por gêneros, para realizar o único verdadeiro
noir moderno, onde o espírito e o tom
geral que transpassam o gênero recebe a chance
de respirar e refletir num ambiente contemporâneo.
Isto porque William Friedkin é o grande realista
ingênuo do cinema moderno: ele só acredita
na capacidade da sua câmera de se perder na experiência
sensorial de captar um corpo ou paisagem. Tem-se aí
um cinema que existe apenas na superfície.
Friedkin é um grande misantropo, o que casa bem
com seu desinteresse para com personagens (o único
ator aqui que sucede em dar algum tipo de densidade
para sua personagem é Dean Stockwell, numa pequena
participação interpretando justamente
a personagem que mais desagrada o diretor). Paradoxalmente,
o bom olhar de Friedkin para gestos permite a seus atores
muitas possibilidades de expressão. O Popeye
Doyle de Gene Hackman é uma figura mais complicada
e rica no segundo Operação França
(dirigido por John Frankenheimer) do que no filme de
Friedkin, mas em compensação o diretor
permite ao seu astro uma intensidade que Frankenheimer
é incapaz de gerar. William Petersen e William
Dafoe constroem performances que na verdade são
um catalogo de atitudes, são figuras intercambiáveis.
O que se registra em Petersen nunca são seus
sentimentos de lealdade para com o parceiro morto, mas
o prazer que tem em perseguir John Turturro no aeroporto,
ou mais tarde em torturar o chinês. A atuação
de Petersen é puxada por sua linguagem corporal
nestes momentos e não deixa de ser interessante
colocá-la em comparação com a que
o ator teve em Dragão Vermelho, de Michael
Mann, outro grande policial estilizado rodado na mesma
época, e no qual o grande momento do ator se
dava numa cena bastante simples, quando seu personagem
conversa com o filho num corredor de supermercado. Colocar
essas duas atuações lado a lado é
perceber as diferentes formas com que um material similar
pode ser abordado. Friedkin pode não reagir a
personagens, mas ele reage a atores. No cuidadosamente
construído mundo de falsificação
de Viver e Morrer em Los Angeles, tudo a respeito
do agente federal não tem autenticidade, menos
a própria aparência a ele emprestada por
Petersen, e Friedkin – assim como nós – tira
grande prazer em contemplá-lo, especialmente
nos momentos de ação. Dentro da falsidade
do mundo dramatúrgico do filme, o cineasta encontra
uma verdade na sua superfície.
Robin Wood apontou alguns dos primeiros filmes de Friedkin
como exemplos de textos incoerentes (onde tantos elementos
opostos competem que a tensão entre eles termina
em resultar num filme cujo conteúdo soa confuso),
e Adrian Martin, em outra oportunidade, ligou-o a alguns
diretores (Alan Parker, Ridley Scott) que sacrificariam
o sentido por uma imagem de impacto. Ambos os críticos
tem razão, porque há nos filmes de Friedkin
uma paixão pelo se levar pelo instante que anda
de mãos dadas com a que tem pelas superfícies.
O diretor confessa no recente DVD que decidiu por matar
uma personagem-chave no clímax na véspera
de rodar a cena, sem qualquer consideração
sobre como a cena altera o tom do filme. Friedkin, de
fato, é um diretor que tende à incoerência,
cujos filmes avançam e recuam, sempre num terreno
pantanoso por nunca serem claros quanto ao seu propósito.
Até nestes sentido Viver e Morrer em Los Angeles
é único na carreira de Friedkin, já
que o senso de ultraje moral que o transpassa casa perfeitamente
com a sensação de confusão emocional
da mise en scène do diretor em algumas
das situações que filma. Isto também
se reflete na forma como experimentamos um filme de
Friedkin: pessoalmente, sempre tenho a impressão
diante de um bom William Friedkin – e este é
o melhor – de uma pura experiência sensorial mais
próxima de alguns cineastas experimentais americanos
do que de outros filmes policiais.
Essa lógica pode ser observada, por exemplo,
na série de primeiros-planos violentíssimos
(tanto na forma como no conteúdo) em que a personagem
recebe um tiro à queima-roupa no rosto. O plano
(com atores diferentes) se repete três vezes de
forma similar (uma no começo, outra no meio,
outra no clímax), e não há nenhuma
necessidade narrativa para isso (o roteiro nunca pede
que as situações tenham intensidade, o
que os planos acrescentam). Há algo de violento
na forma como o montador corta para esses planos e a
imagem do rosto (outra superfície) sendo destroçado
acaba servindo como a imagem final para o senso de horror
moral que é a maior constante do filme.
Se todos os filmes de Friedkin propõem um certo
esvaziamento da imagem, o processo aqui é radical,
em parte pelo diretor se considerar retratando um universo
realmente vazio. Há um lado político aqui
(na primeira cena pós-créditos ouvimos
o então presidente americano Ronald Reagan fazendo
um discurso sobre cortes de recursos que termina por
soar ligado ao que vemos posteriormente) intimamente
relacionado com o ultraje moral que o diretor freqüentemente
demonstra. De certa forma, é como se Friedkin
concluísse que o mundo à sua volta se
transformou em um dos seus filmes e não gostou
nada disso. A única saída encontrada parece
ser um mergulho radical e violento num esvaziamento
completo. O que termina por revelar o paradoxo final
de Viver e Morrer em Los Angeles: quanto mais
o diretor o esvazia, mais ele adquire um certo peso.
Trata-se do tipo de filme que justifica a carreira de
um diretor (inclusive os ocasionais fracassos estéticos).
Há muitos sentidos na sua perfeitamente realizada
superfície.
Filipe Furtado
(DVD:
MGM/Fox)
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