VIVER E MORRER EM LOS ANGELES
William Friedkin, To Live and Die in LA, EUA, 1985

Os sentidos da superfície

"O filme com história está acabando e não é mais de interesse para um diretor sério. Há um novo público, eu soube, com menos de trinta anos e interessado em experiência abstrata. Eu desafio qualquer um a me dizer sobre o que Blow up (1966), Julieta dos Espíritos (1965), A Guerra Acabou (1966) e os filmes dos Beatles são."
William Friedkin, 1967

Se Viver e Morrer em Los Angeles é o grande filme da carreira de William Friedkin é porque o premia com a melhor base para explorar os seus talentos superficiais. O filme não tem nenhum personagem, nenhuma história, e qualquer ressonância temática é derivada justamente do vazio que existe dentro dele. Francis Vogner comentou no Cine Imperfeito, a respeito do último – e injustiçado – trabalho de Friedkin, Caçado, que os protagonistas do diretor ilustram a idéia do herói vazio no cinema moderno que Rogério Sganzerla desenvolveu quando critico como poucos. Neste sentido, Viver e Morrer em Los Angeles é um mergulho de impressionante radicalidade. Todo o trabalho de Friedkin é usado para esvaziar o seu filme até que não haja nada, mas alguns corpos, móveis e locações filtrados através do brilhante trabalho de câmera de Robby Muller.

Friedkin explica que aproveitou que o gancho da trama envolve falsificadores de dinheiro para construir seu filme a partir de uma idéia de um mundo falso, onde nada é genuíno. Viver e Morrer em Los Angeles, por conta disso, é o mais estilizado dos filmes de William Friedkin: quando a câmera de Muller adentra o apartamento de um funcionário do falsificador, podemos ver o prazer fetichista com que o cineasta contempla cada elemento, cada objeto em cena. Há um prazer especial em tudo que é falso: da trama vagabunda e os clichês que a acompanham, das relações entre os supostos personagens, das perfumarias de câmera e montagem que o cineasta aplica aqui e ali. Friedkin é, dos nomes mais famosos da geração do cinema americano dos anos 70, o único verdadeiro não-cinéfilo, e nós estamos num terreno muito mais interessante por isso. Não há aqui nenhum traço da nostalgia por velhas imagens de gênero que vez ou outra prejudicam até os trabalhos dos sujeitos mais talentosos (Carpenter, De Palma). Quando o agente federal aparece numa delegacia vagabunda de filme B para falar com o chefe, nunca sentimos como se Friedkin estivesse nos dando uma piscadela com a familiaridade da situação. Pelo contrário, o fato do cenário parecer todo errado (uma raridade no cinema de Friedkin) só reflete o desinteresse do diretor pela cena, que só está lá para justificar a grande perseguição de carros mais adiante. É uma cena individualmente ruim, mas que contribui com o tom geral do filme de uma forma que uma cena melhor talvez não o fizesse. O clichê da situação só interessa a Friedkin na medida em que ajuda a construir o mundo falso sobre o qual seu filme versa. É curioso como foi preciso um cineasta que não é cinéfilo, e que não tem interesse especial por gêneros, para realizar o único verdadeiro noir moderno, onde o espírito e o tom geral que transpassam o gênero recebe a chance de respirar e refletir num ambiente contemporâneo. Isto porque William Friedkin é o grande realista ingênuo do cinema moderno: ele só acredita na capacidade da sua câmera de se perder na experiência sensorial de captar um corpo ou paisagem. Tem-se aí um cinema que existe apenas na superfície.

Friedkin é um grande misantropo, o que casa bem com seu desinteresse para com personagens (o único ator aqui que sucede em dar algum tipo de densidade para sua personagem é Dean Stockwell, numa pequena participação interpretando justamente a personagem que mais desagrada o diretor). Paradoxalmente, o bom olhar de Friedkin para gestos permite a seus atores muitas possibilidades de expressão. O Popeye Doyle de Gene Hackman é uma figura mais complicada e rica no segundo Operação França (dirigido por John Frankenheimer) do que no filme de Friedkin, mas em compensação o diretor permite ao seu astro uma intensidade que Frankenheimer é incapaz de gerar. William Petersen e William Dafoe constroem performances que na verdade são um catalogo de atitudes, são figuras intercambiáveis. O que se registra em Petersen nunca são seus sentimentos de lealdade para com o parceiro morto, mas o prazer que tem em perseguir John Turturro no aeroporto, ou mais tarde em torturar o chinês. A atuação de Petersen é puxada por sua linguagem corporal nestes momentos e não deixa de ser interessante colocá-la em comparação com a que o ator teve em Dragão Vermelho, de Michael Mann, outro grande policial estilizado rodado na mesma época, e no qual o grande momento do ator se dava numa cena bastante simples, quando seu personagem conversa com o filho num corredor de supermercado. Colocar essas duas atuações lado a lado é perceber as diferentes formas com que um material similar pode ser abordado. Friedkin pode não reagir a personagens, mas ele reage a atores. No cuidadosamente construído mundo de falsificação de Viver e Morrer em Los Angeles, tudo a respeito do agente federal não tem autenticidade, menos a própria aparência a ele emprestada por Petersen, e Friedkin – assim como nós – tira grande prazer em contemplá-lo, especialmente nos momentos de ação. Dentro da falsidade do mundo dramatúrgico do filme, o cineasta encontra uma verdade na sua superfície.

Robin Wood apontou alguns dos primeiros filmes de Friedkin como exemplos de textos incoerentes (onde tantos elementos opostos competem que a tensão entre eles termina em resultar num filme cujo conteúdo soa confuso), e Adrian Martin, em outra oportunidade, ligou-o a alguns diretores (Alan Parker, Ridley Scott) que sacrificariam o sentido por uma imagem de impacto. Ambos os críticos tem razão, porque há nos filmes de Friedkin uma paixão pelo se levar pelo instante que anda de mãos dadas com a que tem pelas superfícies. O diretor confessa no recente DVD que decidiu por matar uma personagem-chave no clímax na véspera de rodar a cena, sem qualquer consideração sobre como a cena altera o tom do filme. Friedkin, de fato, é um diretor que tende à incoerência, cujos filmes avançam e recuam, sempre num terreno pantanoso por nunca serem claros quanto ao seu propósito. Até nestes sentido Viver e Morrer em Los Angeles é único na carreira de Friedkin, já que o senso de ultraje moral que o transpassa casa perfeitamente com a sensação de confusão emocional da mise en scène do diretor em algumas das situações que filma. Isto também se reflete na forma como experimentamos um filme de Friedkin: pessoalmente, sempre tenho a impressão diante de um bom William Friedkin – e este é o melhor – de uma pura experiência sensorial mais próxima de alguns cineastas experimentais americanos do que de outros filmes policiais.

Essa lógica pode ser observada, por exemplo, na série de primeiros-planos violentíssimos (tanto na forma como no conteúdo) em que a personagem recebe um tiro à queima-roupa no rosto. O plano (com atores diferentes) se repete três vezes de forma similar (uma no começo, outra no meio, outra no clímax), e não há nenhuma necessidade narrativa para isso (o roteiro nunca pede que as situações tenham intensidade, o que os planos acrescentam). Há algo de violento na forma como o montador corta para esses planos e a imagem do rosto (outra superfície) sendo destroçado acaba servindo como a imagem final para o senso de horror moral que é a maior constante do filme.

Se todos os filmes de Friedkin propõem um certo esvaziamento da imagem, o processo aqui é radical, em parte pelo diretor se considerar retratando um universo realmente vazio. Há um lado político aqui (na primeira cena pós-créditos ouvimos o então presidente americano Ronald Reagan fazendo um discurso sobre cortes de recursos que termina por soar ligado ao que vemos posteriormente) intimamente relacionado com o ultraje moral que o diretor freqüentemente demonstra. De certa forma, é como se Friedkin concluísse que o mundo à sua volta se transformou em um dos seus filmes e não gostou nada disso. A única saída encontrada parece ser um mergulho radical e violento num esvaziamento completo. O que termina por revelar o paradoxo final de Viver e Morrer em Los Angeles: quanto mais o diretor o esvazia, mais ele adquire um certo peso. Trata-se do tipo de filme que justifica a carreira de um diretor (inclusive os ocasionais fracassos estéticos). Há muitos sentidos na sua perfeitamente realizada superfície.

Filipe Furtado

(DVD: MGM/Fox)